quarta-feira, 23 de maio de 2018

CAPÍTULO 24 - Não Fuja

CAPÍTULO 24
Não havia pranto que pudesse exprimir o sofrimento em minha alma. A luta havia sido em
vão. Não pude salvar minha mãe e, pior, eu a perderia pela segunda vez. Senti-me pequena e
impotente. Um nada.
— Mãe! — abracei-a assim que alcançou nosso nível.
— Vamos embora, Pequenina! Não temos mais nada a fazer por aqui! — Havia urgência
na voz grave de Shakur. — Rick, preciso que me dê cobertura. Estou exausto.
Richard assentiu com um breve movimento de cabeça. John não perdeu tempo e me
puxou para junto dele, colocando-me em seu cavalo.
Os sete cavalos dispararam pelas planícies inóspitas, deixando, para alívio de todos, a
sombra do exército de Leônidas para trás. Havia muitas cabeças a prêmio naquele pequeno
grupo: a de Richard, a de John e, em especial, a minha. Isso sem contar que todos os demais
seriam condenados ao Vértice caso fossem descobertos nos dando cobertura.
Já estava entardecendo e, pelo que havia entendido, para chegar a Windston, o reino
onde Wangor, meu avô, era o líder, o percurso que poderia ser feito em apenas um dia levaria
o dobro do tempo. Como todos os caminhos possíveis estavam sendo fortemente vigiados
pelo Grande Conselho, olheiros dos quatro clãs e mercenários atrás de recompensas,
sobrara-nos fazer nossa escapada por um percurso penoso e bem mais longo, passando por
regiões praticamente intocadas de Zyrk, áreas cobertas por uma bruma densa, quase tão
assustadora quanto os sombrios Pântano Negro e a Floresta Fria. Os cavalos obedeciam,
mantendo-se concentrados em nossa estranha marcha. Até eles pareciam pressentir que se
tratava de uma missão suicida. Entretanto, à medida que subíamos um acentuado aclive, eles
começaram a reclamar, bufando, relinchando e diminuindo o trote.
A ventania que ladeava nosso percurso ganhava força, dificultava nossa visão e parecia
debilitar ainda mais a respiração de Stela. Seus gemidos de dor ficavam cada vez mais altos e
frequentes e mamãe se contorcia nos braços de Shakur. Tentei afugentar meu desespero em
forma de angústia pronunciando preces e afundando meu rosto nas costas de John. Mas os
berros de minha mãe apunhalavam meus ouvidos e arruinavam minha fé. Não precisava checar
para saber que seu estado deteriorava a cada minuto. Bastava olhar para todos ao meu redor.
Era fácil identificar o atordoamento nas faces dos soldados em presenciar uma humana viva na
terceira dimensão. Eles sabiam que isso era impossível, e, como zirquinianos, eram capazes
de captar o rápido definhamento da sua energia vital.
Zyrk cobrava seu preço.
Mamãe estava morrendo a cada instante, a cada metro que nos afastávamos de Marmon
e da magia negra de Von der Hess, e não havia nada que pudéssemos fazer para evitar. Os
uivos altíssimos do vento pareciam alertas sombrios sobre o perigo iminente. Não eram
apenas os exércitos que estavam à nossa procura. Eles seriam o menor dos nossos
problemas se não alcançássemos um abrigo antes do pôr do sol.
— Argh! Ninaaaa — mamãe urrou e se contorceu ainda mais. Detectei um discreto
gemido de Shakur. Ele tinha a metade visível de seu rosto deformada de tensão.
Levei as mãos ao pescoço. Um vento frio penetrou em minhas narinas e tive a sensação
de que ia sufocar. Eu precisava fazer alguma coisa e não podia esperar. Tinha de ser agora!
— John, pare! — soltei de maneira atropelada.
— Negativo. — Propositalmente ele acelerou sua cavalgada. Não gostei.
— Minha mãe não está bem — rosnei.
— É muito arriscado! Logo vai anoitecer e esse lugar...
