sábado, 19 de maio de 2018

CAPÍTULO 21 - Não Fuja

CAPÍTULO 21
Subitamente determinado, Shakur jogou o corpo sem resistência de Richard por sobre os
ombros. Ele conseguiu a proeza de levantar a montanha de músculos de Richard com incrível
facilidade, carregando-o com destreza enquanto descia os degraus suspensos à beira do
abismo.
— Como está a humana? — Shakur tentou disfarçar, mas sua voz saiu cheia de
expectativa quando chegamos à entrada da cela onde mamãe se encontrava. Pelo visto, ele
não imaginava que eu já sabia que ele era Ismael, o meu pai adotivo de um passado bem
distante.
— Não consegue falar, mas acho que entende o que se passa ao seu redor. Tenho medo
de que não esteja apenas dopada, mas que lhe tenham causado algum dano irreversível e...
— Não consegui continuar ao ver a hemiface do líder de negro perdendo a cor gradualmente.
Depois de tantos anos, ele ainda se importava com ela? E qual seria a reação de Stela ao se
deparar com ele?
— Preciso colocá-lo no chão antes que me acerte um chute — Shakur esboçou um
sorriso ao ver que Richard começava a mexer as pernas e o posicionou do lado de fora da
entrada.
— Não é perigoso deixá-lo aqui? — indaguei.
— Qualquer lugar dentro de Marmon é perigoso. Ao menos aqui ele pode nos dar o
alerta da chegada de algum intruso. Não que isso seja de grande serventia com ele nesse
estado, mas... — deu de ombros. — Temos que pegar sua mãe e sair o mais rápido possível.
Vou fazer duas viagens até a base. Primeiro eu a levo. Depois carrego Richard.
— Tudo bem.
— Rick, fique de olho e berre se alguém se aproximar, ouviu? — comandou Shakur.
— Pode deixar — assentiu, mas o coitado mais parecia um sonâmbulo que falava durante
o sono.
Shakur segurou minhas mãos ainda amarradas e, sem que eu esperasse, desceu um
lance de degraus conduzindo-me ao nível logo abaixo do nosso.
— Para onde está me levando?
— Feche os olhos, Nina, e não os abra em hipótese alguma.
— Fechar os olhos?
Não gostei daquela ordem inesperada. O mortal abismo piscava abaixo de mim.
— Vou cortar a corda.
— E por que eu preciso fechar os olhos?
— Porque vou remover a minha máscara. — Havia uma advertência velada em seu tom
de voz sombrio. — A parte de trás da minha máscara possui um bordo afiado como uma
lâmina. Uma arma secreta...
— Ah! — Isso explicava o porquê dele se afastar de Richard. Não queria que seu pupilo,
ainda que fora de suas faculdades completas, presenciasse o triste segredo que guardava a
sete chaves.
— Dê-me a sua palavra que não abrirá os olhos em hipótese alguma.
— Eu prometo.
Sem hesitar, estendi os braços, satisfeita em saber que me veria livre daquelas malditas
amarras, e cerrei os olhos com força. Escutei a respiração de Shakur ficar diferente, menos
forçada, e, em seguida, ele segurar delicadamente minhas mãos. A agradável sensação de
bem-estar que ele costumava me gerar estava novamente presente. Deixei o ar escapar dos
meus pulmões, mas meu momento de tranquilidade foi interrompido por um novo berro.
— Ninnnaaa! — A voz de mamãe, bem mais forte e lúcida do que antes, rasgava o ar e
me enchia de aflição e felicidade. — Ninnn!
— Não! — Shakur alertou, nervoso.
— Não vou abrir os olhos — rebati, mal contendo a agitação em minhas pernas.
— Maldição! Os ecos vão acabar nos denunciando — resmungou ele, terminando o
serviço de forma acelerada.
— Ninnnannn! — Os berros dela aumentavam de intensidade.
