sexta-feira, 18 de maio de 2018

CAPÍTULO 20 - Não Fuja

CAPÍTULO 20
O amontoado de corredores escuros pelos quais Truman me conduzia em nada ajudava
meu intento de desvendar possíveis saídas. Marmon conseguia ser ainda pior do que Thron
porque ali não havia gente. Mas não eram apenas os caminhos escavados desordenadamente
nas rochas que criavam uma atmosfera traiçoeira. Havia uma névoa abafada, um ar pesado e
estático obstruindo minha garganta e embaçando meu raciocínio. Algo estranho nos envolvia e
eu quase podia tocá-lo.
Um eco rasgou o silêncio absoluto. O sangue congelou instantaneamente em minhas
veias. Reconheci a voz.
Mamãe!
Outros berros nervosos, indecifráveis e sem coerência, como grunhidos animalescos,
vieram a seguir e quase me derrubaram. Por que ela berrava daquele jeito estranho? O que
eles haviam feito com ela?
Truman praguejou e me puxou com mais força, mantendo-me sempre à sua frente. Meu
coração ricocheteava dentro da caixa torácica e minha cabeça rodopiava alucinadamente,
perdida no ciclone de emoções que avançava sobre meu espírito. Expectativa. Ansiedade.
Felicidade. Medo.
Começamos a subir uma íngreme escadaria esculpida na margem da gigantesca parede
rochosa. Meus batimentos cardíacos triplicaram de velocidade quando vi a névoa negra fazer o
papel de corrimão à direita, embaralhando ainda mais os degraus desnivelados e criando
passagem escancarada para o precipício abaixo de nós. Uma mão segurou minha cintura. O
calafrio de advertência passeou por minha espinha e meu corpo enrijeceu. Algo dentro de mim
sinalizava que era Truman, e não o abismo, o maior perigo por ali.
— Está com medo, híbrida? — ele aproximou o rosto do meu. Não recuei quando seu
nariz roçou a minha nuca. Qualquer passo em falso e meu fim chegaria bem antes do
programado, nas profundezas daquele cânion maldito. — Deixe-me sentir... — ele continuava
suas investidas. — Humm... Essa energia que vem de você é bem tentadora, sabia?
Instintivamente acertei uma cotovelada em suas costelas.
— Valente, hein? Quero ver se continuará assim quando eu acabar com sua mãe, garota.
— Olhei por sobre o ombro e vi o brilho da maldade refletido em seus olhos. Deus! Aquela
injeção não era para acalmar, mas sim para matar Stela! O horror se apoderava do meu
corpo a cada degrau logrado e minha pulsação entrava em níveis perigosos. Eu precisava agir
e tinha de ser o mais rápido possível!
Imediatamente me recordei do golpe que John havia me ensinado quando estávamos em
Storm. Respirei fundo e, tentando a todo custo controlar a adrenalina desvairada em minhas
veias, abaixei num rompante, girando rapidamente o corpo. Truman quase tombou, mas
conseguiu se equilibrar desajeitadamente nas reentrâncias da parede de pedras à sua
esquerda. Aproveitando-me do momento, desvencilhei-me dele e, mesmo com as mãos
amarradas, lancei as palmas abertas em direção ao seu rosto. Ele recuou, mas, para meu
infortúnio, não urrou de dor conforme eu esperava. Se eu estava com os nervos à flor da pele
e lutava com todas as forças pela minha vida, por que minhas mãos não funcionaram contra
ele? O que havia de diferente ali? Truman franziu o cenho e avançou de forma abrupta sobre
mim, espremendo-me com fúria contra a parede rochosa.
— Você podia ter nos matado, sua estúpida! — esbravejou ele. O peso do seu corpo
imobilizava o meu por trás.
— Me solta! — ordenei com ódio assim que a mordaça se deslocou e me permitiu falar.
A pele do meu rosto ardia nos pontos onde era espremida contra a muralha áspera. O homem
tinha quase duas vezes a minha largura.
— Sabe o que eu vou fazer com uma híbrida idiota como você? — sussurrou em minha
orelha. — Tudo! E a cela da sua mãe virá bem a calhar... — arfou. — Só não decidi se
primeiramente eu faço você assistir à eliminação definitiva dela ou se deixo isso para depois de
usufruir as sensações que seu corpinho híbrido pode me oferecer. Nesse caso será sua mãe
que vai assistir — soltou uma risada forçada e o sangue ferveu em minhas veias. Revirei o
rosto e meus olhos se depararam com o frasco de vidro que continha a seringa aprisionado no
seu cinto de couro.
