quinta-feira, 24 de maio de 2018

CAPÍTULO 25 - Não fuja

CAPÍTULO 25
— Ela captou o sinal — adiantou-se Richard para Shakur. Em meio à cavalgada, ele
posicionou seu animal estrategicamente ao lado do nosso. — Dê-me a mercadoria. Irei no seu
lugar.
“Ela”? Sobre o que ele estava falando? Ir aonde?
— Não. Eu que tenho que fazer isso.
— Não se faça de tolo. Se existe alguém que pode “encontrá-la”, esse alguém sou eu.
Além do mais, sua presença aqui é mais importante que a minha. — Richard abriu um sorriso
frio e estendeu a mão em direção ao líder, que hesitou por um instante, mas em seguida lhe
passou uma trouxinha de pano. Reconheci o tecido negro: pertencia à calça comprida de
Shakur e isso explicava por que ela tinha sua barra rasgada. Richard rapidamente guardou o
pequeno embrulho e em momento algum olhou para mim.
— Não é a especialidade dela — murmurou Shakur.
— Tem sugestão melhor?
Shakur balançou a cabeça negativamente.
— Rick, aonde você vai? — indaguei preocupada ao vê-lo fazer uma reverência para o
líder, puxar as rédeas do animal e mudar de direção. — O que você vai fazer?
Ele nada disse e, aproximando-se de mim, acariciou o meu rosto rapidamente. A
expressão séria demais e o mar revolto em seus olhos azuis me fizeram estremecer. Shakur
não o encarou de volta e suspirou forte.
— Rick?! — berrei desorientada com o novo acontecimento, mas ele já havia partido,
galopando feito um louco pelo vale desértico. O grupo diminuiu a marcha e o observou se
afastar sem nada comentar.
Eles já sabiam que isso ia acontecer?! Mas que droga estava acontecendo ali?
— Richard é muito rápido. Vai conseguir. — As palavras de Shakur saíram com
dificuldade.
— Vai conseguir o quê? Aonde ele foi?
— Eu não posso dizer, Pequenina. — Sua expressão ficou mais sombria que o normal. —
Para sua proteção.
— Mas...
— Vai ficar tudo bem. Tenha fé — suspirou e me surpreendeu com a mudança de
assunto: — Acho que sua mãe não poderia ter ficado mais feliz com o lugar que a enterramos,
Nina.
— Por que diz isso? — Minha cabeça estava longe.
— Stela sempre gostou de ficar ao ar livre, adorava passear em dias de ventania —
disse com a voz embargada.
— Tão próximo àquele lugar abarrotado de cadáveres espectrais... — murmurei. — O
que existe naquelas Dunas de Vento?
— Em suas margens é onde depositamos os resgatados, Nina. Ali eles serão conduzidos
para o Vértice ou para o Plano pelos mensageiros interplanos. — O sorriso foi varrido de seus
lábios. — As Dunas de Vento são também o caminho mais curto, e mortal, para o portal
pentagonal.
— Você quer dizer Chawmin?
— Sim.
— Por que “mortal”? — inquiri.
— Porque, à exceção do único mago de Zyrk que controla os elementos do ar, nenhum
zirquiniano saiu vivo das Dunas de Vento até hoje.
Estava explicado o porquê do medo que todos nutriam pelo sombrio lugar.
— Quem é esse mago?
— Guimlel.
— Chegamos! — John interrompia nossa conversa ao avistar uma grande montanha.
Uma cortina de vapor, como uma bruma fantasmagórica, escapava das ranhuras do chão
ao nosso redor. A nuvem de fumaça claustrofóbica era gélida, de odor ruim, e se embrenhava
pelos nossos poros com uma facilidade assustadora. Segurando a respiração, procurei por um
abrigo, mas não vi nada, a não ser um grande paredão rochoso. Os cavalos bufaram e
desaceleraram. Pareciam travar uma batalha com os próprios nervos, assim como nós. John
passava as orientações às pressas. Dois soldados desceram com rapidez dos seus animais,
pegaram um tronco de árvore estrategicamente escondido sob a terra e, utilizando-o como
braço de alavanca, posicionaram-no sob uma rocha de formato ligeiramente triangular. A pedra
rolou para o lado e evidenciou o que estava por detrás: uma gruta. A alguma distância dali, vi
quando os soldados repetiram o processo com outra rocha de formato semelhante, surgindo
mais uma caverna.
— Presente de Wangor! — anunciou John para o grupo cuja expressão aflita foi
imediatamente substituída por uma de alívio.
— Cada reino tem os seus truques para se proteger das bestas da noite, Nina —
explicou-me Shakur em baixo tom enquanto descíamos do nosso cavalo.
— Josef e Ellir, prendam os animais na outra caverna. Nós pernoitaremos nessa aqui —
comandou John. — Na volta tragam lenha para fogueira. Tom, ajude-me com a água e os
mantimentos.