Os grunhidos altos de mamãe vibravam em meus tímpanos. Manter os olhos fechados
parecia uma tarefa hercúlea. De repente ela soltou um gritinho fino, como se acabasse de
levar um susto, e se calou. O silêncio repentino conseguia ser ainda mais aterrorizante que
seus berros. Ah, não! O que havia acontecido agora? Shakur acelerava o serviço e a
respiração entrecortada evidenciava sua tensão. Finalmente senti a pressão em meus pulsos
aliviar e uma pequena ardência tomar o seu lugar.
— Pode abrir os olhos. Assim que sairmos daqui, darei um jeito nisso — prometeu
acelerado, referindo-se às feridas abertas na palma da minha mão direita. — Venha! —
ordenou, guiando minhas passadas enquanto subíamos os degraus que nos separavam da
cela onde mamãe estava.
Shakur estancou o passo repentinamente e meu coração deu um salto quando não avistei
Richard na entrada da cela. Ao entrar, deparei-me com uma cena esdrúxula, quiçá, cômica.
Richard, com sua postura altiva quase recuperada e surpreendentemente bem menos
sonolento, tentava acalmar minha mãe fazendo barulhinhos baixos e cadenciados, desses que
a gente utiliza para chamar gatos. Mamãe, por sua vez, encontrava-se de costas para a porta,
mas permanecia sentada no lugar onde eu a havia deixado. Ao me aproximar, vi que ela tinha o
semblante de surpresa estampado no rosto, os olhos arregalados ao máximo e a boca
esboçava um sorriso estranho.
— Mãe?! Rick?!
— Juro que não fiz nada para assustá-la. Eu só entrei o mais rápido que pude e pedi
para que se acalmasse. Então ela ficou assim desde o momento em que pôs os olhos em mim
— explicou ele com as mãos na nuca, a fala ainda lenta.
Não tive como não sorrir. Sob o efeito dos danos causados pelos Escaravelhos de Hao e
sem a sua armadura de cavalheiro indestrutível, Richard era quase um rapaz como outro
qualquer. Quase.
— Está tudo bem, Rick — soltei duplamente aliviada por detectar que ambos estavam
em condições melhores. — Ela não está no seu normal e...
— Eleee é...? Filhhh de...? — Mamãe murmurava em estado de êxtase. Sua expressão
atordoada não era de alguém que via uma assombração, mas uma miragem. — Mais claross.
Seus olhossss...
— Calma, mãe. Está tudo bem — adiantei-me ao ver seu estado perturbado. — Esse é
Richard de Thron.
— Naummm! — ela berrou nervosa, jogando os braços frouxos no ar ao perceber que
Richard, após piscar para mim, afastava-se de nós, indo para o outro lado da cela. Pelo canto
do olho vi que ele obedecia a algum comando do seu líder.
— Mãe, temos que sair daqui.
— Naunnn consiggo, filha... — Stela piscou várias vezes e, oscilando entre momentos de
lucidez e insanidade, sorriu levemente para mim. Então ela fechou os olhos e tombou a cabeça
sobre o corpo. Ela havia me compreendido, mas suas forças não eram suficientes.
— Está tudo bem. Trouxe alguém que vai nos ajudar — apontei para a porta onde, com
os olhos fixos no chão, encontrava-se a altiva figura de negro. Senti um arrepio percorrer
minha pele e um nó de saliva prender em minha garganta com a sua reação.
— Ohhhh! — Mamãe tornou a levantar a cabeça e, ao visualizar a aproximação de
Shakur, seus olhos triplicaram de tamanho e ela começou a berrar.
— Está tudo bem, mãe! — tentei acalmá-la em meio ao pânico. Não sabia se ela
delirava, se havia pressentido alguma coisa, se o havia reconhecido ou se seria somente o
pavor de se deparar com a sinistra figura de negro. Seus berros assustadores ecoavam no
ambiente, assombrando-o ainda mais.