— Não podemos ficar aqui, John! — bradou Samantha, visivelmente nervosa enquanto
apontava para uma área nebulosa à nossa direita. O local era castigado por rajadas
incessantes de ventos violentos. Estremeci ao identificar a grande quantidade de corpos
transparentes amontoados uns sobre os outros em sua margem. Céus! Eram cadáveres?!
Que lugar macabro era aquele?
— Ela não vai aguentar! — rebati com força e me forçando a não pensar em mais nada.
Imediatamente vi o cavalo de Richard se aproximar de nós. Seu usual semblante de poucos
amigos estava pior. Na certa havia captado a tensão entre mim e John.
— Nina, nós não podemos... — John fechou a cara quando, ao olhar por sobre o ombro
para falar comigo, deparou-se com a sombra do cavalo de Rick. Por um momento havia me
esquecido completamente de que eles não se toleravam.
— Estamos muito próximos das Dunas de Vento! — gritou em pânico um soldado
enquanto olhava para todos os lados. — Por que resolveu fazer esse caminho, John?
— Chega! Vocês farão o que eu mandar! — John retrucou intolerante. — Sigo instruções
sigilosas de Wangor.
Mamãe emitiu novo berro de dor dilacerante e, sem hesitar, Shakur puxou as rédeas de
seu animal. Ele, assim como eu, também pressentira:
Stela estava em seus momentos finais!
O grupo reduziu a marcha e, num rompante, saltei do cavalo. John tentou me impedir,
mas Richard entrou em minha defesa, colocando seu animal à frente do de John. Deixei os
dois para trás e corri em direção a Shakur e Stela.
— Podem continuar — bramiu Shakur para o grupo. — Nós os alcançaremos.
— Negativo! Ninguém sai daqui sem a minha ordem! — bradou John nervoso. — Que
armação está tramando, Shakur? Levá-la para Thron ou para algum ritual de magia?
— Ele só quer ajudar! — rebati furiosa.
— Você o defende agora? — John esfregava o rosto, olhando de um lado para o outro.
Samantha estava desorientada, pedindo a cada segundo que déssemos continuidade à
viagem, que corríamos risco. Tom acalmava dois outros soldados que agora davam os
primeiros sinais de preocupação com o anoitecer de Zyrk. O pânico assumira o controle da
situação.
— Eu vou ficar!
— Nina, não! — perturbado, John saltou do cavalo e segurou meu braço.
— Eu não acredito nisso! — bufou Samantha ao longe.
— Nina, por favor, obedeça — John respirou profundamente e pediu de forma gentil sob
os olhares descrentes dos seus subordinados. — Esta região é muito perigosa.
— Você sabe que ela não tem condições de terminar a viagem — implorei olhando bem
dentro de seus olhos cor de mel. — Não me peça isso, John.
Indiferente ao diálogo tenso que era travado ao seu redor, Shakur já havia colocado
mamãe no chão repleto de trincas, acomodando-a próxima a um grupamento de rochas.
Ajoelhou-se ao seu lado e, fazendo uma espécie de oração, massageava-lhe as costas. Ela
parou de berrar e o semblante de dor se amenizou. Apesar das olheiras profundas, alguma cor
foi conferida ao seu rosto pálido. Senti uma pontada de alívio quando vi sua respiração
descompassada ganhar alguma constância.
— Colocaremos todo o grupo em risco por... — Com a testa franzida, John engasgou
com o que diria a seguir. Como o líder do grupo, todos esperavam sua reação enérgica a uma
insubordinação como aquela, mas, ao mesmo tempo, John era um dos poucos a compreender
a importância daquela humana na minha vida. — Por ela.
— Ela — destaquei a palavra, fazendo força para domar a emoção que me invadia — é a
minha mãe.
— Uma humana! — bradou Samantha dando reinício ao murmurinho entre os soldados.
— Se ficarmos aqui por causa dela, corremos risco de morrermos todos!
— E-Eu... Não podia imaginar que isso aconteceria — John apertou minha mão entre as
dele. — Nós ficaremos — ordenou com surpreendente determinação. — Dei a minha palavra
ao seu avô que daria a minha vida para mantê-la viva.
