terça-feira, 29 de maio de 2018

CAPÍTULO 29 - Não fuja

CAPÍTULO 29
Abandonei meu animal quando o percurso ficou intransponível para ele. As incessantes
rajadas de vento continuavam a navalhar meu rosto, mas, diferentemente do que Shakur havia
dito, não eram capazes de me ferir ou enganar. Minhas passadas permaneciam firmes e minha
mente focada. Rezando para não me deparar com nenhuma besta da noite, atravessei a pé o
deserto das Dunas de Vento e, após ultrapassar uma comprida linha cintilante demarcada no
chão de trincas, foi fácil avistar o amontoado de pedras reluzentes, como gigantescos cristais
multicoloridos e brilhantes que se destacavam em meio à planície escura. Talhada nos cristais,
uma colossal escultura dourada se destacava. Dividida ao meio, a parte acima da cintura
assemelhava-se a um homem de fisionomia taciturna, torso musculoso e imponentes asas de
anjos. Sua parte inferior, no entanto, apresentava pernas felinas com escamas que se afilavam
em garras e exibia uma comprida cauda que terminava em um tridente. Seria essa escultura
Chawmin, o famoso portal pentagonal?
Distraída com a incrível visão, minha pulsação deu um salto ao presenciar o surgimento
de dois seres encapuzados de mais de três metros de altura às minhas costas. Camuflados
pelos uivos estridentes do vento, eles caminhavam com passadas lentas e ritmadas, como se
estivessem em um quadro de sonambulismo. Engoli em seco ao identificar o que cada gigante
trazia em seus braços: cadáveres! Como os corpos translúcidos tinham os olhos fechados, não
pude identificar se eram almas de humanos ou zirquinianos. De repente eles pararam sua
caminhada e suas enormes cabeças giraram na minha direção. Por debaixo do capuz de seus
mantos de cor vinho cintilante, deparei-me com olhos opacos e expressões vazias. Graças a
Deus! Eles eram cegos! Um deles abriu a boca e não havia língua, mas apenas dentes
assustadoramente afiados. Prendi a respiração quando eles interromperam o passo
cadenciado e suas narinas desproporcionalmente grandes se dilataram ainda mais. Então,
após um instante interminável de suspense e pavor, eles retomaram seu caminho. Quando os
dois seres se aproximaram de Chawmin, a parte inferior se abriu e uma língua bífida de mais
de cinco metros de comprimento, como um repugnante tapete pulsátil, desenrolou-se com
avidez e chicoteou o ar com violência. No instante seguinte, os gigantes zumbis jogaram três
dos quatro espectros sobre a língua faminta, que os enrolou com rapidez e recuou, fechando a
abertura atrás de si. Um único corpo translúcido foi erguido pelo gigante mais à esquerda e
desapareceu como mágica em suas mãos. Automaticamente os dois seres deram meia-volta e
retornaram ao caminho de onde vieram. Assim que os gigantes desapareceram do meu campo
de visão, dois outros idênticos aos anteriores surgiram com mais espectros em seus braços e
repetiram o processo, em um ir e vir mórbido e interminável.
Estremeci ao compreender perfeitamente o que acontecia bem diante dos meus olhos:
Os gigantes eram os famosos mensageiros interplanos, as criaturas místicas responsáveis
por levar os mortos da segunda e da terceira dimensões para o Plano ou o Vértice. Em seus
braços estavam os resgatados, as almas em forma de cadáveres espectrais que eram
depositadas nas margens das Dunas de Vento por resgatadores zirquinianos.
Respirei fundo e, aproveitando-me de um intervalo entre a saída de dois gigantes e a
chegada de outra dupla, corri como um raio em direção à abertura de Chawmin, a mesma de
onde havia emergido a horrorosa língua bífida. De repente escutei ganidos agudos, olhei para
trás e vi os mensageiros interplanos largarem os espectros no chão e, levitando no ar,
abandonarem o estado robotizado para, em meio a berros pavorosos, voarem com incrível
velocidade em minha direção. Céus! Eles haviam captado a minha presença!
Sem pestanejar, entrei em Chawmin e imediatamente a abertura se fechou atrás de mim.
