segunda-feira, 28 de maio de 2018

CAPÍTULO 28 - Não fuja

CAPÍTULO 28
Um ruído do lado de fora da gruta.
Uma sensação estranha, como um pressentimento ruim, rompeu a aura de plenitude que
me envolvia e me fez despertar. Reabri os olhos e senti meus cabelos sendo acariciados pelos
dedos frios de uma brisa que escorregava pelas brechas da entrada da caverna. A gruta
estava em total silêncio e os animais ainda dormiam. A bolha de luz já havia desaparecido e
nenhuma claridade se insinuava. Ainda não havia amanhecido? Para minha surpresa, meu
corpo experimentava uma sensação de vigor e disposição como se eu tivesse descansado por
vários dias e não apenas por alguns minutos. Regozijei ao sentir uma respiração quente, lenta
e ritmada embrenhar-se pelos meus cabelos e meu corpo nu ser envolvido por braços e
pernas musculosos. Meus lábios se abriram num sorriso involuntário ao perceber que havia
adormecido nos braços do meu amado. Richard, por sua vez, encontrava-se em um sono
profundo e sua fisionomia serena conseguiu me cativar ainda mais. Sua face perfeita era
parcialmente iluminada pela chama da tocha, agora fraca, e ele parecia tão feliz, tão humano e
mais novo. Rick sempre fora tão carrancudo, sério e cheio de responsabilidades, que por
vezes esquecia-me de que ele era muito jovem também. Pensei em passar os dedos em seus
lábios e acariciar as cicatrizes de seu peitoral, mas a sensação ruim me paralisou, afligindome.
Não me permitia aceitar que aqueles seriam nossos últimos instantes juntos. Eu o amava.
Ele me amava. E nós éramos... perfeitamente compatíveis! O milagre havia acontecido! Um
zirquiniano e uma humana, ou melhor, uma híbrida, finalmente colocaram um ponto final na
terrível maldição entre os dois povos e consumaram o ato de amor!
A sensação obstrutiva expandia-se no meu peito, deixando-me inquieta.
Um alerta.
Uma ideia.
Uma última tentativa.
— Que Deus nos ajude, meu amor — balbuciei baixinho.
Sufocando meus sentimentos e prendendo a respiração, retirei os braços de Richard que
repousavam em minha cintura e me afastei lenta e cuidadosamente. Sem fazer barulho,
coloquei o vestido, peguei um punhal em meio as coisas dele, calcei as sandálias e parti. Rick
tinha razão: seria bem mais fácil ir embora sem despedidas.
Novo ruído do lado de fora idêntico ao anterior e que em nada se assemelhava ao de
uma fera da noite. Deparei-me com algo brilhando no céu a vários metros de onde eu estava.
Aquilo era algum tipo de sinalizador?
O brilho desapareceu instantaneamente e a lua reptiliana de Zyrk tornou a ser a única
claridade no céu negro. Ela não dava sinais de que deixaria o posto tão cedo e o sol, da
mesma forma que naquele dia que fugi pela Floresta Fria, parecia não ter vontade de acordar.
Estremeci ao escutar passos acelerados vindo em minha direção. Sem opção de fuga, encolhime
em um amontoado de rochas a alguma distância da gruta principal. A visibilidade era
péssima, mas ainda assim foi impossível não reconhecer a silhueta que surgia de dentro da
penumbra.
— John! O quê...? — indaguei perturbada.
— Nina?! — ele arregalou os olhos e perdeu a cor. — O que você está fazendo aqui
fora?
— O que você está fazendo vindo... de lá? — imprensei-o com fúria. — John, foi você
que...? — apontei para o céu atordoada com a resposta cristalina bem diante dos meus olhos.
Foi ele quem lançou o sinalizador! — Oh, não! Não me diga que...
— Volte para a caverna! — rosnou com a expressão acuada.
John acabava de estraçalhar parte das minhas certezas. Tive de levar a mão à boca e
segurar o arfar de decepção. Não podia ser verdade.
— Você nos traiu — balbuciei em estado de atordoamento.
— Você entendeu tudo errado! Foi para o seu bem... Eu não... — Ele recuou e parou de
me encarar.
— John, o que foi que você fez? — insisti.
— Foi para te proteger. Guimlel me assegurou que vai me ajudar a salvá-la e que...
— Guimlel?! — bufei com ira e sarcasmo. — Guimlel só pensa na tal procriação! Ele me
quer morta e vai me entregar ao Grande Conselho!
