O filho de Malazar!
Penso em correr dali e ir a Sânsalun avisar Sertolin da barbárie em andamento, mas
simplesmente não consigo. Ele mandaria homens eliminarem a humana na mesma hora e não
suporto nem pensar na ideia. Fico dias seguindo Dale e o vejo rapidamente entrar em uma
espiral de enlouquecimento. Recordo-me de imediato do meu antigo líder, Prylur. Ele
costumava contar sobre a fama dos nervos aflorados de Wangor e afirmava que Dale, seu
filho, era ainda mais instável e doente que o pai.
Pura verdade.
Desde o encontro com Malazar, Dale não cumpre mais missão alguma e fica
perambulando por Zyrk como uma alma penada. O infeliz retorna à segunda dimensão e o vejo
vigiar a humana, mas não tem coragem de se aproximar. Está apenas aguardando o
nascimento da criança híbrida para raptá-la e se livrar da mulher. Em alguns momentos parece
arrependido do que fez, mas é covarde demais para enfrentar as consequências dos seus
atos. Apavorado com a dívida que terá de pagar ao demônio, ele colocou na cabeça
perturbada que conseguirá refúgio em Windston caso leve a criança híbrida consigo. Fica se
convencendo de que Malazar não lhe fará mal algum enquanto a criança estiver em seu poder.
Observo-o falando em voz alta. Escuto as explicações imbecis que planeja dar para Wangor,
seu austero pai. Wangor é um líder justo, mas de gênio tempestuoso, e ele sabe disso melhor
que ninguém. Dale decora em alto som um amontoado de mentiras descabidas. Em nenhuma
delas menciona seu trato com o demônio, pelo contrário. Inventa desculpas de grande
impacto, planeja utilizar-se da lenda de Zyrk para comover o pai e afirmar que o filho que a
humana carrega no ventre foi fruto do legítimo amor entre as duas espécies. Está
desesperado e disposto a tudo para livrar a própria cara.
#
Quatro meses se passaram num piscar de olhos. Dale está mais desorientado do que
nunca. Observo-o. Sigo-o como se fosse sua própria sombra. Ele já não diz mais coisa com
coisa, fica andando em círculos e se afunda em erros. Acaba de matar os dois resgatadores
que vigiavam a humana. Praticamente não dorme nem se alimenta. Cedeu completamente aos
seus nervos instáveis. Sinto receio atroz ao ver sua rápida deterioração. Ele gargalha em voz
alta, chora, pragueja. Está louco.
Sei que eu já devia ter retornado a Zyrk com notícias sobre a força que cresce na
segunda dimensão, mas não consigo. Simplesmente não consigo. Sertolin nem precisará tocar
em minhas mãos para sentir o que se passa em meu peito. Meus olhos me denunciarão como
sempre o fizeram. Meu mestre se aproveitará disso para descobrir que a inexplicável energia
cada dia mais pulsante e avassaladora trata-se do filho da besta se desenvolvendo no útero da
humana que não consigo parar de admirar e enviará um exército para executá-la. Sei que
trabalha pensando no equilíbrio do planeta, em manter a tênue harmonia entre as dimensões.
Decepção. Vergonha. Fracasso. Por que não sou consumido por elas? Devia sumir e nunca
mais aparecer para não ter que me deparar com o escrutínio do Grande Conselho. Devia estar
arrependido, mas a verdade é que não estou e não me reconheço mais. Estremeço com tal
pensamento.
— Vou matá-la! É isso! Vou me redimir e acabar com tudo! — solta Dale
intempestivamente, com um brilho em seus olhos castanho-claros como há muito não
presenciava.
Deve ser outro de seus devaneios, mas fico em estado de alerta máximo. Abandono o
modo invisível e o acompanho de perto. Vejo quando ele aguarda a humana sair do seu
trabalho e a segue. Sua barriga está proeminente e o peso extra a faz caminhar de forma
lenta, bem diferente de suas passadas ligeiras de meses atrás. Pergunto-me por que Dale não
é mais capaz de captar a minha presença. Teria a essência humana que recebera de Malazar
modificado parte de seus instintos zirquinianos? Ou seria pelo agravamento de sua loucura?