Demorou alguns segundos até conseguir controlar o tremor em minhas pernas e recuperar o
raciocínio. Levantei a cabeça e fui tomada por grande assombro. Teoricamente eu deveria
estar no Vértice, o lugar assombrado pelo horror, pela tristeza e pelo sofrimento. Então por
que tinha a sensação de que havia algo errado? Pisquei várias vezes até compreender que o
local era surpreendentemente calmo e belo. Uma brisa agradável acariciava meu rosto e a
grama verde e repleta de flores coloridas circundava um lago cujas águas cristalinas refletiam
o cume nevado de uma cordilheira ao fundo. Um caminho de pedrinhas, ladeado por rosas
brancas e amarelas, conduzia para uma minúscula casa feita de tijolos brancos e marrons. Não
tive dúvidas e segui em sua direção. Abri a porta de madeira e meus olhos se contraíram com
a claridade ofuscante, dando-me a sensação de que, por um segundo, o chão havia tremido e
o mundo girado. Pisquei novamente e me certifiquei de que tudo estava no mesmo lugar. De
dentro da casinha emanava uma luz forte e era tudo branco e brilhante. Chão, paredes, teto,
tudo ali cintilava na cor branca. Até mesmo as rosas no vaso eram brancas! Deparei-me com
uma porta espelhada à minha frente. Ela era idêntica à que eu havia entrado. Para onde ela
me levaria?
— Seja bem-vinda, Nina — saudou uma voz agradável atrás de mim. Quando olhei para
baixo meu punhal havia desaparecido. — Isso não será preciso.
— De onde você surgiu? — girei o corpo rapidamente e dei um passo para trás.
— Eu já estava aqui quando entrou. Não percebeu? — indagou com candura um homem
de meia-idade, de pele clara e cabelos brancos. Assim como tudo ao redor, ele vestia um
terno impecavelmente branco e calçava sapatos brancos e lustrosos. Meu punhal dourado se
destacava em sua cintura. Como ele o havia retirado tão rapidamente de mim?
— Quem é você?
Ele apenas sorriu.
— Você parece cansada, filha. Tem fome? Quer beber alguma coisa? — A voz daquele
senhor era inesperadamente familiar, quase íntima. Estremeci.
— Vim me entregar. Mas com uma condição.
O sorriso dele se alargou.
— O que desejar.
Podia jurar que os olhos negros dele, os únicos pontos escuros no ambiente, brilharam
com mais intensidade. Algo se agitou dentro de mim e tive a estranha sensação de que já o
conhecia.
— Preciso de respostas — acelerei em dizer ao perceber que meu corpo respondia de
forma estranha àquele diálogo.
— Pergunte o que quiser. — Ele se aproximou ainda mais. Recuei e esbarrei no vaso,
que vibrou sobre a mesa branca situada no centro do ambiente.
— Por que a maldição não acabou já que eu pude ter um contato mais íntimo com um
zirquiniano? Por que não aconteceu o milagre que todos previram?
— Você é inteligente e isso me deixa orgulhoso, Nina.
— Responda — exigi.
— Acho que Tyron não levaria em conta como “ milagre” algo cuja procedência fosse
minha — disse com suavidade e um sorriso amistoso nos lábios. — Já que você é minha filha.
Abri a boca e meu corpo cambaleou, incerto como a minha voz.
— Dale é o meu pai!
— Ele foi apenas o veículo, Nina.
— Por que insiste em me enganar? Eu vim me entregar, droga! — esbravejei furiosa e,
por alguma razão, achei que internamente ele vibrou com a minha mudança de atitude.
— Não estou te enganando. Esperei por esse momento com tanta intensidade que não o
desperdiçaria por nada. — Seu semblante era de pura satisfação. — Os últimos dezoito anos
demoraram mais a passar que meus milhares de anos. Pareceram uma eternidade — soltou
uma risadinha baixa, como se achasse graça de sua própria piada.
Milhares de anos? Senti o chão das minhas poucas verdades amolecendo e minhas
pernas afundarem dentro dele. Decepção em forma de calafrio espalhava-se por minha pele e
todos os meus pelos eriçaram em sinal de perigo. Não podia ser.
— Quem É Você? — destaquei cada palavra com fúria.