— Não é verdade! — ele rebateu nervoso, suas sardas ainda mais rubras do que antes.
— Ele me garantiu que vai me ajudar a fugir com você para a segunda dimensão. Que nos
dará cobertura, e que...
— Ele te enganou, John — soltei arrasada.
— Não é nada disso! — desnorteado, ele andava de um lado para o outro, a dúvida
deformando suas feições. — Você está cega porque aquele maldito resgatador de Thron a
enfeitiçou, mas eu fiz a coisa certa. Eu vou te proteger e você vai sair viva de Zyrk!
— Não vou a lugar algum com você e Guimlel!
— E por que não? — bradou e segurou meu braço com força. — Por causa do Richard?
É por isso que não quer sair de Zyrk?
— John, me solta!
— Que merda, Nina! — Os dedos de John tremeram em minha pele. — Ainda não
percebeu que ele está te enganando desde o início, está te usando em proveito próprio?
— Eu amo Richard e ele me ama.
— Como pode ser tão inocente? — John esbravejou ainda mais enlouquecido. — Ele
nunca te amou!
— Me solta!
— Eu não nego... — abriu um sorriso frio demais para sua face sempre tão acolhedora.
— O que você gera em nossos corpos é enlouquecedor. Que zirquiniano abriria mão disso,
hein? Richard com certeza adora o que você gera nele, mas o que ele realmente ama é o
poder, Nina.
— Não é verdade — encarei-o com fúria e, num rompante, confessei: — Nós
conseguimos!
— Vocês... Vocês o quê?! — John travou no lugar e, com a expressão deformada pelo
espanto, seus dedos me soltaram.
— Você sabe o que eu quis dizer, raios! Nosso contato... Não teria sido possível se nós
não nos amássemos!
John abriu um sorriso sarcástico em meio à fisionomia derrotada.
— Você acha mesmo? — Ele balançava a cabeça. — Pois os rumores que correm por
Zyrk dizem o contrário, Nina. Eles afirmam que Richard está armando uma jogada das
grandes.
— Mentira!
— Por que se ilude? Quando chegar a hora, ele vai te enganar e vai te trocar. — E,
taciturno, completou: — E você sabe que eu não minto.
Sua afirmação fez meu corpo encolher, murchando impotente diante da terrível verdade:
De fato,John nunca havia mentido para mim.
Novo bombardeio.
Estilhaços das minhas certezas sendo atirados violentamente ao ar.
Eu estava caindo, afundando...
O peso da dúvida me impulsionando ainda mais para baixo.
Em quais braços deveria me agarrar? Em quem confiar?
— Droga! — O berro de John me arrancou do terrível torpor. Tive de piscar várias vezes
até compreender o que estava acontecendo: John me empurrava para trás de um grupamento
de pedras. Barulho de cascos de cavalos se aproximando rapidamente. — Corra, Nina!
Esconda-se ali!
Montados em seus cavalos, três homens surgiram lentamente às suas costas e cercaram
John, encurralando-o. Um deles, de porte muito alto, vinha à frente e checava os arredores
com a fisionomia desconfiada.
— Quem são vocês? O que querem? — John não recuou.
— Onde ela está? — questionou o que parecia ser o líder dos três.
— Não sei sobre o que estão falando — John arqueou a sobrancelha e se empertigou no
lugar. Os três homens não pareciam estar para conversa e sacaram suas espadas
imediatamente. John fez o mesmo.
— Fale, resgatador. Último aviso antes que se arrependa.
— Apenas três homens? — John alargou o sorriso.
Os homens avançaram. John eliminou um deles com velocidade incrível e partia para
cima do segundo quando a luta foi interrompida por uma voz grave que ecoava pela planície
acidentada.
— Parem! — Protegido por sua bolha de energia branca, Guimlel surgia como uma
assombração. — Sinto muito pelo inconveniente, John. São tempos estranhos e uma escolta
se faz necessária.
— Guimlel?! — John se virou, num misto de surpresa e alívio.
— Por que demorou tanto a me contatar? Onde ela está?
— Tive contratempos. — A resposta de John saiu seca; a voz, hesitante.
— Como assim? A híbrida não está aqui? — Guimlel fechou a cara.
John pressentiu algo de errado no ar. Não respondeu.
— Ele mente! — soltou um dos homens. — Ele estava discutindo com alguém quando
chegamos. Ouvimos a voz de uma mulher e não era de Samantha!