Como se isso não fosse o suficiente e para deixar a mim e Shakur ainda mais aturdidos,
ela segurou o rosto dele e desatou a chorar copiosamente.
— Isssmael!!!
Céus! Ela o havia reconhecido!
— Desculpppp...
Minha boca secou e, mesmo ardendo em brasas, todo meu corpo foi acometido por um
suor frio e paralisante. Desculpas? Stela estava pedindo desculpas a ele? A surpreendente
constatação: se mamãe não estava delirando, ela havia ocultado muito mais coisas de mim do
que eu podia imaginar. Por quê? Para me proteger? Por medo? Mas... Se fosse realmente
isso, por que eu podia jurar que havia muito mais escondido naquele pranto sofrido? Algo que
minha mente, ainda rodando dentro daquele furacão de emoções, não conseguia captar, mas
que deixava minha intuição em estado de alerta máximo e afirmava que seu choro
desesperado nada mais era do que uma confissão de culpa e arrependimento.
— Stela, não chore! Está tudo bem! — Shakur respondeu com a cabeça entre as mãos
dela e começou a arfar alto em sua tentativa de esconder a emoção que o tomava. — Por
favor, não chore!
Novo golpe. A inesperada reação de Shakur concluiu o serviço, congelando-me dos pés à
cabeça e me comovendo profundamente. Em sua ânsia por confortar minha mãe, Ismael, até
então o temido Shakur, deixou à mostra aquilo que tentava ocultar por detrás da sua máscara
e atitudes amedrontadoras: amor em seu estado mais puro!
Seu amor por Stela era tão grande que ele havia jogado nossa segurança de lado e
acabara de nos colocar em risco real. O timbre grave e alto da sua voz podia ser escutado de
longe e, se houvesse alguém nas redondezas, nossas chances de fuga haviam sido
aniquiladas. Mamãe não parava de soluçar. Agoniado ao extremo, ele a aninhava em seu peito
e implorava para que ela ficasse calma, mas a cena em andamento estraçalhava meus nervos
e chacoalhava minha razão com violência. A atitude inesperada de Shakur me fez vacilar. Ele
realmente se importava com minha mãe! E agora nós tínhamos algo em comum. Respirei
fundo e deixei todas as dúvidas que nutria em relação ao líder de Thron se desintegrarem e,
instantaneamente, senti-me conectada a ele de uma forma agradável e definitiva. Pouco
importava agora o que eles escondiam de mim. Talvez não houvesse outro momento e ele
precisava saber.
— Shakur, eu me lembrei, e-eu... — Com medo de perder a coragem, adiantei-me aflita,
sendo imediatamente atropelada por outro pranto enfurecido de minha mãe. Stela soluçava
ainda mais alto do que antes e dificultava as coisas para o meu lado. Intoxicada pela emoção
que me consumia, perdi a linha do raciocínio e tinha certeza de que ia sufocar a qualquer
instante.
— Por favor, Stela. Fique calma! — Shakur implorava e parecia mais desorientado do
que eu. O corpo de mamãe tremia em meio aos espasmos. Seu choro de agonia ecoava
livremente pelo sombrio abismo. Aquela situação era, no mínimo, apavorante. Nós dois
sabíamos que minha mãe era uma pessoa que não chorava. Em toda a minha vida eu só tinha
visto Stela chorar duas vezes. Duas únicas vezes em dezessete anos... — Eu sinto que ela
está mais consciente, então por que ela não para de chorar? Eu não entendo...
“Consciente”? Meu Deus! Aquela crise de choro era porque mamãe sabia o que eu ia
dizer? Seria sua capacidade de percepção tão forte assim?
— Ela pressente... — soltei um sussurro aflito, a respiração entrecortada.
— Por Tyron! — ele bradou exasperado. — Ela pressente o quê?!