— Ah, John! Obrigada! — Deixei qualquer constrangimento de lado e, agradecida, joguei
meus braços pelo seu pescoço e o abracei com vontade. Mesmo na frente de seus homens,
John não hesitou e respondeu ao meu abraço, envolvendo meu corpo com carinho e devoção.
Por um instante, experimentei novamente o calor e o bem-estar que pareciam emanar das
sardas da sua pele. Os gestos de John sempre me encantavam. Ninguém conseguia ser mais
nobre do que ele.
— Vá! Estarei aqui quando tudo acabar — acariciou meu rosto e, sem que eu pudesse
esperar, tascou um beijo apaixonado nos meus lábios. Meu coração deu outro salto no peito e
petrifiquei no lugar. De canto de olho vi o semblante de cólera de Richard. Samantha e todos
os demais tinham os olhos arregalados. Minha mente entrou em pane total. Estava zonza
demais para entender o que se passava em meu peito, o que pensar ou como agir. Céus!
Minha mãe estava morrendo naquele instante!
— Peguem as cordas e unam os cavalos entre si! — Tom deu o comando sensato em
meio ao atordoamento generalizado e relinchar dos animais.
Um chamado emocionado me resgatava da complicada situação:
— Nina!
Foi difícil segurar a pulsação frenética do meu coração. A voz de mamãe saiu baixa, mas
perfeita, sem o menor sinal de desorientação. Seus lábios se curvaram em um sorriso e os
olhos, antes distantes, estavam fixos nos meus. Shakur paralisou no lugar. Os outros podem
não ter notado, mas vi quando ele apertou os lábios, tentando camuflar a emoção que o
tomava.
— Mãe! — Corri ao seu encontro e segurei com desespero a mão que ela estendia em
minha direção. Sua face ganhara vida momentânea e os olhos encharcados de lágrimas não
paravam de girar de mim para o líder de negro.
Desatei a chorar, tomada por um misto de felicidade e horror. Deus havia sido
misericordioso e permitido me despedir dela. Dessa vez seria completamente diferente
daquela noite fatídica em que eu a perdi pela primeira vez, durante o maldito espetáculo da
Broadway. Eu deveria estar agradecida por ter a chance de conversar com ela mais uma vez,
confessar todo meu amor e lhe pedir desculpas. Mas, onde encontrar voz se no instante
seguinte eu a perderia definitivamente?
Por que tinha a sensação de que a maior ferida da minha vida seria cruelmente reaberta
justamente no momento em que ela começava a cicatrizar? O que eu havia feito para ser
punida dessa maneira? Por que deveria sofrer tanto por amor? Sim, eu deveria estar
agradecida por ter aquele momento único com ela, por poder abraçá-la e beijá-la como nunca
antes. Mas eu queria mais. Eu queria, como qualquer garota da minha idade, ter a minha mãe
por mais tempo em minha vida. Minha mãe... A fé dentro de mim era abalada pela irrefutável
certeza: aquela era a despedida final. Não haveria outro lugar ou momento. Nunca mais eu
veria seus olhos abertos ou escutaria sua voz. Nunca mais.
— Nina! Minha menina... — Foi mamãe quem rompeu o silêncio. Seu choro compulsivo de
alívio e dor misturando-se ao meu. Eu a abraçava com todas as forças que haviam me restado
enquanto ela beijava minha face, as mãos passeando pelos meus cabelos úmidos de suor e
lágrimas. Tudo em mim ardia. Cada poro, cada célula latejando de emoção, sofrimento e
felicidade.
— Saiam todos! Vou deixá-las a sós — disparou Shakur sem encarar mamãe. O coitado
fazia de tudo para esconder o lado queimado de sua face do olhar atento dela.
— Ismael, fique! — ela pediu com urgência ao vê-lo se afastar de nós. — Eu preciso de
vocês dois.
— Ismael?! — O coro de espanto entre os demais soldados saiu em uníssono.
— E-Ele é...? Shakur é Ismael, o grande mago?! O que morreu na segunda dimensão?
— Samantha atropelava as perguntas com a voz esganiçada. Ela parecia estar diante de uma
assombração.