— Eu sou o filho preterido que finalmente terá a sua chance de vingança — ele
respondeu com a voz empostada.
Naquele instante eu a reconheci: era a mesma voz que me chamou no abismo de
Marmon! Meus olhos se arregalaram e tinha certeza absoluta de que minhas pupilas estavam
ultrafinas. Ele pareceu se animar com o pavor em minhas feições.
— Eu sou Malazar, filho de Tyron! E o sangue que corre em suas veias é meu. Eu sou
seu legítimo pai, Nina!
Um buraco negro latejava furiosamente dentro de mim e sugava minhas forças. Tive de
me apoiar na mesa às minhas costas para não cair de joelhos no chão. Meu corpo estremeceu
por inteiro, meu coração desatou a socar o peito com selvageria e minha boca secou.
Malazar?! O temido demônio que habitava o Vértice?!
— Eu não sou sua filha! — grunhi em estado perturbado. — Pouco me importa se meu
maldito pai biológico vendeu a própria alma para poder ter um contato mais íntimo com minha
mãe! Isso não faz de mim sua filha!
Sem diminuir o sorriso no rosto, o homem de cabelos brancos se aproximou ainda mais
e, aproveitando-se de minha confusão mental, levantou meu queixo e me encarou.
— Olhe dentro dos meus olhos, Nina — ordenou com vontade e senti seus dedos
queimando minha pele. — Não reconhece sua herança genética?
Tentei reagir e empurrá-lo para longe, mas, em meio ao meu estado atordoado, depareime
com o que abalaria por definitivo com o último resquício de fé que lutava para se manter
vivo dentro de mim: dentro de suas pupilas negras havia um risco amarelo idêntico ao meu. A
mesma rajada amarela que apenas eu possuía!
— Não... — murmurei sem força.
Ele me soltou e liberou um suspiro de desânimo.
— Como eu possuí a alma dele por algum tempo, vou te mostrar o que pude presenciar
pelos olhos daquele covarde.
Malazar removeu o vaso da mesa, colocou-o no chão e apontou para o tampo branco
que se transformou em uma tela de projeção do passado. Flashes. Pedaços de cenas, como
trailers de filmes, começaram a ser exibidos sobre ele. Um homem bonito fazia um pacto com
Malazar logo após matar uma humana ao tentar possuí-la. Seu desespero em sentir algo
maior gerou-me aflição. Ele parecia um viciado em abstinência da sua droga. As
características físicas em comum não deixaram dúvidas: aquele era Dale, meu pai biológico.
Em seguida presenciei seu encontro com Stela, sua insatisfação quando ela lhe contou sobre a
gravidez, seu desespero quando ela fugiu grávida, sua morte.
— Ele não se suicidou. Você o matou — afirmei.
— Dá no mesmo — deu de ombros.
Pane cerebral. Um curto-circuito de horror me arruinava por dentro e não permitia minha
mente juntar os pontos e compreender os fatos.
— Então... Nunca houve amor entre eles — liberei as palavras que irremediavelmente me
rasgariam por dentro a arruinaram de vez meu espírito atormentado.
— Houve sim. Dale fez isso porque amava as sensações que a sua mãe gerava nele. E
amava a si próprio também, claro! Ele era um zirquiniano extremamente egoísta. Não que eu
ache isso ruim... — Abriu um sorriso diabólico.
Quis cegamente acreditar que meu pai havia feito a loucura de vender a alma porque
nutria um bom sentimento por Stela. Mas não! Eu nunca fui o fruto de um amor impossível
entre duas espécies distintas, mas sim o produto de um desejo doentio e avassalador. Eu era
o vírus da morte, a semente de uma negociação amaldiçoada. Meu mundo girava em um
furacão de dor e decepção, e era transformado em pó pela verdade arrasadora: Eu era a filha
do demônio, o fruto do mal em carne e osso! Estava explicado o porquê da vida infeliz e o
caminho de desgraça e morte que gerei naqueles que ousaram me amar. O fogo da destruição
pulsava em minhas veias. Minha mente acelerada sangrava. Meu coração sangrava. Minha
alma sangrava.
Eu nunca fui o milagre de Zyrk.
Eu era a maldição!