— O-O que preciso tanto lhe dizer. — Tinha a sensação de que duas mãos
estrangulavam meu pescoço. — Que eu...
— O que precisa me dizer, Nina? — Sua voz trovejante perdeu a força e, de repente,
suas palavras chegaram baixas e cadenciadas, como se elas começassem finalmente a fazer
sentido para ele.
Era chegado o momento. Não podia voltar atrás. Faltava-me a coragem de ir adiante, de
quebrar a barreira do orgulho, do rancor, da incompreensão por ter sido esquecida por aquele
que mais deveria ter me amado. Por que ele havia nos abandonado? O que havia lhe
acontecido? Vê-lo em seu atual estado, o corpo terrivelmente deformado por cicatrizes de
queimaduras, silenciava-me de alguma forma. Mais do que isso, fazia-me querer desculpá-lo
por sua ausência em nossas vidas e dava-me a sensação de que ele já havia quitado seus
pecados com juros altíssimos. E, apesar do momento inoportuno, era a hora (não sabia se
teria outra!) de colocar um ponto final no drama do meu curto histórico de vida, de aceitar os
amores com que fui presenteada. Imperfeitos sim, mas meus. Uma inexplicável jornada de
sentimentos dilacerados, personagens feridos, destinos atormentados. Um caminho talhado
nas pedras da perda e da mágoa, mas, assim como afirmava uma voz interior, asfaltado com
o sangue da resignação dos fortes, daqueles que deram a sua carne para que eu pudesse
continuar e ir além. Faltava-me a coragem de pronunciar a palavra que faria a diferença, que
dissolveria parte da muralha que haviam construído à minha volta, dos muros que deveriam me
proteger, mas que agora apenas me sufocavam. Pude senti-la em minha boca, dançando de
um lado para o outro em minha língua, embalada por minha hesitante determinação.
A palavra.
Eu precisava liberá-la. Algo me dizia que ela poderia ser capaz de romper todas as
barreiras mágicas, a nossa única possibilidade de fugir dali e sobreviver. Segurei o ar com
firmeza, uma vez que não eram apenas as minhas mãos e pernas que tremiam. Meu
nervosismo atingira patamares tão altos que era possível sentir meu coração golpeando
brutalmente meus pulmões. Se era quase impossível respirar, concentrar-me havia se tornado
uma tarefa sobre-humana. Mas eu era uma híbrida! E deveria agir como tal! Fechei os olhos,
recuperei o fôlego e segurei a emoção que me paralisava.
— Por que nos abandonou? — indaguei, surpreendida com o inesperado desejo do meu
coração.
Céus! Aquela não era a pergunta!
— Hã? — a voz dele falhou e, após um instante de perceptível incompreensão, rebateu
feroz: — Eu nunca abandonei vocês! Eu jamais as abandonaria!
— Não?
— Nunca — disse taxativo e a certeza daquela palavra vibrou no meu peito. Nunca.
Mamãe soluçou mais alto. Estremeci.
— Eu me lembro — murmurei. — De você, de nós... — Enxuguei a lágrima que ardia em
minha face. Não conseguia acreditar que aquilo ia mesmo acontecer, naquele terrível momento
de tensão. A penumbra do ambiente em nada ajudava. Como seria a reação dele por detrás
da máscara? Ficaria feliz? Debocharia da minha desgraça?
— V-Você se lembra, Pequenina? — Sua voz saiu com dificuldade, a emoção no ar,
palpável. Ele abriu um sorriso indeciso.
Uma força maior havia se compadecido de mim e me presenteara com o dom da
recordação. Meus sonhos apagados foram redesenhados na atmosfera zirquiniana e minha
memória se comprazia com a enxurrada de lembranças. Em minha tenra infância, em todas
elas Ismael estava presente. E não era uma presença casual, mas sim repleta de carinho e
atenção. Ninguém havia lutado tanto pela nossa família quanto ele. Não havia Dale ou qualquer
pessoa em nenhuma das quatro dimensões que poderia ocupar o seu lugar.
