terça-feira, 22 de maio de 2018

CAPÍTULO 23 - Não Fuja

CAPÍTULO 23
— Por Tyron! Achamos! — A voz de John vibrava de felicidade. — Nina, aguente firme!
Estou indo!
Pisquei várias vezes para ter certeza de que não havia acabado de morrer e que não se
tratava de uma traquinagem do meu subconsciente para me poupar de uma morte sofrida.
Quando tornei a focar a visão eu o vi: caindo do céu como um anjo ruivo, ele mergulhava no
abismo amarrado a uma corda cingida à sua cintura. Lá em cima ouvi o bufar de cavalos e um
murmurinho frenético. Ao redor do grande buraco criado no teto daquela câmara quatro
arqueiros lançavam suas flechas precisas, interrompendo o ataque dos nossos algozes. À
medida que se aproximava de nós, detectei os olhos cor de mel se arregalando ao ver que
Shakur era o responsável por me manter viva.
— Joguem mais três cordas! Richard está entre eles! — comandou acelerado um dos
arqueiros. Na verdade, era uma arqueira, e eu também a conhecia: era Samantha! — Rápido!
Antes que o exército de Leônidas nos descubra!
— Pode soltá-la! — avisou John ao se aproximar de nós. Shakur hesitou por um instante,
mas, exaurido, e vendo que John carregava um escudo para nos proteger, acatou em seguida.
Respirei aliviada quando Richard, sem perder tempo, ajudou seu líder a subir. Agora ele não
era mais o alvo dos homens de Von der Hess, que retrocediam em função da chuva
inesperada de flechas.
— Minha mãe! — alertei preocupada. — Não vou sem eles!
— Vamos resgatá-los. Fique tranquila. — John me mostrou as cordas que caíam naquele
exato momento pela cratera, como três enormes cachos se desenrolando no ar.
— Ah, John! — Aliviada e feliz, abracei-o com vontade arrebatadora.
— Deu um trabalhão te encontrar, moça! — Seu sorriso era tão largo que todo o medo
se desintegrou dentro de mim. John me trazia paz, esperança.
— Isso porque não procurou direito — brinquei e sorri de volta enquanto éramos puxados
pela corda. Ele me encarou com tanta intensidade que corei por um instante. Paralisado atrás
de seu escudo, Rick nos observava sair dali.
Em minha lenta subida, vi Shakur correr ao encontro de minha mãe enquanto Richard,
com escudos em mãos, protegia os três. Trocando de posições, Shakur segurou o escudo
dando espaço para que seu hábil resgatador principal fosse o primeiro a amarrar uma das
cordas ao redor do corpo. Em seguida foi a sua vez, agora acobertado por Rick, de cingir a
própria cintura e a de minha mãe em uma única corda. Em seguida o líder de Thron segurou
Stela desacordada em seus braços e deu o comando para que iniciassem o tracionamento.
Fiquei tocada ao vê-lo descartar uma das cordas para subir unido a ela. O sentimento bom
que nutria por ele crescia vertiginosamente dentro de mim.
— Atrelem dois cavalos! Rápido! — ouvi Samantha berrar. Ela se apoiava na borda da
cratera acima de nós.
— O que está havendo? — indaguei ao observar as três cordas subindo muito
lentamente.
— O grupo é pequeno. Nossos cavalos estão exaustos, mas... — respondeu John com a
testa repleta de rugas e o maxilar trincado —, tem algo errado acontecendo aqui.
Claro que tinha! Von der Hess!
Era palpável a energia contrária agindo sobre nossos corpos. Forcei a visão e,
permanecendo escondido em áreas de penumbra da grande câmara, eu o encontrei de braços
levantados e olhos fechados. A boca de Von der Hess se movimentava com velocidade e não
deixava dúvidas: ele estava realizando algum tipo de magia!
— Força! — esbravejou John. O comando repetido pelos ecos conferia ainda mais
gravidade à situação.
De repente as cordas pararam. Eu e John estávamos bem mais próximos da saída, mas
ainda perigosamente pendurados sobre o colossal abismo e longe do alcance dos nossos
aliados. Mudo e com sua usual cara de poucos amigos, Richard encontrava-se no meio do
caminho. Shakur e mamãe, por sua vez, estavam bem abaixo, dando-me a sensação de que a
corda que os tracionava havia feito mínimo progresso.
— Não escutaram o que John ordenou? — bramiu Samantha nervosa e, em seguida, ouvi
relinchos tensos e o bufar de cavalos sendo açoitados sem piedade. — Tom, eu assumo sua
posição! — ordenou a loura. — Vá! Ajude a puxar as cordas!
Em outra ocasião eu riria da situação. O gigantesco Tom talvez fosse mais forte que
qualquer um dos cavalos! Mas o momento era crítico demais e tudo que conseguia pensar era
no risco que corríamos pendurados sobre o mortal precipício.