— Mas você não deve enxergar as coisas por este ângulo, Nina — Malazar colocou os
braços para trás e começou a andar em círculos. — Você é o produto de um desejo de
milhares de anos. Espero por essa oportunidade, quero dizer, por você, desde a minha maldita
queda.
— O que quer de mim? — questionei sem ânimo e sem uma gota de medo. Eles se
foram, abandonaram meu espírito juntamente com o que havia restado de bom.
— O que um pai sempre desejaria para a sua cria: glória e poder! — bradou com
entusiasmo.
— Não desejo isso.
Vendo que eu o observava com atenção, Malazar acrescentou rapidamente:
— E seus desejos realizados, claro!
— Meus desejos... — repeti as duas palavras lentamente. — Em troca de?
Ele alargou o sorriso.
— Vejo que estamos começando a nos entender — sibilou satisfeito. — Algo me diz que
você já deve saber.
— Abrir a vertente de saída de Chawmin — concluí.
— Exatamente! — Ele esfregou as mãos com vontade e olhou animado para a porta
oposta àquela que eu havia entrado.
— E o que ganharei com isso?
— Não eliminarei os zirquinianos por quem tem grande estima — disse a última palavra
de um jeito malicioso.
Senti meus músculos se contraírem de imediato e minha pulsação acelerar.
— O que você...? — grunhi. — Está blefando!
— Olhe atrás de você — Malazar passou os dedos pelas grossas sobrancelhas brancas
e, com jeito displicente, apontou para o espelho situado atrás da porta pela qual eu havia
entrado. — Talvez não goste do que verá por detrás desta porta, mas acho importante avisar:
não adiantará berrar. Ninguém do lado de fora será capaz de vê-la ou escutá-la.
Subitamente o espelho ganhou vida, como se fosse prata derretendo, e começou a ficar
transparente. O degradê de cinzas e imagens borradas tomou definição. Num plano abaixo do
nosso, como se a pequena casa em que nos encontrávamos estivesse suspensa no ar,
vislumbrei uma enorme arena circular rodeada por centenas de tochas fincadas no chão de
trincas. Atrás das tochas e fazendo o papel de arquibancada, a arena era envolvida por uma
neblina densa e fantasmagórica, impedindo-me visualizar qualquer coisa além do grande
anfiteatro. Havia cinco pilastras de pedra afastadas entre si e em cada uma delas avistei uma
pessoa amarrada e amordaçada. Meu coração começou a bater forte no peito quando
identifiquei os cinco condenados: John, Samantha, Tom, Shakur e Richard.
— Esse lugar... É a...? — paralisei sob terror.
— Minha adorada catacumba! O dia de hoje entrará para a história de Zyrk. Há centenas
de anos que não recebo oferendas e, de repente, sou agraciado com cinco de uma única vez
e... — E, encarando-me com vontade, acrescentou exultante: — Seis, na verdade. Meu tão
esperado presente!
Abaixei a cabeça, arrasada.
— Guimlel conseguiu escapar, mas Von der Hess e seus interessantes escaravelhos
capturaram esses daí das garras do Grande Conselho logo após você ter fugido. Fiquei louco,
achando que a tinha perdido de vez, mas quando a vi entrar nas Dunas de Vento compreendi
que a sorte finalmente retornara para o meu lado.
— Por que todos eles? — tentei mostrar controle dos nervos, mas minha voz esganiçada
me traiu.
— Por garantia. Os humanos são muito volúveis e você teve uma mãe humana... — deu
de ombros. — Enfim, quis me precaver. Se por acaso você se mostrasse irredutível e algo de
errado acontecesse com o zirquiniano de sua preferência, ainda assim haveria a chance de
uma troca. Sei que também nutre bons sentimentos pelos demais, quero dizer, por todos
menos a zirquiniana. A infeliz estava no grupo na hora errada... Puro azar da loura. Uma pena.
Até que ela é bem atraente...
— Você quer que eu abra Chawmin e em troca os manterá vivos?
— Viu como será fácil nos entendermos?
— Por que não aproveitou para sair daqui assim que abri a porta para entrar?
— Infelizmente não é assim que as coisas funcionam, filha. A vertente deve ser aberta
por dentro para que a profecia se cumpra. Nunca por fora. E tem que ser aberta por você.