A noite caía rapidamente e novo pavor se agigantava no meu peito. Onde estaria
Richard?
— Entrem! — Samantha acendeu uma tocha e guiou a mim e Shakur para dentro da
gruta. Fiquei assombrada com a descoberta. A abertura estreita disfarçava com perfeição uma
ampla câmara circular. Ela dispunha de uma comprida mesa de madeira feita de troncos de
árvores amarrados e era ladeada por dois bancos compridos do mesmo material. Um pequeno
baú de couro dispunha-se um pouco mais adiante, encostado na única pilastra de pedra
presente. Mais nada. O lugar se prolongava para um labiríntico corredor em zigue-zague cujo
fim não consegui enxergar.
— Lá dentro existem três pequenos aposentos — informou a loura ao me pegar olhando
para o corredor imerso na escuridão. — Fiquem aqui.
Samantha foi até a entrada e conversou algo em particular com Josef e Ellir que
acabavam de chegar. Os dois soldados eram morenos e tinham compleições físicas
semelhantes, altos e magros. Porém um parecia ser bem mais velho que o outro. Ellir foi até o
baú e retirou uma pilha de copos e pratos empoeirados, colocando-os sobre a mesa de
madeira com um baque alto. Shakur pediu licença e, visivelmente abatido, sentou-se no chão,
encostado a uma das paredes situadas mais ao fundo da gruta. Ele mantinha a cabeça baixa,
como em uma postura meditativa.
— Nina, saia daí. Preciso fechar a gruta — avisou John surgindo repentinamente atrás de
mim. Eu estava paralisada na entrada da gruta havia um bom tempo, tentando impedir que os
braços da agonia me envolvessem a ponto de me sufocar. Encontrava-me hipnotizada pelo
tom cinza escuro no céu, alerta real de que o manto da noite de Zyrk estava prestes a nos
encobrir.
— Não — murmurei sem tirar os olhos do horizonte sombrio. Nem sinal de Richard.
Aonde ele tinha ido? Ele corria perigo?
— O que quer dizer? — questionou tenso. — Que não vai entrar enquanto ele não
chegar? É isso?
Senti nova dor na consciência. Pobre John! Era chegado o momento de deixar as coisas
às claras entre nós. Talvez não tivesse outra oportunidade e John não podia ter esperanças,
mesmo que Richard não retornasse. Por mais que adorasse a sua companhia gentil e fosse
maravilhoso o bem-estar de tê-lo sempre por perto, eu não podia ser egoísta a tal ponto. Não
podia fazer isso com ele. Mamãe uma vez me disse que o amor não precisava de explicações.
Ela não podia estar mais certa. Não havia razão que domasse o amor febril que trepidava
dentro do meu peito. Precisei passar por todas as tragédias e perdas para entender que meu
coração não era masoquista, mas sim tão selvagem quanto o par de olhos azuis-turquesa que
o fazia pulsar freneticamente.
— John, eu sinto muito... — baixei a cabeça, juntando coragem para colocar em palavras
o sentimento obstrutivo que crescia em meu peito. Sabia que seria impossível não magoá-lo,
mas desejava do fundo da minha alma que John conseguisse captar o imenso carinho que
nutria por ele. Queria que ele visse dentro dos meus olhos o quanto eu o admirava. — Não
posso deixar isso... entre nós... continuar.
— Você passou por muita coisa em um intervalo de tempo muito curto. Está com a
capacidade de julgamento afetada — ele segurou meus ombros e me obrigou a olhar para ele.
— Eu posso esperar. Eu vou esperar. A gente...
Coloquei um dedo em seus lábios e balancei a cabeça com determinação. Ele perdeu a
cor instantaneamente.
— Simplesmente não posso fazer isso com você — minha voz saiu falhando.
Inspirei com força, os pensamentos subitamente cristalinos atropelando-se uns aos
outros.
— John, você é o cara certo! — acelerei em dizer antes que a coragem me escapasse.
— O rapaz mais honesto, gentil e sensato que encontrei na vida. Olhe para mim. O que você
vê?
— A híbrida mais encantadora do mundo — murmurou em baixo tom.
— Não, John. Eu sou o caos — arfei. — Precisei passar por muita coisa para
compreender que me aceito deste jeito. Não sou e nunca serei como uma garota humana ou
uma zirquiniana. Agora vejo que não trocaria nada e nem gostaria que as coisas tivessem sido
de outra forma. Tive de perder a pessoa que mais me amou na vida para entender que meu
coração bate em um ritmo bem diferente do normal, descompassado e sem lógica —
confessei emocionada e sem perceber que não era minha boca quem desabafava, mas sim a
minha alma. O peso do mundo começava a sair de dentro dela e a felicidade preenchia os
espaços. — John, você é perfeito, mas não é o homem para mim.