— Sim, pai, eu me recordo agora — finalmente soltei a palavra que estava presa em
minha alma e queimava minha garganta. Pai.
Um silêncio interminável e, por um triz, todos os meus nervos não foram desintegrados.
Então o gemido de Shakur preencheu o sombrio lugar, deixando-o ainda mais triste,
dilacerante. Meu coração comprimiu no peito, num misto de dor e felicidade. Perdida em meu
drama particular, escutei um arfar forte e vi um Richard de olhos arregalados e passos
cambaleantes desaparecer atrás de mim.
Shakur colocou carinhosamente minha mãe no chão e veio em minha direção, abraçoume
com arrebatador carinho paternal, e, emocionado, encheu minha testa de beijos. Tomei
novo fôlego e segurando a perturbação que ameaçava aniquilar completamente com o que
restara da minha voz, acrescentei:
— Eu me lembro da gente brincado no Central Park e de você buscando uma flor para
colocar no meu castelo de areia. Recordo-me da mamãe dando bronca e a gente gargalhando,
de você me girando no ar e me chamando de...
— Pequenina — rouco, ele concluiu a frase para, em seguida, deixar escapar seu pranto
seco e cheio de estrondo, como vários trovões estourando dentro dos meus tímpanos. O
choro de Stela, por sua vez, silenciou. Meus joelhos bambearam e as lágrimas me cegavam.
— Eu sinto muito, filha.
“Filha”.
Sonhei com aquele momento por anos a fio em minha atribulada e solitária adolescência.
Imaginei os mais lindos lugares para aquela aguardada declaração e os mais diversos rostos
masculinos por detrás dela. Nada havia saído como eu esperava: o ambiente era hostil,
encontrava-me encurralada à beira de um precipício e corria risco de morte, sem contar que
não havia conseguido ver a face do meu tão sonhado pai, ocultada por suas terríveis cicatrizes
e uma máscara amedrontadora. Mas, ainda assim, não trocaria aquele momento por nenhum
outro. Ele não podia ter sido melhor ou mais verdadeiro. Ri da minha desgraça. Assim como a
face do líder de negro, minha vida sempre fora um grande caos. O meu caos. O mais incrível
é que eu me sentia muito bem dentro dele, perfeita para ele, e só agora eu conseguia
enxergar essa verdade atordoante.
Então tudo fez sentido.
Shakur havia me chamado de filha e, mesmo nas terríveis condições, eu compreendi que
era autêntico, que ele realmente sentia isso. Meu espírito regozijou dentro de mim e uma força
pulsante vibrou em minhas células. Mesmo sem saber seus motivos, tudo em mim o perdoava
por ter desaparecido de nossas vidas. Eu o perdoava.
— Precisamos ir, Nina — disse ele acelerado, acariciando meus cabelos e se afastando
de mim. Assenti, mas, naquele instante, tudo que eu mais desejava era manter meu rosto
afundado em seus braços protetores, voltar no tempo e tornar a sentir o bem-estar e a
segurança que só ele era capaz de me fazer experimentar.
O peitoral de Shakur subia e descia acelerado, prova real da sua emoção, mas ele não
perdeu tempo e envolveu Stela em seus braços. Mamãe, por sua vez, continuava a encarar
Shakur de forma catatônica, como quem vira uma assombração. Então, quando o líder de
Thron inspirou com força e, altivo, deu o comando, fui eu quem perdeu o chão ao presenciar
aquela cena inesperada. Ele não percebeu em sua preocupação e pressa urgentes, mas eu vi.
Eu realmente vi.