— Sei. E o que acontecerá depois que você chegar à terceira dimensão.
Ele repuxou os lábios e arqueou as sobrancelhas.
— Não tenho interesse na terceira dimensão, Nina — esquivou-se.
— Entendo — murmurei. — E o que fará com a segunda?
— Ah! A segunda dimensão... Ela sim! Tão interessante, tão cheia de sentimentos
contraditórios e enlouquecedores, emoções carnais... — Seus olhos negros chegaram a
chamuscar de excitação e Malazar parecia delirar com a ideia. — Vou cuidar bem dela.
Prometo.
— Estamos no Vértice, então?
— Sim.
— E a sua catacumba fica exatamente onde?
— Dentro dele, obviamente! — Pela primeira vez desde que o nosso diálogo começara
ele não parecia satisfeito em me responder.
— Como pode isso se eles ainda estão vivos? — Recordava-me muito bem das almas
que eram largadas na língua bífida. Eram espectros, e não corpos com carne e osso como os
cinco condenados.
— Como eles seriam oferendas se já estivessem mortos, Nina? — questionou com
desdém. — É o único caso em que isso é possível. Os zirquinianos entregam as vítimas aos
mensageiros interplanos que, por sua vez, entram no Vértice e as amarram na catacumba. É o
único dia em que não posso ter acesso à minha catacumba antes do anoitecer — ele estreitou
os olhos e um sorriso ameaçou surgir em seus lábios. — Mas não precisarei esperar dessa
vez já que permanece noite desde ontem. O universo pressente que uma nova era se
aproxima.
Engoli em seco ao ver que ele tinha razão: o fraco sol de Zyrk não havia se levantado.
— Desista. Prefiro morrer a sobreviver sabendo que fui a causadora da destruição das
segunda e terceira dimensões — soltei determinada. Colocaria um fim naquela terrível
maldição. Ela seria aniquilada juntamente a mim.
— Você vai abrir a vertente de saída para mim — destacou cada palavra enquanto girava
o rosto e apontava para a porta à minha frente.
— Não vou! — enfrentei-o e compreendi a grande questão em jogo: eu tinha o livrearbítrio
e, contra ele, mesmo com todo o seu poder, o diabo nada poderia fazer.
— Arrr... Cale-se! — ele bradou alto e segurou meu rosto com violência, suas unhas
perfurando minha pele. Por uma fração de segundo pude enxergar o que estava camuflado por
detrás de seu meticuloso disfarce: um ser de pele deformada, de cor vermelho vivo, boca
enorme e cavidades orbitárias completamente negras. Desvirei o rosto e o iluminado lugar
havia desaparecido e dado espaço a um oceano de sombras, frio e uivos de dor. Meu corpo
tremeu por inteiro e, tomada por pavor e cólera, lancei minhas mãos em direção ao rosto
demoníaco. No instante seguinte, o senhor de aparência bondosa e cabelos brancos
gargalhava e me soltava. — Não há nada de bom que vingue aqui, Nina. Nem mesmo esse
interessante poder em suas lindas mãozinhas. Mas lá fora poderá ser de grande utilidade...
— Eu não vou sair daqui.
— Não abuse da minha paciência, filha — ameaçou.
— Eu não sou sua filha! E eu não vou abrir aquela maldita vertente! — rosnei e dei um
passo para trás. Minha perna esbarrou no vaso de flor que ele havia colocado no chão. Não
pensei duas vezes. Eu o peguei num rompante e, segurando-o com firmeza, lancei-o com força
contra o tampo da mesa. O vaso se quebrou em diversos pontos, estilhaçando-se no ar e se
espatifando no chão. Não me importei com a ardência que se alastrou por minha pele, mas
não soltei o pedaço maior que havia remanescido entre meus dedos.
— Veremos — ele estreitou o olhar e abriu um sorriso frio. — Quero ver quantos
morrerão antes de você mudar de ideia.
— Prefiro me matar a abrir Chawmin! — enfrentei-o apontando a borda cortante da
cerâmica quebrada na direção da minha jugular.
Malazar franziu a testa e repuxou os lábios.
— Se quiser ficar eternamente aqui, vá em frente. Espero que não se canse da minha
companhia.