A humana, ao contrário de Dale, parece bem ciente não apenas da presença dele, como
da minha também. Ela disfarça e olha por sobre os ombros toda vez que resolve atravessar
alguma rua e vejo quando seus olhos negros e perturbadores procuram os meus. Acho que ela
sorri discretamente em minha direção e me pergunto se a loucura de Dale não começou a me
atingir também. De repente ela muda de direção e entra em uma estação do metrô abarrotada
de gente. Um trem acaba de chegar e o enxame de humanos avança sobre nós. Devido à sua
baixa estatura, fica dificílimo identificá-la no meio de tantas pessoas. Seguro o sorriso
quando, num piscar de olhos, eu a perco de vista. Ela é muito esperta! Adoro isso! Vejo
quando Dale fica nervoso. Terá que se utilizar apenas do atual olfato e parece saber que
fracassará. Mas eu a farejo com perfeição, como se parte dela pertencesse à minha própria
essência. Sei que ela está por perto. Escondida, mas por perto. Após alguns minutos
procurando de um lado para o outro como um tonto, Dale xinga alto, desiste de seu objetivo e
sai da estação. Olho ao redor e, quando estou prestes a retornar e ir atrás dele, escuto o sinal
de fechamento das portas de outro trem e uma rajada de energia me atingir a pele. Meus
olhos vasculham com rapidez o vagão parado à minha frente e, em meio a tantas cabeças
espremidas, eu a vejo sorrindo e acenando para mim. As portas vibram, alertando sobre a
partida iminente do trem. Não refreio meu impulso e corro como um raio em sua direção.
#
Ela sai em uma estação próxima ao East Village e caminha em direção a uma pequena
delicatessen. Eu a sigo, mantendo três passadas de distância entre nós. Ainda não acredito
que estou fazendo isso, mas também não me arrependo. Estou insanamente eufórico com o
fato de ela querer falar comigo e não com Dale. Ela entra no aconchegante estabelecimento,
pede duas xícaras de chocolate quente e se senta em uma mesinha nos fundos. Estou mais
inerte do que uma pedra e mal consigo sair do lugar. Ela me aguarda e isso me amedronta.
Nunca tive medo de lutar contra vários adversários ao mesmo tempo e agora estou aqui,
tremendo por ter de enfrentar uma pequena e indefesa humana. Olho para ela e a vejo acenar
para mim novamente. Respiro fundo, tomo coragem e caminho em sua direção.
— É uma menina. — Sua voz mexe com uma parte desconhecida dentro de mim. — Você
foi o primeiro a perceber. Achei justo que fosse o primeiro a saber o sexo — suspira e,
camuflado em sua postura alegre, sinto um discreto pesar naquela afirmação.
Céus! Não consigo falar e pensar ao mesmo tempo com meu coração dando socos
dentro do peito.
— Prefere outra bebida? — ela olha para as xícaras de chocolate quente à nossa frente.
— Se quiser, eu posso pedir...
— Não! — solto alarmado. Não devo conversar com a humana. — Eu não, eu...
— Está tudo bem — ela tenta me acalmar. — Tenho fé em Deus que vai ficar tudo bem
— diz de forma gentil e, como se não bastasse tudo que foi capaz de gerar em mim mesmo à
distância, a humana me faz congelar quando segura uma de minhas mãos entre as dela.
Arrepiado da cabeça aos pés, desvencilho-me de seu contato jogando meu corpo para trás.
Arrependo-me imediatamente disso, mas não volto atrás. — Qual o seu nome?
— Ismael — balbucio.
— Você já deve saber o meu, não é?
Eu confirmo com um balançar de cabeça. Ela arqueia as sobrancelhas e me estuda por
um momento.
— O que quer de nós? Ainda não entendi o que deseja, mas sei que não quer o meu mal,
o nosso mal — passa as mãos na barriga e sorri. Não sei o que há comigo, mas não consigo
resistir e, quando dou por mim, estou retribuindo seu sorriso com vontade. Vejo seus olhos
negros brilharem ainda mais quando miram a minha boca e sou varrido por uma onda de calor
e um jorro de adrenalina. Todos os poros do meu corpo resolvem suar, cada célula protestar,
meus pelos eriçar.