— Você vai morrer, verme — rosnei.
Ele achou graça da minha ameaça e me espremeu ainda mais contra a parede.
— Quanto mais difícil, melhor.
— N-Ninnn...!? F-Filh...
Aquele chamado fez toda a diferença do mundo. Tive de segurar a emoção que ameaçou
rasgar meu peito em pedaços e conter as lágrimas que romperam como mágica em meus
olhos. Ela podia estar doente ou drogada, mas minha mãe me chamava! Mamãe era uma
receptiva e captara a minha presença. Talvez por isso tenha começado a berrar e causar toda
aquela confusão. Stela, a única certeza de amor na minha vida, meu porto seguro que julgava
perdido, estava ali, tão perto e chamando por mim.
— Merda de humana! — reclamou o sujeito, afastando ligeiramente seu corpo do meu.
Bastou.
Não podia esperar para ver se minhas mãos funcionariam. Elas ainda eram um mistério
para mim... Aproveitando-me do momento, e ainda sem poder fazer amplos movimentos,
consegui segurar o frasco de vidro e, desajeitadamente, o espatifei, batendo-o com força
contra a parede. Segurei a dor das fisgadas provocadas pelos cacos de vidro penetrando em
minha pele, mas em momento algum cogitei a hipótese de reabrir minha mão. Suportei o ardor
enquanto sentia a seringa de metal tomar forma entre meus dedos encharcados de sangue e
estilhaços de vidro. No intervalo menor que de uma pulsação, eu cravava a agulha na coxa do
infeliz que, agora sim, arregalava os olhos e urrava alto. Atordoado, ele me soltou. Foi tudo tão
rápido que, somente após alguns segundos, o homem conseguiu se dar conta do que havia
acontecido.
— Morra! — berrei.
— Sua... — Truman esbravejou e voou sobre mim. Dei um pulo para trás, subindo
desequilibradamente pelos estreitos degraus. — Eu vou... — praguejou e o vi bambear logo
abaixo de mim assim que suas pupilas começaram a dilatar.
— Você vai sim, seu verme! — arranquei o molho de chaves preso em sua cintura com
tanta força que o fiz tombar para cima de mim. — Você vai para o quinto dos infernos! —
bradei assim que senti as chaves seguras entre os meus dedos, chutando-o para longe com
todas as minhas forças. Ele arregalou os olhos, mas não fez resistência. Suas pupilas
acabaram de entrar em dilatação máxima e o infeliz estava morto antes mesmo de despencar
no terrível precipício. A droga era poderosa e o matara com uma velocidade impressionante.
Mais assustador ainda foi presenciar o corpo de Truman perder o tônus ainda de pé, e, como
um boneco inflável que acabara de ser furado, ir esvaziando de cima para baixo. Sua cabeça
apática pendeu sobre o peito que, em seguida, arqueou-se para a frente, tombando sobre as
pernas bambas e despencando no precipício atrás de si. Pobre criatura!
Guiada pelos grunhidos desesperados da minha mãe, subi correndo em direção à porta
de madeira maciça que vedava a cela onde ela estava. Lá de dentro sua voz continuava
enrolada e suas frases saíam incompreensíveis. Estanquei por um instante, mirando o molho
de chaves dentro da minha mão ensanguentada e lutando para refrear a enxurrada de
emoções contraditórias que bombardeava meu coração. Tentando controlar meus nervos,
fechei os olhos e encostei a testa no batente da porta. Eu tinha de abri-la, mas, ao mesmo
tempo, era paralisada pelo medo. A Stela que eu encontraria do outro lado da porta não seria
a mesma que eu havia visto pela última vez em minha antiga dimensão, há quase dois meses,
naquele teatro da Broadway. Ela havia mudado. Eu havia mudado. Tantas coisas tinham
acontecido naquele curto intervalo de tempo! Meu mundo antigo havia ruído, engolido pela
voraz escuridão das descobertas, despedaçado em milhares de fragmentos de dor, perdas e
mentiras, e dado lugar a um novo mundo, também repleto de conflitos e desafios, mas, acima
de tudo, um universo que alvorecia e permitia novas chances, como o renascimento de uma
nova Nina. Nesta nova dimensão, eu não era uma simples garota que precisava fugir, eu era
forte. Ali eu fazia a diferença e, mesmo diante da morte, sempre haveria uma alternativa que
havia sido desprezada até então: a esperança. Onde ela estivesse sempre haveria lugar para
a vida, para o amor.