— Não ouviram o que ele disse? Saiam de perto! — escutei o rugido de Richard ficando
para trás, mas, em seguida, nada mais importava. Estava surda, dentro da bolha de emoção
que me tragava para junto dos dois. Esqueci completamente do público que nos rodeava. Tudo
do lado de fora desmoronou e agora só existia o mundo particular entre mim, Stela e Shakur.
— Por favor, Ismael, chegue mais perto — tornou mamãe a pedir.
— Como você...? — indagou perturbado o líder de negro. Os olhos azuis arregalados
confidenciavam um misto de constrangimento e perturbação. Ele acatou seu pedido, mas
manteve-se a uma pequena distância.
— Como soube que era você? — Ela abriu um sorriso triste e inclinou levemente a
cabeça. — Eu o reconheceria em qualquer dimensão, Ismael. Acabei de encontrar outros
parecidos, mas nunca existirão olhos mais lindos que os seus — ela olhou de relance para um
Richard de expressão taciturna a alguma distância de nós.
— Foi só o que me restou — sussurrou ele com aspereza na voz, mas havia algo
camuflado dentro dela: ansiedade?
— Não diga isso, Ismael — ela quis acariciar sua hemiface exposta, mas, visivelmente
tenso, ele virou o rosto. — Eu não devia ter feito o que fiz, eu me arrependo tanto, eu...
Outra pancada no peito. Ela se arrependia?
— Não temos tempo e vocês duas precisam conversar — retrucou ele. Sem que ele
pudesse esperar, mamãe se virou rapidamente e segurou sua mão. Shakur enrijeceu ao ver os
dedos deformados aprisionados entre os dela.
— Por favor — arfou mamãe nervosa antes de começar a tossir forte e se curvar sobre o
próprio abdome. Sua respiração estava falhando. — Nós três.
— Mãe, calma! — respondi com a voz embargada.
— Não teremos tempo, meu amor — murmurou ela com os olhos fixos nos meus.
Ela sabia. Mamãe era uma receptiva acima da média e já havia pressentido a nefasta
situação muito antes de se deparar com a expressão da angústia e despedida estampadas em
minha face. Atrás dela, vi o altivo Shakur encolher os ombros e se curvar, a cabeça
balançando inconformada de um lado para o outro.
— E-Eu preciso dos dois... De você e de Ismael.
Meus olhos queimavam, em brasas, dentro da enxurrada de lágrimas incontroláveis, e me
dei conta, apesar de tudo, de que não estava preparada para aquela conversa.
A conversa.
As perguntas que me assombravam há dezessete anos seriam finalmente respondidas, e,
no entanto, algo em mim alertava com veemência que eu me decepcionaria, que sofreria ao
escutá-la, que seria melhor deixar tudo como estava. Eu sabia que a estava perdendo, que
aqueles seriam nossos últimos instantes juntas, mas havia uma mão estrangulando minha
garganta e me deixando sem voz.
— Perdão, filha. — Havia quilos de ternura e arrependimento embutidos em seu pedido.
— E-eu sei que... Pode não parecer... — arranhou um choro. — Tudo que eu fiz foi por amor,
para manter você viva. Eu te amo tanto, tanto...
— Eu sei, mãe — afundei a cabeça em seu colo e, mesmo enfraquecida, consegui sentir
a satisfação que dela emanava por poder acariciar meus cabelos. Meu ar se fora e agora eu o
encontrava apenas nos soluços altos que emitia. — Eu também te amo muito, mãe. Eu fui tão
egoísta, mimada, e-eu...
— Shhhh! Você não teve culpa. Eu devia ter lhe dado as explicações que me pedia, devia
ter percebido que você crescia, mas — tornou a tossir com força, e, com a cabeça apoiada
em seu ventre, escutei sua respiração entrecortada e as batidas fracas de seu coração — um
filho nunca está grande e amadurecido o suficiente para uma mãe, meu amor. Especialmente
se sua única filha vinha com um dom especial. Uma condição que a faria ser caçada pelo resto
de seus dias. Perder você seria o mesmo que morrer, Nina. E eu nunca conseguiria aceitar
isso. Foi por não aceitar esse destino que cometi erros terríveis. Erros que me consumiram de
arrependimento pelo resto dos meus dias. — Ela tentou se ajeitar no chão. Em vão. Estava
exaurida. Eu e Shakur a ajudamos a virar de lado enquanto mamãe lutava para respirar. —
Como ter abandonado Ismael, seu..., seu... — Ela olhou fixamente para o líder de negro e,
com os lábios trêmulos segurando novo choro, não conseguiu prosseguir. Ele também a
encarava agora, num misto de atordoamento e fascínio, as pupilas vibrando alucinadamente.