— Por que, entre tantos, escolheu logo alguém tão fraco como ele?
Por Tyron! De onde saiu essa pergunta que acabo de fazer?
— Eu havia acabado de sair de um relacionamento muito complicado, um namorado
violento. — Ela dá de ombros e me fita com um sorriso triste. — Então Dale apareceu em
minha vida. Ele era gentil, atencioso e... inacessível! — ela pisca. — Minha falecida mãe
costumava dizer que eu tinha uma queda para as coisas impossíveis e complicadas, e Dale...
— suspira. — Bom, ele era o fruto proibido. Havia o desafio, a magia. E o meu terrível destino.
— Quando soube que era uma receptiva?
— Desde pequena. Consigo captar os halos ao redor das pessoas — ela explica com
outro sorriso triste. — Quando eles eram subitamente impregnados por uma sombra negra,
logo em seguida as pessoas morriam. Sou filha de um relacionamento acidental,
completamente sem amor, de duas pessoas ignorantes. Tive mínimo contato com meu pai. O
halo escuro apareceu para ele no meu sétimo aniversário. Minha mãe era uma mulher severa,
extremamente rude, não acreditava em nada do que eu dizia e ainda me batia quando eu
“previa” a morte de alguém. Então parei de contar e apenas fui tocando a vida, até que eu vi o
halo negro surgir para ela. Nada disse, apenas esperei. Não sofri a perda deles. Nunca me
amaram.
— Então você sabia que seus dias já estavam contados?
— Sim. Em uma manhã, há quase dois anos, acordei com o maldito halo negro me
envolvendo. Chorei muito. Sabia que a morte chegaria em breve, minha sina intransferível. Sou
jovem e tenho saúde de ferro, então concluí que morreria em um acidente. Até o dia em que
Dale apareceu na minha vida. Só podia existir uma explicação plausível para, dia após dia,
aquele homem bonito e com ausência de halo começar a me seguir e observar avidamente: ele
era a minha morte! Como não sou de ficar remoendo minhas dores, aquela espera estava
começando a me angustiar e aí fui eu quem se aproximou dele — ela dá de ombros. — Aos
poucos fui me afeiçoando por aquela morte tão necessitada de mim. Dale era tão carente de
afeto, tão...
— Pena?! Entregou-se a ele por pena? — pergunto com um misto de raiva e alívio. Fico
alarmado com minha reação. — Deveria ter ódio dele! Veja o que ele lhe fez!
— Não é nada disso! — ela rebate na defensiva e sua força vacila. Ela não percebe, mas
sua reação acalorada gera uma nova descarga de energia sobre meu corpo. Seguro-me como
posso. Quero berrar que Dale é um fraco, que ela se deixou levar por ele porque o cretino
estava possuído por algum tipo de magia negra do demônio, mas me calo. Não me acho no
direito de deixá-la triste ou nervosa. — Além do mais, ele me transformou em uma mulher rica
da noite para o dia. Eu sabia que ia morrer e, então, sem mais nem menos, começo a gerar
uma vida! — diz sorridente e passa novamente as mãos na barriga. Flagro-me admirando a
perfeição de seu pescoço, a pulsação tentadora das veias azuis em sua pele morena clara.
Sinto minha boca secar e engulo em seco. — Não posso ter raiva dele.
— Ele quer a criança — murmuro.
— E você? O que quer? — ela indaga e perco a fala porque, sem sucesso, também já
havia me feito aquela mesma pergunta centenas, milhares de vezes. Era difícil demais me
reconhecer diante dela. Aquela mulher era uma terra desconhecida e tentadora demais. Pisco
algumas vezes. Uma voz interna me adverte do perigo iminente. Sei que preciso parar de
encará-la senão morrerei sufocado. Nunca poderia imaginar, entretanto, que ficaria tão
fascinado, tão irremediavelmente satisfeito com esse tipo de partida.