Então escutei um esbravejar vigoroso. A voz grave que admirava cada vez mais ecoava
com furor, majestosamente poderosa, reverberando pelas paredes de todo o cânion. Sem
deixar de abraçar mamãe nem por um segundo, Shakur bradava palavras sem sentido para
mim. Os olhos de todos se arregalaram quando, repentinamente, as cordas balançaram e,
lentamente, começaram a subir por conta própria.
Claro! Agora eu havia entendido o porquê de Shakur querer fazer uma boa abertura no
teto que cobria o cânion! Ele pretendia utilizar-se da luz do sol como fonte de energia para
impor a sua magia!
— Rápido! Força! — bradou John, mesmo sem entender o que estava acontecendo. Ouvi
os animais sendo chicoteados com violência. Estremeci com a ideia.
— Parem de espancar os animais! — vociferei. Minha voz estava mais intensa que
poderia imaginar. — Conversem com eles! É para animá-los, e não para matá-los!
— Como é que é?! — rebateu Samantha ultrajada. Mesmo de longe era possível ver que
seu rosto estava repleto de manchas vermelhas. Ela não conseguia camuflar o ódio que sentia
por mim. — Sua híbrida ingrata e...
Senti o corpo de John enrijecer ao redor do meu.
— Façam o que ela diz! — ordenou John. Samantha, apesar de contrariada, não
retrucou. A loura apenas praguejou alto e, em seguida, ouvi conversas acaloradas sendo
travadas entre eles. — Obedeçam! — repetiu o líder.
Um inesperado solavanco e nossos corpos despencaram em uma queda vertiginosa.
Agarrei-me com força ao corpo de John, fechei os olhos em resposta e senti o vento gelado
lambendo nossos rostos. Durante a aceleração, escutei berros apavorados ficando para trás.
Meu estômago revirou por completo, transformando-se em um sufocante bloco de gelo
agarrado à garganta. Um baque violento. As cordas chicotearam no ar, jogando nossos
corpos, frágeis marionetes, de um lado para o outro.
— John! Não! — Samantha berrou em pânico e aquilo me preocupou. A loura não
parecia ser dada a acessos de chilique.
— Argh! — John arfou e, assustado, abraçou-me ainda mais. Richard xingou alto,
mirando como uma águia o meu corpo atrelado ao de John. Ele franziu o cenho, mas poderia
jurar que não foi devido à inesperada queda.
— Esqueceu-se de que está em meu território? — Estremeci com a gargalhada sinistra
de Von der Hess. — Esta nunca foi a sua especialidade. Desista, Ismael!
— Von der Hess chamou Shakur de... Ismael?! — questionou John sobressaltado, as
sardas mais avermelhadas que o normal.
— Depois eu explico — assegurei em estado de tensão.
— Muito tempo se passou, Hess. As especialidades mudam — o líder de negro retrucou
com escárnio e levou uma das mãos ao ar: — Invotuculum it saem protegivum!
As cordas vibraram e, para nossa felicidade, desataram a subir. Estupefato, Von der
Hess excomungava de maneira ensandecida enquanto um vento quente girava ao redor dos
nossos corpos.
— Ele...?! Magia...! — tornou a exclamar John, parecendo mais desorientado com a
descoberta do que com a nossa péssima situação.
— Rápido, Samantha! — Foi a vez de Richard dar o comando, ao perceber o
atordoamento momentâneo de John. A loura assoviou alto e fomos brindados com o som dos
cascos dos animais aumentando de intensidade. Senti-me aliviada por não escutar açoites ou
relinchar de dor.
As cordas continuavam a subir, agora bem mais velozes. A sequência continuava a
mesma: a minha vinha à frente, seguida pela de Rick e, por fim, a que carregava mamãe e
Shakur. Podia jurar que aquela ordem era proposital e que o líder de negro se assegurava de
que ficaria por último. Os soldados de Von der Hess reagiram e novas rajadas de flechas
passaram raspando pelos nossos corpos.
— Parem! — ordenou nervoso o bruxo albino. — Vocês podem atingi-la!
Eu e John fomos os primeiros a alcançar o topo. Ao me ver chegar abraçada a ele,
Samantha franziu o cenho e repuxou os lábios, confirmando o que eu já suspeitava há um bom
tempo: ela gostava de John! A raiva que nutria por mim era porque morria de ciúmes dele.
— Os homens de Leônidas estão a caminho! — Um soldado acabava de chegar com a
péssima notícia.
— Preparar para partir! — Samantha deu o comando, alertando o pequeno grupo que
deveríamos sair em disparada ao término de sua contagem regressiva.
— Eu não vou deixá-los — comuniquei determinada.