Perdi o chão e minhas mãos paralisaram no ar. Droga! Suicídio era um bilhete apenas
de entrada para o Vértice!
— Mas, caso não faça a estupidez de se matar e se mantenha irredutível quanto à nossa
troca, morrerá de velhice aqui também — acrescentou com sarcasmo ferino.
— Nunca houve alternativa... — balbuciei aturdida com as terríveis opções.
— Há uma. Você pode escolher ficar com aqueles que estima. Você pode salvá-los. —
Sua voz ficou repentinamente aveludada e falsa. A oferta demoníaca parecia fácil demais,
tentadora demais.
— E com isso acabaria com a vida de milhares? — indaguei mordaz e sem me deixar
enganar. — Não, obrigada.
— Foi você quem pediu — ele deu de ombros, arrumou a lapela do terno impecável e,
sorrindo, apontou para a porta pela qual eu havia entrado. — O show está começando e você
poderá assistir de camarote.
Estremeci ao escutar gritos de pavor. Em seguida, o espelho da porta ficou transparente,
permitindo-me ver o que ocorria na catacumba. Novo grito, agora de dor excruciante, fez-me
congelar por inteira. Eu reconheci a voz: Tom! Tremendo da cabeça aos pés e sem conseguir
me conter no lugar, dei alguns passos em direção à maldita porta. Pelo canto do olho, vi que
Malazar me observava satisfeito e atento.
Não!
O grito ficou agarrado em minha garganta ao entender o que estava acontecendo
naquele exato instante: amarrado pelas cordas, o musculoso Tom soltava berros em meio a
prantos e se debatia violentamente enquanto, de costas para mim, um animal gigantesco e
camuflado por uma névoa escura mordia e arrancava uma de suas pernas. A cena era tão
horrorosa que foi preciso Tom desmaiar para que eu conseguisse escutar os gritos abafados e
de desespero dos demais, em especial os de John.
Um estrondo altíssimo, como de um gigantesco trovão, ressoou em meus tímpanos e o
chão tremeu com violência, fazendo-me desequilibrar. A fera soltou um grunhido alto e se
afastou, interrompendo seu ataque a Tom. O barulho ensurdecedor vinha da espessa névoa
fantasmagórica que envolvia a grande arena. Em seguida, uma forte ventania, como um
tornado, varreu a catacumba e avançou, fazendo vibrar a pequena casa onde eu e Malazar nos
encontrávamos. Por uma fração de segundo, a luz se foi e, como mágica, a neblina que
envolvia a arena se dissipou. Em meio ao oceano de sombras, achei ter visto milhares de
cabeças, uma multidão de pessoas miseráveis bramindo e socando o ar com os braços.
Pisquei os olhos e, quando os reabri, a luz havia retornado ao lugar e uma voz colérica
retumbava ao nosso redor.
— Demônio traiçoeiro! Você não vai matar Richard!
Céus! Era a voz de Guimlel que esbravejava no ar em forma de tornado?!
— Por que não? Não era esse o nosso acordo? Ou achou que poderia me enganar, caro
mago? — Malazar respondeu com descaso.
“Acordo”?
— Foi você quem quebrou nosso pacto! — Havia medo entremeado à voz colérica de
Guimlel. — Richard mal teve a chance de procriar!
— Ah! Esse detalhe... — Malazar parecia se divertir com a aflição de Guimlel. — Mas eu
o salvei e o fiz o guerreiro mais forte de Zyrk.
— Ele já era assim! — Guimlel o interrompeu.
— Já se esqueceu de que, se não fosse por mim, ele não teria sobrevivido ao ataque
mortal de uma das minhas feras? Estava praticamente morto quando você apareceu aqui com
ele ainda menino. Esqueceu-se de que me deu a sua alma em troca da vida dele?
Oh, não!
— Não! Eu troquei a minha alma para que ele vivesse até a maturidade, para que Richard
completasse seu ciclo zirquiniano!
— Mas não me contou nada sobre o fato de Richard vir a ser o procriador daquele que
colocaria um fim às minhas adoráveis criaturas! — esbravejou o demônio. Seus olhos escuros
davam provas de que sua ira crescia. — Você tentou me enganar e eu fingi cair no seu jogo.