— O que está me escondendo, John? — Guimlel vasculhava o entorno com olhos de
águia. Prendi a respiração.
— Nada.
— Não me faça ficar nervoso. — Guimlel abaixou a cabeça e começou a esfregar a calva
lustrosa.
— O que você está escondendo de mim, Guimlel? — Foi a vez de John indagá-lo.
Uma gargalhada ao longe.
— O-O quê? Quem mais está aí? Apareça! — John bradou nervoso, mantendo a espada
em punho. Guimlel e os dois homens não se mexeram. Por uma fresta entre as pedras e a
penumbra, detectei uma nova nuvem branca de magia dando proteção a Napoleon e ao
grupamento de homens do Grande Conselho que caminhava em sua direção. — O-O que
Napoleon está fazendo aqui?
— Sinto muito, meu jovem. Mudança de planos. — Guimlel abriu um sorriso frio. — Hoje
é o dia da procriação. Prendam Richard e Samantha. Eliminem a híbrida e os demais!
— Seu canalha! Você me traiu! — John esbravejou como um bicho raivoso e partiu para
cima de Guimlel.
— Ah! Por que os resgatadores sempre preferem pelo pior modo? — Guimlel soltou um
suspiro e suas pupilas ficaram instantaneamente verticais. A espada de John tombou no chão.
John levou as mãos ao pescoço, seus lábios ficaram roxos e ele começou a sufocar bem
diante dos meus olhos. Guimlel elevou os braços, fazendo com que o corpo de John fosse
suspenso no ar, sacudindo-o com violência. Céus! Ele o estava matando! Eu precisava ajudar!
Quando minhas pernas reagiram e me levantei para correr em sua direção, meu corpo foi
puxado com força de volta ao lugar onde estava. Escutei um urro altíssimo, de dor, e todos os
pelos do meu corpo arrepiaram. O corpo de John tombava no chão. Um punhal havia acertado
a mão suspensa do mago e salvara John de seu ataque mortal.
— Não saia daqui, Nina — Richard checava meu estado numa fração de segundo e, num
misto de alívio e ira, ordenou num sussurro antes de correr em disparada.
— Rick?! — atordoado, Guimlel se curvara sobre o próprio abdome e apertava a mão
para estancar o sangue.
Sem perder tempo, Richard partiu para cima de Napoleon e dos soldados do Grande
Conselho. John recuperava sua arma e fazia o mesmo. Meu estômago revirou ao escutar os
ganidos de cólera e tilintar de espadas quando os homens de branco entraram na gruta
principal. A luta era travada naquele exato momento e sabia que ela pouco duraria. Os magos
se valeriam de seus poderes para dar fim àquela rebelião. Eu precisava ajudá-los, mas tinha
ciência de que minha presença só pioraria a situação.
Restava-me uma única saída!
Com a atenção de todos totalmente focada no confronto, corri em direção à gruta onde
havia passado a noite.
— Você terá de ser rápido, amigo! — pedi ao montar no primeiro cavalo que encontrei.
Concentrando todas as forças em meu objetivo maior, saí em disparada dali, cavalgando
acelerada pelas planícies acidentadas, enfrentando todos os perigos da mórbida madrugada
de Zyrk. Uma rajada de vento frio lavou meu rosto com fúria arrasadora. O cavalo perdeu o
equilíbrio, relinchou alto e empinou nas patas traseiras. Seria Guimlel tentando me impedir?
— Ôooo! — tentei acalmar meu animal.
— Ninaaaaaa! Aí não! — escutei o berro de Richard ficando para trás e olhei por cima do
ombro. Ao longe eu o vi se desvencilhar de Guimlel e correr desesperado em minha direção ao
perceber que eu ia para as Dunas de Vento. Pobre Rick! Mal sabia que era exatamente esse o
plano, o atalho para o meu objetivo maior e, provavelmente, o único lugar que ainda não
estaria vigiado por zirquinianos. Talvez aquele fosse, de fato, o meu fim. Talvez não houvesse
volta no caminho que decidi tomar. Mas ali, entre eles, minhas chances seriam nulas de
qualquer maneira.
Eu ia pagar para ver.
Vi a expressão de pavor agigantar-se nos vincos do seu rosto irretocável. Lancei-lhe um
sorriso triste, de despedida, respirei fundo e, dando-lhe as costas, encarei o meu futuro:
Chawmin!
Iria atrás das minhas respostas e enfrentaria meus demônios.
Eu entraria no portal pentagonal!

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