— Não!
— É a pura verdade. E acho que, apesar de não querer dar o braço a torcer, no fundo
você sempre desconfiou — lancei-lhe um sorriso triste. — Eu amo a imperfeição. Foi dentro
dela, perdida nas teias da confusão, que eu me encontrei e consegui ser eu mesma pela
primeira vez na vida, sem máscaras, livre.
— Isso é loucura! Você não sabe o que está dizendo! — Sua testa estava deformada de
vincos e sua respiração acelerada.
— Nunca estive tão certa na vida. Eu amo o Richard.
— Você está cega! Não enxerga que Richard está jogando com os seus sentimentos?
Ele está blefando e te conduzindo para a morte!
— Ele salvou minha vida diversas vezes! — rebati num rosnado.
— Porque ele está aguardando o momento certo! Até lá ele precisa te manter viva! Ele
não vale nada!
— Se ele é tão perigoso assim, então por que o aceitou no grupo? — guinchei feroz.
— Porque algo me dizia que você não teria vindo se nós o deixássemos para trás e
porque... Bem — ele retrucou hesitante —, ele é bom de luta e o nosso grupo é pequeno.
Poderia nos ser útil e... Não vem ao caso!
— Mentira! Você está me escondendo alguma coisa — retruquei com fúria e ele
arregalou os olhos.
— Eu não... Nina, eu não quero que tenha raiva de mim — repentinamente ele me
abraçou com um misto de desespero e paixão. Suspirei alto. Pobre John! Tanta coisa ele
havia feito por mim. Meu coração tornou a encolher no peito e, sem perceber, eu retribuía o
abraço com vontade. Eu podia não amá-lo, mas John era especial para mim. — Mesmo que
possa não parecer, tudo que faço é para o seu bem.
— Eu sei, John — arfei com a cabeça afundada em seu peitoral. — Sei que se importa
comigo e é por isso que gostaria que ouvisse com carinho um pedido que vou lhe fazer: dê
uma chance a Samantha. Ela é linda e tem grande estima por você.
— Samantha?! — havia clara surpresa em seu tom de voz.
— É tão óbvio, John. A raiva que ela nutre por mim... Ela gosta muito de você.
Ele apertou-me ainda mais contra seu corpo e senti na pele o tremor que lhe invadia.
— Samantha...? Isso é impossível... E não vem ao caso! — soltou rouco após um tenso
instante em silêncio. — Nina, ao amanhecer... quando...
— Vejam! É Richard! — A voz angelical da loura surgia às nossas costas e nos fez
romper o abraço. Samantha tinha a expressão estranha e seus movimentos pareciam
desencontrados.
Ela havia escutado a nossa conversa? Pouco importava agora porque um sorriso gigante
rasgou meu rosto ao meio ao processar aquela informação. Suando muito, Richard descia
acelerado do seu cavalo e o entregava a Ellir, que sem demora o guardou na caverna
adjacente.
— Rick! — Corri feliz em sua direção, mas ele passou como um foguete por mim. O
rosto frio e a expressão dura me fizeram perder o chão. Que ótimo! Primeiro aquele beijo,
agora ele tinha me visto abraçada a John?
Os homens rolaram a grande rocha e, sem perda de tempo, trancaram a entrada com
uma espessa viga de metal. Então cada um deles se incumbiu de algo: John acendia as tochas
presas aos nichos esculpidos nas paredes de pedra com a ajuda de Samantha, Richard
preparava uma grande fogueira, e Tom, num canto afastado, encarregara-se de descascar
algumas raízes. Resolvi ajudá-lo enquanto dava um tempo para que os nervos de Rick se
acalmassem e a gente pudesse conversar. Tudo havia acontecido tão rapidamente que me dei
conta de que era a primeira vez que falava com Tom desde a nossa fuga pela Floresta Fria.
— Que roubada meti todo mundo, hein? — comecei nosso diálogo sentando ao seu lado
e o ajudando no processo.
Ele abriu seu sorriso simpático e acolhedor.
— Nem me fale. Que estupidez a minha não ter te matado quando tive a oportunidade —
brincou com a faca entre os dedos e estreitou os olhos. — Que tal se eu me redimisse e
fizesse isso agora?
— Perdeu a chance — pisquei.
— Ainda bem — ele alargou o sorriso e abocanhou um pedaço grande de algo que julguei
ser palmito. — Que fome!
— Fiquei muito preocupada com você e com John — confessei por fim.
— Nós também. Quero dizer... — adiantou-se ele mastigando o alimento com vontade. —
Principalmente John.
— Eu sei.
Então o inesperado aconteceu. Tom olhou rapidamente para os lados e me encarou com
vontade. Sua expressão brincalhona desapareceu e suas pupilas vibraram.