Stela entenderia isso? Minha mãe compreenderia que agora eu queria ficar e lutar e
não mais viver fugindo para sempre?
Respirei fundo e, trincando os dentes para não permitir que meu coração saísse pela
boca e se jogasse naquele precipício, destranquei a porta. Stela parara de berrar. Havia
pressentido a minha chegada? Estaria tão emocionada quanto eu? Abri a porta lentamente e
então eu a vi. Deitada em posição fetal no chão, enrolada em um lençol encardido, e encolhida
em um dos cantos do fúnebre aposento. Mamãe levantou a cabeça em minha direção. Minha
alma congelou e lágrimas ininterruptas de felicidade, dor e pavor encharcaram minha face ao
ver seu estado decadente. Ela estava suja como um animal sarnento, tinha a aparência
abatida, o olhar perdido, e, ainda assim, tentou se arrastar, forçando seu corpo a vir em minha
direção, mas não conseguiu romper o torpor que a envolvia.
— Mãe, não! — engasguei atordoada e, jogando-me ao seu encontro, peguei sua cabeça
ferida entre as minhas mãos trêmulas e a coloquei sobre o meu colo. — Mãe!
— Mrrrrr.... Ellll..... — ela balbuciava olhando de maneira assustada para a porta.
Oh, Deus! Ela estava dopada ou haviam lhe causado algum dano mental?
— M-mãe, calma! V-vai ficar tudo bem, eu... — Em pânico com a recente descoberta,
comecei a afundar no lugar.
— Filh.... — Ela percebeu o horror em meus olhos e, mesmo em seu péssimo estado, vi
quando fez um esforço colossal para me tranquilizar, mas sua língua não obedeceu e caiu
frouxa para um dos cantos da boca. Ainda assim, o esboço de um sorriso se formou em seu
rosto. Com o olhar vidrado de emoção, soltou um suspiro alto e começou a soluçar.
— Eu sei, mãe. Eu sei.
Ela envolveu meu corpo em um abraço desesperado e chorei junto. O pranto das nossas
almas, da nossa felicidade, do seu escancarado alívio e do meu agradecimento por toda a sua
vida de amor e doação. Dor e desabafo. Entendimento. Não havia mais necessidade de
dizermos nada. O amor falava por nós.
— Precisamos sair daqui — disse por fim, utilizando todas as minhas forças para me
desvencilhar do aconchego do seu abraço, o melhor e mais seguro lugar do mundo, mesmo
nas condições mais inseguras.
Mamãe tornou a fechar os olhos, exaurida. Vasculhei ao redor na procura de algo que
pudesse utilizar em nossa fuga e meu estômago se revirou de tristeza ao detectar as péssimas
condições em que ela se encontrava. Uma caneca de alumínio com água pela metade jazia
largada no chão e a única fonte de iluminação do fúnebre lugar provinha de uma tocha presa
em uma reentrância na parede rochosa. Sem colchão, sem nada. Pobre Stela! Ela já havia
sido torturada o suficiente por minha causa e não suportaria vê-la sofrer nem por mais um
segundo sequer. Estremeci ao me recordar que Von der Hess poderia aparecer a qualquer
instante.
— Mãe, existe alguém que talvez possa nos ajudar.
Olhei para o molho de chaves e segurei a ânsia de tensão que subia pelo meu estômago.
Sabia que estávamos em uma situação muito ruim e a única pessoa que poderia nos ajudar
naquele momento talvez estivesse em condição ainda pior, mas algo me impulsionava a
arriscar. Ela segurou meu braço com seu resquício de forças, e, como que pressentindo algo,
arregalou os olhos. Traguei o ar com dificuldade ao vê-la tão preocupada.
— Eu sei o que estou fazendo. Confie em mim. Eu te amo — disparei num sussurro e
beijei sua testa. Ela soltou um grunhido em forma de murmúrio, mas, sem forças, tornou a
tombar a cabeça no meu colo. Fechou os olhos e, para minha sorte, eles estavam distantes
quando ela os reabriu, dando-me chances para sair rapidamente dali.
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— Preciso da sua ajuda — disse de rompante assim que abri a porta da única cela além
daquela onde se encontrava mamãe, na extremidade da escadaria de pedras e ponto mais
alto do penhasco esculpido em uma das paredes que margeavam o grande cânion.