— Meu pai. — Minha boca se encarregou de concluir a frase.
Shakur e mamãe se viraram para mim ao mesmo tempo. Stela assentiu, emocionada,
deixando as lágrimas rolarem em silêncio. Shakur permanecia com a expressão vidrada, os
olhos azuis cintilando dentro de um sorriso tímido de inesperada felicidade.
— Sim, meu amor — balbuciou ela com a voz vacilante. — Ismael cuidou de você desde
que estava em minha barriga. Ele pode não ter sido seu pai biológico, filha, mas nunca foi um
pai adotivo. Ele te amou desde o início.
— Mesmo sendo um...
— Zirquiniano — ela completou ao perceber minha hesitação. — Sim. Não acredite nessa
história de que todos eles são insensíveis, Nina.
— Então eu fui concebida com amor? Você e Dale se amavam? — aproveitei seu
raciocínio e questionei esperançosa.
Ela franziu a testa, fechou os olhos e respirou fundo.
— Entenda, filha... — Sua voz falhou. — Nós éramos muito jovens naquela época.
Não era a resposta que eu esperava. Abaixei a cabeça, segurando a onda de decepção
que se avolumava em meu peito, e senti os dedos trêmulos de Stela levantando o meu queixo.
Ela me olhava com tanta intensidade, tanto amor, que derreti por dentro.
— Não deve dar tanta importância ao ato em si, filha. No momento em que eu te descobri
dentro de mim, eu já te amava com todas as minhas forças. Você me conhece melhor do que
ninguém e jamais poderia duvidar disso. — Stela tentou modular a voz, mas foi trapaceada
pela própria emoção e sua fala saiu arranhando. — Mas, sim. Na época eu achava que amava
seu pai, Nina.
— E ele?
— Dale estava perdido, filha. Não fez por mal. Não tinha ideia da dimensão do seu erro.
— Um fraco! — Shakur franziu os lábios em uma linha fina e soltou um rosnado baixo.
Céus! Ele ainda morria de ciúmes de Dale!
— Sim, Ismael. E por isso mesmo você precisa perdoá-lo — adiantou-se ela. Coitada!
Ela ainda não sabia que Dale havia morrido!
— Nunca! Você não entende, ele...
— O que eu não entendo?
— Argh! — ele tornou a rosnar entredentes. — Nada.
— Então você também não vai me perdoar, Ismael? — indagou mamãe e sua expressão
facial se deformou num emaranhado de expectativa, medo, preocupação. Havia chegado à
pergunta crucial. Aquela que a consumira por toda sua vida. — E também não vai aceitar sua
filha de volta?
Perdoá-la? Shakur me aceitar de volta? Estremeci, tomada pelo calafrio paralisante que
percorreu meu corpo da cabeça aos pés. Sentei-me ao seu lado para observar, catatônica, a
decisiva conversa entre os dois.
— E-Eu, eu... — Shakur ficou repentinamente pálido. Ele não esperava por aquela
pergunta.
Nem eu.
— Por favor, Ismael. Cuide dela. Nina nunca teve culpa de nada. Era uma menininha
quando fugi — mamãe implorava e agora não fazia mais questão de segurar as palavras e
lágrimas. Ela havia chorado naquele dia mais do que em toda a sua vida e aquilo me abalava
de uma forma inédita e sufocante. Não suportava vê-la sofrer.
Shakur abriu a boca duas vezes, mas não conseguiu proferir som algum. Estava perdido
dentro de seus próprios tormentos.
— Ismael, por favor. Não seja orgulhoso. Você sabe que meu tempo está acabando,
que... — ela insistiu mais uma vez e dessa vez sua tentativa deu certo: rompera a armadura
que o enclausurava.