— Ah, vai sim! Depois desse trabalho para te buscar? Nem que eu tenha que arrastá-la
pelos cabelos — Samantha partiu para cima de mim. Enfrentei-a com inesperada força. Sentime
uma rocha, firme e intransponível. Não havia espaço para medo dentro dessa nova Nina.
— Parem com isso! — John se colocou entre nós. — O tempo será suficiente! Graças a
Tyron a subida deles está sendo rápida — soltou, olhando desconfiado de mim para a loura.
— Samantha, use os cavalos que nos tracionaram! Amarrem-nos aos outros animais! — A
ordem de John foi estratégica. Era sensato nos manter afastadas enquanto esfriávamos os
ânimos.
Ela saiu de vista e eu me aproximei da borda da grande abertura que eles haviam criado.
Ao lado de John, fiquei observando as duas cordas subirem e me dei conta de que elas
traziam os três grandes amores da minha vida. Agora estava claro dentro de mim: eu também
amava Shakur!
Uma inquietação vibrou em meu espírito. Agoniado, ele parecia querer chamar a minha
atenção, alertar-me de algo. Com os nervos à flor da pele e o coração pulsando na boca, vi
aliviada Richard alcançar a base onde estávamos e deixar o corpo cair, com a respiração
difícil e os olhos fechados. Em meio ao horror que acabávamos de passar, só agora notava
que o coitado tinha as mãos e os ombros tingidos de sangue. Entretanto, por mais que me
preocupasse com ele, havia uma inquietação crescendo furiosamente dentro de mim. Aquele
alerta em forma de taquicardia não era bem-vindo. Mais rápido. Mais rápido. Mais rápido!
Naquele instante, daria tudo para trocar de lugar com eles. A agonia pela espera ruía com o
que restara de intacto nos meus nervos.
— Força! — John ordenou. A expressão em seu rosto mudara do entusiasmado para o
apreensivo.
Como em um filme de terror, Von de Hess ressurgia ainda mais alvo e traiçoeiro do que
antes, plainando no ar como uma assombração. Jurei ter visto, para depois desaparecer,
pequenos pontos pretos flutuarem sobre suas mãos brancas e ossudas. Ah, não!
— Ele vai usar os escaravelhos! — alertei num sussurro afônico.
— Ele não pode — rebateu John ao meu lado. — Se for pego usando tais criaturas será
banido para o Vértice!
— Mas ele usou! Há centenas deles! Eu vi!
John perdeu a cor.
— Droga! Vamos sair daqui, Nina — ele me puxava com os olhos arregalados.
— Nunca! — explodi sem arredar o pé.
— Se não partirmos agora seremos pegos, John! — Samantha gritava nervosa. — Os
homens de Leônidas estão próximos!
— Eu não vou sem eles! — guinchei e olhei bem dentro de seus olhos cor de mel. John
tinha a testa lotada de vincos. Os soldados aguardavam apenas uma ordem sua para dar o
toque de partir.
— Poupe o seu grupo — determinou Richard, aproximando-se de mim e de John. —
Deixe dois cavalos. Nós os alcançaremos.
— Vamos esperar mais um pouco — John retrucou, tenso.
Outros berros resgataram nossa atenção para o que acontecia na fenda abaixo de nós.
A felicidade em ver que Shakur e mamãe conseguiriam se aproximar a tempo foi rapidamente
varrida do meu peito. Nos instantes finais da sua subida, Von der Hess soltou a bomba que
faria meu mundo tornar a ruir e tudo ao redor perder a importância.
— Quando vai aprender a desistir? — bradou com sarcasmo o bruxo malévolo. — A
humana nunca será sua!
Shakur não respondeu e vi quando a abraçou ainda mais.
— Tolo! Por que continua a se iludir? Você não é humano e ela não é uma zirquiniana!
— Cale-se! — bramiu o líder de negro.
— Você sempre soube que ela estava viva por causa da minha energia! A força proibida
que apenas eu domino! — Von der Hess não dava trégua. — Quantas maravilhas teríamos
acesso... Quantos mistérios seriam desvendados se os idiotas do Grande Conselho não a
tivessem me impedido de usar!
— Quantas tragédias teriam acontecido se deixássemos você utilizar essa energia
abominável — desdenhou Shakur e o mago estreitou os olhos.
— Humm... Pensa que ganhou esse confronto? Tragédia é o que acontecerá para você
em breve, meu caro. — Riu de maneira artificial. — Assim que sair da cobertura da minha
“energia abominável”, sua humana definhará e morrerá em questão de horas!
Minha mãe morreria em questão de horas...
— NÃO!!! — O berro de dor de Shakur foi único porque o meu ficou aprisionado, perdido
em algum lugar entre minha dor e desesperança.

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