O rosto de mamãe se acendeu, suas pupilas dilataram e as bochechas ganharam cor,
mas algo único e incontestável, aconteceu. Algo pelo qual esperei a vida inteira e nunca tive a
oportunidade de presenciar, mas que acabava de se materializar bem na minha frente. Meu
peito inflou de felicidade repentina e o mundo, mesmo com suas trapaças e surpresas,
acabava de entrar em órbita e me brindar com um momento ímpar. Um instante apenas, mas
lá estava ele: o fulgurar dos seus olhos negros! O mesmo cintilar que eu me recordava de ter
visto nos meus sonhos, o mesmo brilho que vislumbrei na fotografia.
O brilho do amor!
Mamãe ainda o amava. E dentro de mim algo afirmava que aquilo era real e não um
momento de loucura. Céus! Nada daquilo fazia sentido! Se ela o amava com aquela
intensidade, por que fugira dele durante todas as nossas vidas?
— Shakur, há movimentação lá embaixo. — Richard entrou de rompante na cela e vibrei
de felicidade ao perceber que ele se encontrava em estado de alerta máximo.
Teria ele recuperado o ânimo tão rapidamente por ter presenciado o que acabara de
ocorrer ali?
— Von der Hess já sabe — sibilou Shakur após contrair a testa.
— Mas que droga! — praguejou Rick com a cara amarrada. Apesar de olhar em todas
as direções, era para o colossal abismo que ele encarava com um misto de ódio e frustração.
— Como vamos protegê-las nessas condições?
— Você se preocupa mesmo com ela... — Shakur estreitou os olhos em minha direção e
nos estudou por um instante. Abaixei o rosto, ruborizada, e Rick se empertigou no lugar.
Hesitante, ele caminhou para perto de mim, segurou minha mão e puxou meu corpo para junto
do seu.
— Claro que sim! Mas isso não vem ao caso agora. Temos que arrumar um meio de
salvá-las — respondeu e senti meu peito estufar. Shakur ameaçou um sorriso, satisfeito. — E
se o maldito bruxo liberar mais daqueles insetos?
Silêncio.
A pergunta pragmática de Richard dissera tudo. Não havia saída. Como eles nos
protegeriam durante o combate? Ali não havia o meu dom para me defender ou a magia de
Shakur para nos mandar para outro lugar. Mesmo que Rick e seu líder sobrevivessem ao
confronto contra uma multidão de soldados, sempre haveria o risco do ataque daqueles
escaravelhos malditos. Dessa vez, Von der Hess não arriscaria novamente. Shakur, Richard e
minha mãe seriam eliminados de imediato. Eu não. Estremeci com esse pensamento, mas o
rechacei momentaneamente.
— Vamos subirrr! — opinou Stela, pegando-nos de surpresa. Sua insanidade vinha a
calhar e me gerava certo alento: ela não sofreria com o que estava por acontecer.
— Não! Não! Não! — bramia Shakur.
Rick abriu um sorriso desanimado e começou a balançar a cabeça de um lado para o
outro. Shakur fechou os olhos e deixou sua cabeça tombar. Então, sem que nenhum de nós
pudesse esperar, mamãe levantou delicadamente a cabeça do líder de preto e acariciou sua
hemiface descoberta.
— Ismael! — liberou com a voz embargada de emoção. E, antes de perder
completamente os sentidos, olhou para cima e murmurou: — Luz.
Shakur soltou um gemido e afundou o rosto no corpo desacordado de mamãe. Rick
engoliu em seco, seus olhos arregalados comprovavam outra surpresa: seu adorado líder era
Ismael, um famoso mago tido como morto há muitos anos.
— Ela tem razão! Nós vamos subir! — Shakur levantou a cabeça repentinamente e olhou
para mamãe com admiração.
— Subir?! Não há saída naquela direção! — Richard protestou com a cara mais fechada
ainda, uma veia tremia em sua mandíbula.
— Marmon é um reino subterrâneo, Rick. Que estupidez a minha! — rebateu o líder
acelerado. — Eu havia reparado, mas não prestei a devida atenção. Os feixes de luz são
pontos de saída!

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