— Shhh! Poupe suas forças. — Agoniado, Shakur tentou acalmá-la, colocando um dedo
nos lábios de minha mãe.
— Eu ainda o amo muito, Ismael. — Ela segurou a mão dele e, ignorando minha
presença, mamãe o puxou repentinamente para junto de si. Os rostos ficaram muito próximos.
Visivelmente constrangido, Shakur tentou se desvencilhar, mas ela o segurou com seu restante
de forças. — Nunca deixei de te amar durante todos esses anos. Nunca.
Então foi a vez do altivo líder de Thron soltar um gemido triste e se aninhar no ventre
dela. Mamãe chorava copiosamente e Shakur tinha a respiração acelerada, o peito subindo e
descendo incessantemente.
— Então por que me abandonou, Stela? — O discreto choro por detrás da voz rouca fez
meu coração encolher no peito. — Por que fez isso comigo?
— Porque entendi tudo errado e fui uma estúpida! — mamãe soluçava agora. A dor deles
impregnava em minha pele e ossos. Assistir àquela cena entre os dois era torturante demais.
— P-Porque achei que você ia tirá-la de mim, Ismael.
— Roubar a Pequenina de você?! De onde você tirou essa ideia medonha? — ele
bradou, transtornado. Levantou a cabeça e, esquecendo por um momento de suas cicatrizes,
encarou-a.
— Foi um mal-entendido... — ela arfava. — Ao chegar em casa em determinada tarde,
eu o vi cochichando com Nina, combinando que a levaria para algum lugar... E depois Nina fez
segredo sobre o assunto... Então eu surtei! — soltou um berro aflito. — Achei que você estava
esperando o momento certo, o aniversário dela, para tirá-la de mim. Achei que você, após
todos aqueles anos sem poder ter nenhum... — ela pensou na palavra e engasgou ao olhar
para mim. — Achei que a traria consigo para essa dimensão, que havia cansado de tudo e
queria sua vida e prestígio zirquinianos de volta. Não seria de estranhar, afinal, todos aqueles
anos e não poder me tocar intimamente e...
— Sequestrar a Pequenina? Desistir de vocês por não poder possuir seu corpo
inteiramente?! — Shakur tentou esbravejar, mas sua voz saiu como um choro fino. — Por
Tyron, Stela! Como pode ter pensado isso de mim? Eu já me sentia o zirquiniano mais
afortunado do universo por ter a minha família! A mulher e a filha cujas vidas eram mais
importantes que a minha própria vida! — Mamãe se encolhia e seu choro triplicava de volume.
A voz do líder de Thron saía com estrondo. — Vocês eram a minha vida, Stela! Eu não
acreditei que você havia me abandonado. A princípio imaginei que resgatadores a haviam
tirado de mim. Virei um bicho raivoso procurando pelas duas. Vasculhei cada canto da sua
dimensão. — Ele parou para pensar nas palavras, mas sua expressão era tão urgente quanto
febril. — Uma voz me dizia que havia algo errado naquela farsa de Istambul, mas eu jamais
poderia imaginar que sua imaginação fosse tão fértil e cruel a tal ponto. Você sabia que havia
o risco e foi adiante. Concluiu a farsa e colocou fogo naquele carro maldito. Sabia que, se eu
estivesse por perto, eu as encontraria — arfou alto.
Mamãe levou as mãos à boca e arregalou os olhos.
— Você não...?
— Sim, Stela! Foi o que aconteceu! — Ele rebateu transtornado. — Quando achei que
as estava perdendo, que eram vocês duas morrendo naquele carro em chamas, decidi que a
minha história havia acabado ali e que não adiantaria prosseguir sem as duas. Eu partiria com
você e Nina e tinha fé que, de alguma maneira, tudo havia sido um grande mal-entendido e que
nos encontraríamos novamente, em um lugar melhor.
— Oh, Deus! Você entrou no carro para nos salvar?! — mamãe gemeu alto, num misto
de horror e sofrimento extremo.
Shakur assentiu com um imperceptível movimento de cabeça.
— Não! — O berro dela camuflou o som afônico que saiu da minha garganta.