— Você ainda tem bons sentimentos por ele? — pergunto e ela solta uma gargalhada
alta, dessas que faz a terra tremer. Ou será apenas a trepidação do meu coração? Não
consigo mais distinguir. Sinto um prazer inenarrável ao ouvir sua risada alegre, como se não
precisasse de mais nada em minha vida, como se ela fosse o ar a manter meus pulmões em
funcionamento. Levo as mãos à cabeça. Estou perdido.
— “Bons sentimentos”? — repete e solta nova gargalhada. Uma energia maravilhosa
desprende-se dela e explode no ar como centelhas de bem-estar. Lavas de um vulcão de
eletricidade e alegria. Meu corpo entra em chamas e, quanto mais as labaredas de seu fogo
me lambem a alma, mais eu percebo que desejo me queimar. Sinto-me maravilhosamente bem
em fazê-la rir. — Você é muito engraçado!
Negativo. Tinha certeza de que era algo que eu nunca fui.
— Se já notou que Dale não é mais capaz de senti-la, por que não desaparece daqui de
uma vez por todas? — desconverso.
— Porque ele não vai nos fazer mal algum e porque...
— Por quê...?
— Porque agora tenho você!
Meu coração vem à boca e só não sai e se espatifa no chão porque meus dentes o
aprisionam bem a tempo. Se já não tinha voz, agora perco a razão. Minhas reações são
intensas e contraditórias. Estou nervoso, excitado ao extremo. Se possível fosse para um
zirquiniano, diria que estou apaixonado.
— A mim?! — engasgo.
— Sim. Agora tenho certeza. Tudo isso aconteceu porque eu tinha que conhecer você,
Ismael. Uma voz me diz que não preciso ficar preocupada se você está por perto. Ela afirma
que você é o meu anjo protetor.
— Você está louca, eu sou um zirquiniano igual a Dale!
— Não é não.
— Como pode dizer isso se mal me conhece?
— Eu sinto isso. Desde o nosso beijo. — Ela me encara. — Penso em você noite e dia
desde o momento que o vi. Nunca senti por ninguém o que você gerou em mim — ela sorri
com vontade, torna a segurar minhas mãos e as leva em direção ao seu ventre. A criança
dentro dela se movimenta no instante em que eu a toco. O que sinto em meu coração
ultrapassa todas as fronteiras. Vértice, Plano, Terra, Zyrk... Nada mais faz sentido. Estou
derretendo de emoção. Sinto minha alma explodir no peito, ir à lua, deixar a galáxia, e voltar
ainda mais energizada.
— Vai dar tudo certo, ok? Você vai ficar bem. A criança vai ficar bem — digo com uma
candura na voz que jamais imaginei que pudesse possuir. Acho que digo as palavras certas
porque ela torna a olhar para mim com intensidade. Seus olhos negros e fulgurantes me
desorientam. Sinto novo calafrio. Tenho certeza de que ela não apenas me olha. Tenho
absoluta convicção de que ela é capaz de enxergar através da minha essência. Sinto um medo
horroroso que ela descubra que sou uma farsa, que me aproximei com a pior das intenções,
que há alguns meses eu desejava matá-la. Sinto vergonha de mim. Repulsa de ser o que sou.
— Além de mim, você é a única pessoa a quem ela responde. O bebê também o ama,
Ismael — finaliza.
“Também”?
Há um terremoto, um furacão, um vulcão em erupção, tudo acontecendo ao mesmo
tempo dentro de mim. Meus alicerces estão irremediavelmente abalados. Estou desmoronando
e sendo reconstruído, pedaço por pedaço. Levo um susto ao perceber que minhas mãos têm
vontade própria e apertam as dela com desejo avassalador. Mais alucinante ainda é a
sensação que aquele toque gera em meu corpo. Tenho a impressão de que a cada novo
contato essa sensação aumenta de intensidade. Quando dou por mim, não é ela quem procura
por mim agora, mas sou eu, desesperado, febril, que a puxo para mim e sufoco sua boca com
um beijo meu.
Finalmente a certeza: estou apaixonado.
Irremediavelmente e para
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