— Nina, estão te escondendo algo, quero dizer, eu acredito na lenda e não concordo e...
— disparou ele num sussurro.
— Tudo bem aí? — John indagou alto, vindo com velocidade em nossa direção. Shakur
estava de pé do outro lado da ampla sala e Richard já havia atravessado a metade da
distância que nos separava, o braço no ar exibia um punhal ainda sujo de sangue da luta que
travara em Marmon.
— E-eu, eu... — Tom se encolheu no lugar, sem cor e com os olhos arregalados. Em sua
pressa para me contar o que lhe afligia, não percebeu que tinha sua faca apontada na minha
direção.
Céus! Eles acharam que ele poderia me fazer algum mal? Logo Tom? E qual era o
segredo que ele ia me contar? O que eles escondiam de mim?
— Está tudo bem — assegurei para todas as faces que nos observavam.
— Ótimo! — John respondeu aliviado, fazendo sinal para os demais de que estava tudo
bem. — Tom, acabe de acender as tochas dos aposentos. Deixe isso comigo.
O coitado do Tom obedeceu e, sem demora, afastou-se dali.
— O que houve aqui? — perguntou John assim que a normalidade retornara ao lugar.
— Não houve nada — sepultei o assunto. Jamais colocaria Tom em uma situação ruim.
— Vocês estão vendo fantasmas em todos os lugares!
— Antes fossem fantasmas, Nina — John abriu um sorriso derrotado. — Fantasmas não
poderiam lhe causar nenhum mal.
— Nem Tom! — guinchei baixinho.
— Eu sei, mas... — murmurou ele. — Mas estamos todos muito tensos e coisas
estúpidas são feitas quando nos encontramos assim.
Abaixei a cabeça e tentei rechaçar a todo custo o misto de impotência e preocupação
que insistiam em me torturar. Todos ali corriam risco de vida. E eu sabia que era por minha
causa, para me manter viva.
— Vou descansar — soltou Rick num rompante.
Ele tentou deixar a fisionomia ilegível, mas vi uma veia latejar em seu pescoço. Ele tinha
ciúmes de John. Por um mísero segundo, cheguei a achar que seria melhor assim. Ele seguiria
seu destino, geraria o aguardado descendente de Zyrk e não morreria sufocado nas teias de
uma híbrida. Entretanto, por mais que tentasse encontrar orgulho e lógica dentro das minhas
ações, eu simplesmente fracassava e, no instante seguinte, dava ouvidos a uma voz pulsante
dentro de mim. E ela exigia respostas. Que segredos obscuros Richard escondia de mim que
todos sabiam menos eu? Por que Shakur o protegeu do ataque dos escaravelhos? E, o que
mais me amedrontava: ele tinha que dizer dentro dos meus olhos que Von der Hess estava
mentindo e que ele nunca teve nenhum acordo com Malazar. Precisava me contar a origem
das tão cobiçadas pedras-bloqueio que havia conseguido.
— Você precisa se alimentar, Richard — advertiu Shakur. — Sua energia...
— Estou sem fome — rebateu ele sem lhe dar atenção.
— Eu também — aproveitei a deixa com a intenção de interceptar Richard no caminho.
— Nina, fique — ele pediu com educação, mas sua postura não me enganou. O maxilar
trincado confessava a mentira descarada.
— Rick, nós precisamos conversar.
— Não me sinto bem — desconversou.
— O que está escondendo de mim?
Ele me olhou com vontade, os olhos cintilando com força abrasadora, deu um passo em
minha direção, mas travou no caminho. Angústia? Ciúmes? Sua testa era um grande
emaranhado de raiva, confusão e tristeza. Meu coração desatou a socar o peito com fúria.
— Está tudo bem — murmurou.
— Não está.
— Só estou cansado.
— Você está mentindo! — guinchei e ele estreitou os olhos. Chequei ao redor, mas
ninguém me encarou.
— Não tenho condições para uma conversa agora. Amanhã... — Richard se esquivou e
saiu, dirigindo-se a passos rápidos em direção ao sinuoso corredor que dava para os
aposentos.
Vasculhei os semblantes presentes e só encontrei uma pista: culpa. Tentei engolir e não
encontrei saliva. Todos estavam mentindo para mim? Céus! Que tipo de horror eles estavam
escondendo agora? Não exigi explicações e nem deixei transparecer minha mágoa. Com a
cabeça erguida e sem olhar para trás, caminhei com passos firmes em direção ao meu
aposento. Por um momento havia me esquecido, mas agora era óbvio e cristalino: o jogo de
cartas marcadas ainda estava de pé e uma jogada importante tinha sido efetuada.
A partida estava em seus instantes finais.
E, para a minha desgraça, eu passaria o trunfo para o inimigo.

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