Simples assim. Como é mesmo aquele ditado humano? Ladrão que rouba ladrão...
— Demônio maldito!
— Grato pelo elogio — suspirou com a voz restabelecida. — A única variável inesperada
nessa equação era que a híbrida se encantaria justamente por ele. Incrível os desígnios de
Tyron, não? Papai não cansa de me surpreender.
— Se você matar Richard, não ficará com a minha alma!
— Ela já é minha, caro mago. — Malazar soltou uma risada.
— Mas não a entregarei facilmente! — bramiu a voz de Guimlel com novo estrondo,
como se vários trovões retumbassem ao mesmo tempo. — Suas feras malditas não são páreo
para mim e, enquanto tiver forças, não permitirei que nenhuma delas coloque as garras em
Richard!
— Será? — vociferou o diabo erguendo as mãos para cima. Sua pele adquiriu o tom
vermelho vivo, mas apesar de suas feições hostis seus traços humanos não se alteraram. —
Tenho uma surpresinha para você.
Novos berros vindos da catacumba chamaram a minha atenção. Ela não era invadida
apenas por uma, mas por três feras ao mesmo tempo. Para meu desespero, as três sombras
gigantescas, com seus contornos ainda camuflados pela densa névoa escura, passaram pelas
pilastras externas, aproximando-se lentamente do lugar onde Richard se encontrava. A
ventania tomou proporções assustadoras e o chão tornou a tremer. As feras ganiram alto,
nervosas. Em uma língua estranha, Malazar conversava com elas, instruindo-as. Dois animais
bufaram e alteraram sua trajetória, desaparecendo em meio à bruma fantasmagórica,
enquanto um terceiro continuava seu caminho mortal em direção a Richard.
— Não! — gritei apavorada ao ver a sombra da besta maligna crescer a frente de
Richard. Mesmo no plano mais alto onde eu me encontrava, pude ver que Rick não se moveu
e, corajoso como sempre, enfrentou o animal. Vi quando a sombra do monstro se chocou
contra seu corpo e ele se encolheu de dor. Uma nova tempestade de vento envolveu a arena.
A voz de Guimlel chegava fragmentada e suas palavras não faziam sentido. A besta ia matar
Richard!
Sem suportar a dor em meu peito, minhas mãos começaram a suar frio e minha pele a
arder. Olhei para baixo e vi um discreto filete de sangue escorrendo por entre os meus dedos.
Eu não os havia furado com a cerâmica quebrada, mas com os espinhos das rosas!
Esmagada na palma da minha mão, uma minúscula e estranha planta queimou em meus
olhos e coração.
Drahcir!
Minha mente atordoada começou a girar, minha visão embaçou e meus pensamentos me
transportaram para longe dali, para o dia em que Leila me explicou sobre a falsa beleza das
rosas e as virtudes que poderia encontrar oriundas das fontes mais improváveis. “Aguarde os
espinhos dele caírem e terá muito a ganhar.” Como não havia percebido a simples charada?
Drahcir... Era Richard escrito ao contrário!
Leila afirmou que aquelas plantas esquisitas eram guerreiras inatas, que desabrochariam
e floresceriam com a adversidade e que nos presenteariam com a sua própria morte, caso
quiséssemos a sua companhia. E foi exatamente o que aconteceu. Rude e de atitudes
controversas, Richard lutou contra si e contra todos, salvou-me inúmeras vezes e agora morria
por ter me amado.
Era a minha vez de retribuir e ainda me restava o livre-arbítrio. Eu não conseguiria salválo,
como ele havia feito por mim, mas podia ser sua Drahcir e morrer junto a ele e às pessoas
que mais estimava. Suicídio estava fora de questão, mas também não permitiria que o
demônio vencesse, jamais abriria a vertente de saída de Chawmin!
— Acaba de perder tudo, besta maldita! — rosnei e, antes que Malazar pudesse me
impedir, abri a porta pela qual havia entrado e saí como um foguete, despencando em direção
à catacumba.
Pensei que escutaria o berro de ira de Malazar, mas, em seu lugar, uma estrondosa
gargalhada reverberou pelo meu espírito e toda a terceira dimensão.
Oh, não!
O demônio havia me enganado.
O horror estava apenas começando.

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