Em choque.
Todo meu corpo paralisou e foi difícil encontrar coerência entre o que era dito e o que
minha mente conseguia assimilar. Cristo Deus! O terrível acidente que ele sofreu na segunda
dimensão foi por nossa causa?! Richard havia comentado sobre isso, afirmando que seu líder
nunca falava a respeito e ainda sofria toda vez que tocava no assunto. O corpo queimado,
todas as terríveis cicatrizes, marcas irremediáveis de um sentimento genuíno carbonizado...
Por nos amar demais?!
— Minha intenção era afastar os resgatadores de uma vez por todas, fazê-los acreditar
que estávamos mortas. Para os zirquinianos sempre foi tudo ou nada. Não costumam
confabular. Jamais poderia imaginar que você estaria lá, eu... — ela tornou a gemer. — Oh,
céus! Eu não queria que fosse assim, eu... — a voz culpada de mamãe saía cambaleante,
abafada. Ela mantinha o rosto afundado nas mãos trêmulas.
— Ismael morreu naquele dia, Stela — sentenciou ele.
— Não. Não. Não. — Mamãe balançava tanto o rosto exangue de um lado para o outro
que comecei a me sentir mal. Ela não suportaria ouvir aquilo tudo em seu péssimo estado e ia
acabar morrendo naquele instante. Mas, ao mesmo tempo, uma voz ferina me dizia que,
mesmo sem intenção, ela era a culpada de toda aquela tragédia e que, portanto, precisava
ouvir o que ele tinha a dizer. Shakur tinha esse direito. — Acredite-me! Eu te amo, Ismael! Eu
fiz tudo errado, mas eu te amo tanto, meu amor. Nunca deixei de te amar.
— Eu não sou mais a pessoa que você amou, Stela. Virei um monstro.
Stela tornou a segurar o rosto dele entre as mãos.
— Não, você não é e nunca será! — guinchou com vontade. — Para mim você continua
lindo. Ainda vejo tudo o que me fez apaixonar por você, Ismael. O fogo não destruiu seu porte
majestoso, o sorriso perfeito e os olhos azuis mais brilhantes do mundo. — Ela tinha a testa
franzida e suas narinas, empreendendo esforço acima do suportável, abriam e fechavam de
maneira exagerada. Sua respiração estava cada vez mais difícil. — Mas, principalmente, as
labaredas não foram capazes de consumir o que você tem de mais precioso, e que se
encontra aqui dentro: — apontou para o peito dele — seu genuíno altruísmo. Você é a pessoa
mais generosa que já conheci, meu amor. Não merecia ter tido o azar de se apaixonar por uma
humana cheia de defeitos como eu. Eu destruí a sua vida. — Todo o corpo dela tremia em
meio à respiração descompassada.
— Não diga isso — balbuciou ele, olhando para ela com sofrimento e fascínio
arrebatador. — Não conheço zirquiniano que pôde experimentar o que senti por você durante
cinco anos.
— Ismael, e-eu... Me perdoe! — engasgou.
— Claro que eu lhe perdoo, minha pequena. Eu nunca deixei de te amar.
Em meio às lágrimas, Stela soltou um gemido de felicidade e, fazendo esforço
descomunal, puxou-o para junto de si e lhe tascou um beijo apaixonado. Shakur enrijeceu de
início, mas respondeu com um suspiro rouco, deixando um braço envolver cuidadosamente o
corpo fragilizado dela enquanto a mão livre passeava pelos cabelos negros de mamãe.
Arrepiada da cabeça aos pés, meu corpo era eletrocutado por descargas de frio e calor
extremos, minha pele marcada com brasas da emoção, do entendimento e do perdão. Havia
valido a pena. Eu finalmente obtivera as minhas respostas. Muitos erros, desencontros,
fatalidades, mas, antes de mais nada, eu não tive um passado em branco. Havia uma história
de amor e cumplicidade por detrás dele. Eu fui amada. Muito amada.
— P-prometa-me, Ismael. P-prometa que vai cuidar de Nina para mim — ela suplicava.
— Eu vou cuidar, minha pequena. Claro que eu vou cuidar — ele a acalmava.