— Estou pronto — respondeu o líder de negro de bate-pronto. Ele guardou algo
repentinamente no bolso de sua calça antes de ajeitar o pedaço de pano que colocara no lugar
da máscara fraturada. Soltei o ar, num misto de surpresa e alívio.
— Richard! — corri acelerada ao seu encontro.
— Oi, Tesouro! — piscou ele, ainda sentado no chão. Ele tinha a voz arrastada e
aparentava estar num quadro de sonolência artificial. As cordas rasgadas no chão
comprovavam que Shakur havia conseguido se soltar e também liberar Richard.
— O quê... ?
— Estou tentando acordá-lo há algum tempo, mas não está reagindo. Ele vai precisar de
mais tempo — explicou o líder de Thron com tom de voz estranho.
— Como assim? Nós não temos esse tempo! — guinchei ao ver que Richard jamais
conseguiria descer os degraus que margeavam o precipício naquele estado letárgico. — Sua
magia não funciona aqui?
— Ela é inexistente em áreas de forças obscuras — explicou taciturno enquanto olhava
para o nada.
— Mas você é forte! Pode carregá-lo! — Eu quase implorava.
— Não se faça de tola porque entendeu muito bem o que quis dizer. Sabe que apenas
me colocarei em perigo nessa descida e que terei que abandoná-lo na próxima cela. A não ser
que resolva deixar a sua própria mãe aqui. — Sua insinuação mais do que clara me fez
arrepiar por inteira: teria de optar entre Rick e a minha mãe?
— Não! — rugi.
— Então a escolha está feita. Despeça-se dele e vamos embora — comandou Shakur de
forma enérgica ao me ver tentar desesperadamente despertar a tapas um Richard em estado
aéreo.
— Não vou deixar nenhum dos dois para trás! — esbravejei e poderia jurar que Shakur
disfarçou um sorriso mordaz.
— A matemática é simples: um morre, três sobrevivem — Shakur respondeu de cabeça
baixa e de costas para mim. — Só tenho como carregar um dos dois.
— Não! — Novo choro fino saiu por minha garganta.
— Então morreremos os quatro — rebateu ele com a voz fria. — Eu, Richard e sua mãe
em alguns instantes e você daqui a alguns dias, após Von der Hess a torturar até o último fio
de cabelo para conseguir dar cabo de seus planos diabólicos.
— E-Eu, eu...
Uma ideia cintilou em minha mente acelerada e, sem hesitar, segurei o rosto perfeito de
Richard entre minhas mãos ainda presas por cordas e tasquei um beijo em sua boca. Beijei-o
com vontade, apertando seu corpo contra o meu com aflição e desejo. Sorri aliviada ao vê-lo
empertigar no lugar, reabrir os olhos e inspirar profundamente, mas, no instante seguinte, ele
tornava a tombar, desorientado, na parede atrás de si.
— Não adianta. Não temos poderes aqui dentro — suspirou Shakur ao me ver em estado
de choque.
Como assim? Ele sabia dos meus poderes? Droga. Droga. Droga! Não podia ser assim!
Eu não podia abandonar minha mãe e muito menos Richard.
— Decida-se! — bradou nervoso e começou a esfregar a parte ainda intacta da máscara
de metal. — Nosso tempo está se esgotando!
— Então será meio a meio! Dois morrem, dois se salvam — engoli em seco e determinei,
decidida de que estava tomando a atitude correta.
— Hã? — ele interrompeu seu cacoete e começou a me estudar.
— Eu fico com Richard. Você salva a minha mãe — segurei na marra a dor que ameaçou
se alastrar pelo meu peito. Eu mal conseguira reencontrar Stela e acabara de abrir mão dela,
mas, apesar de tudo, algo me dizia que meu lugar era onde Richard estivesse. — Por favor,
cuide dela pra mim.
— Você vai... ficar... com ele? — Arregalados, os marcantes olhos azuis de Shakur se
destacaram na penumbra do ambiente. — Vai arriscar sua vida por um zirquiniano?
— Ele fez muito mais por mim — confessei sem sair de perto de Richard.
Shakur levou uma das mãos à boca. Quando a retirou, ele exibia um sorriso estonteante,
igual ao que vi na fotografia em que abraçava a mim e mamãe, e caminhava a passos largos
em nossa direção: — Vamos lá, garota! Ou morreremos todos ou sobreviveremos os quatro!
— vibrou ele, pegando-me novamente de surpresa.

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