— Nina, filha, e-eu... — O tom arroxeado de sua pele confirmava que mamãe piorava
rapidamente.
— Não, mãe. Por favor, não... — Eu a abracei com desespero, afundando o rosto febril
em seu corpo combalido e a beijando sem parar.
— Você é mais forte do que imagina, Nina. M-muito mais — sussurrou em meu ouvido. —
Cuide do seu pai para mim. P-prometa-me — pediu e colocou uma de minhas mãos entre as
de Shakur.
— Eu prometo, mãe — balbuciei, mas não escutei som saindo da minha boca. Havia uma
faca enfiada em minha garganta e labaredas de fogo consumiam a parte de trás dos meus
olhos. Perdi o ar e tudo em mim tremia. Shakur pegou a minha mão com vontade e soltou um
som gutural, curvando-se sobre o próprio corpo.
— Eu te amo, filha. Mais que tudo na vida. M-Mais que a minha própria vida. Lembre-se
disso. — Sem conseguir suportar o peso dos braços, mamãe fez um esforço descomunal para
acariciar meus cabelos e beijar minha testa.
— Eu te amo ainda mais, mãe. Eu te prometo, por tudo que fez por mim, que eu serei
forte. Não vou te decepcionar. Eu vou lutar, mãe — atropelava as palavras em estado de
perturbação.
Ela soltou um suspiro forte, de despedida, e meu corpo respondeu, estremecendo em
resposta. Minha mãe estava partindo, estava me deixando. Não. Não. Não!
— Mãe? Mãe! — balbuciei em pânico.
— Os sinais... aqui. — Ela ainda conseguiu curvar ligeiramente os lábios, forçou um
sorriso e seus dedos tocaram de leve o meu peito antes de caírem, frouxos e sem vida ao seu
lado.
Havia acabado.
— Não! — pedi afônica. Não consegui berrar e já havia chorado em minutos o que
deveria ser destinado a uma vida inteira. Apática, deixei meu corpo exangue debruçar sobre o
dela. Não sei quanto tempo fiquei ali, agarrada a ela e anestesiada no maremoto de
sentimentos que massacrava minha alma.
Ao longe distingui alguns berros tensos e senti alguém puxando meus ombros.
— Nosso tempo acabou. Precisamos ir, Pequenina — murmurou Shakur em meu ouvido.
Assenti e, antes de sair, depositei um último beijo na face gelada de Stela. Alheia a tudo e
submersa em minha dor, só então me dei conta de que Shakur e Richard haviam envolvido o
corpo de mamãe com pedaços de pedras de todos os tamanhos.
— Que tolice é essa? — um dos soldados revirou os olhos, impaciente. — Para que
proteger um corpo sem vida?
Na certa se referia à grande quantidade de corpos abandonados pela região.
— É assim que procedemos em Thron — respondeu Richard de forma aérea e com a voz
ligeiramente anasalada. Se eu não o conhecesse tão bem, podia jurar que estava emocionado.
— Não podemos perder mais tempo! — retrucou o outro soldado.
Olhei para Shakur que piscou discretamente para mim. Ele acabava de me comover
novamente. Todos os demais podiam não desconfiar, mas eu sabia que aquilo era uma
espécie de enterro, sua última oferenda à minha mãe.
— Temos que correr! — John bradou no instante em que a última pedra era depositada
na sepultura.
Sem olhar para trás, montei no cavalo de Shakur. Decidira fazer o restante da viagem
com ele. Satisfeito, o líder de negro veio ao meu encontro e assumiu as rédeas.
— Obrigada, Shakur — enxuguei a última lágrima e murmurei no seu ouvido assim que o
grupo acelerou em velocidade máxima pelas planícies fantasmagóricas de Zyrk. — Por tudo
que fez por ela.
— Pai — sussurrou enquanto envolvia minhas mãos. — Gostaria que me chamasse
assim a partir de agora, Pequenina.
Abracei-o com força e senti meu coração esquentar dentro do peito. Um sorriso tímido
surgia em meus lábios com a nova constatação: eu havia perdido minha mãe, mas acabava de
recuperar meu pai.

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