CAPÍTULO 8
Faz uma semana desde que tudo aconteceu. Após muita meditação, estou mais calmo e
focado. A euforia enlouquecedora finalmente abrandada, mas permaneço atordoado comigo e
com tudo. Até agora me pergunto se aquela noite realmente aconteceu ou se foi apenas um
sonho, uma peça que meu subconsciente me pregou. Por mais que lute contra, não paro de
pensar nas consequências daquele beijo. Como posso ter sentido todas aquelas emoções?
Como fiz a loucura de interferir no livre-arbítrio de Tyron e matar dois humanos para salvar
outra humana?
Estremeço ao ser acordado por novo golpe em meus sentidos. Sinto a aproximação
rápida de um resgatador. Pior: pela forma como ele se aproxima, sei que ele a está
rastreando! Será o mesmo covarde da vez anterior? Corro até o edifício em que ela trabalha
e fico à espreita. Sinto o resgatador por perto, mas não o vejo. Talvez esteja no modo
invisível... Começo a checar as auras das pessoas ao redor e ver se ele poderá se utilizar de
algum infeliz com suas horas contadas, e, como ocorreu da vez anterior, utilizar-se de uma
morte indireta. Estou ainda analisando o entorno quando eu a vejo e enrijeço no lugar. Ainda na
calçada do lado de fora do prédio, a humana olha o céu gentil de primavera e começa sua
caminhada. Está ainda mais bonita que da vez anterior. Todas as sensações enlouquecedoras
que tive naquela noite avançam sobre meu corpo de uma única vez e quase me derrubam.
Sufoco-as a todo custo e tento respirar profundamente. Está dificílimo manter qualquer
constância com meu pulso completamente desgovernado. Fico em alerta máximo quando
percebo que sua força parece ter triplicado de tamanho. Isso não é normal. Isso não é bom.
Estou suando frio e minhas pernas tremem. Algo vai acontecer e devo manter minha mente
tranquila e focada.
A humana é rápida. Mantendo sempre uma distância segura, vejo que ela caminha em
direção a um ponto verdejante e florido e que destoa da selva de prédios ao nosso redor. Está
entardecendo e os fracos raios solares laranja-avermelhados incidem no verde-claro vivo das
copas das árvores corpulentas. Uma brisa agradável abranda o calor que avança em minha
pele. O número de pessoas diminui e sei que terei que ser discreto agora. Não estou em
condições de arriscar ficar no modo invisível. Não posso me dar a esse luxo se planejo
enfrentar uma força de tal magnitude. Observo a humana caminhar pelos estreitos caminhos
de terra batida e tenho vontade de xingar alto quando percebo meu erro imbecil. Fico tão
hipnotizado com a sua força extraordinária, com a sua magnética presença, que não notei para
onde ela ia. Por Tyron! Ela caminha em direção ao resgatador! E está bem mais perto dele
do que de mim! Desato a correr feito um louco, pulo gramados, empurro pessoas pelo
caminho e então travo quando escuto a voz satisfeita dela. Estou camuflado atrás de uma
árvore, a alguns metros de distância.
— Cheguei! — ela solta agitada. — Dale? Você está aí?
“Dale”?!
Novo tremor toma conta do meu corpo ao escutar aquele nome. Não pode ser!
— Você está atrasada — responde a voz. O homem que surge atrás dela não é humano.
Ele é um zirquiniano. O sujeito de traços bem feitos, pele clara e cabelos alourados que surge
no meu campo de visão é Dale, filho de Wangor, o líder de Windston.
— Eu sei. Desculpe.
— Você está diferente — afirma ele, aproximando-se lentamente.
— Diferente como? — A voz dela vacila.
— Estava menos abatida na última vez que a vi.
— Devem ser minhas olheiras e...
— Já disse que não precisaria trabalhar se não quisesse.
— Não é isso!
— O que é então?
— Você não consegue sentir? — ela leva as mãos ao abdômen e vejo sua testa franzir.
— Eu não, eu... — Dale a observa de maneira estranha. De repente ele arregala os
olhos. — Você carrega uma cria?
Ela confirma com a cabeça e sorri.
— Estou grávida de um filho seu, Dale!
Meu coração para de bater. Meu ar acaba. Meu cérebro entra em combustão com
aquela afirmação impensável. Estou cego, surdo e mudo, dentro de um mundo de espanto,
raiva e encantamento. Mal acompanho a reação de Dale. Estou completamente atordoado,
desorientado. Não consigo entender as emoções que se embaralham em meu peito, muito
menos compreender o que se passa à minha frente. Perguntas umas atrás das outras se
atropelam em minha mente: Como eles conseguiram ter um contato mais íntimo sem que ele a
matasse? Por que Dale parece tão insensível com a notícia? E, principalmente, por que sinto
cólera e impotência dentro do peito? Por que tenho raiva por ela o ter desejado? Por que sinto
um ódio quase irrefreável por ele? Por que tenho vontade de matar os dois? Faço força
descomunal para respirar e o oxigênio clareia meus pensamentos e faz as pistas daquela
charada se encaixarem com perfeição... O porquê da força crescendo dentro dela: existe um
bebê em seu ventre! O filho inconcebível de duas espécies que jamais poderiam se fundir. O
fruto de um amor impossível e inimaginável. A redenção dos pecados da minha espécie. A
salvação de Zyrk. Ali, dentro daquela pequena humana. Ali, batendo no coraçãozinho daquele
ser em formação.
Então volto a mim e surpreendo-me com um Dale sem reação, pensativo e apático
demais para uma notícia daquela magnitude. Como assim? Por que ele não está assustado?
Ou maravilhado? Ou agitado?
— Eu sei que foi rápido demais... Eu também não entendo... Eu tomei o remédio
corretamente e... — Ela para e capta a nuance de pavor na face de Dale. Não é a reação
para quem acaba de receber uma graça. Para o único zirquiniano na história que recebeu o
dom do amor. Vejo quando ela engole em seco e retém as lágrimas que se formam em seus
olhos negros. — Você não está feliz com a notícia?
— Estou sim — diz ele, mas sua expressão é taciturna e quase aérea. Por um instante
cheguei a pensar que talvez estivesse em choque. — É para quando?
— Ainda vai demorar. Estou no terceiro mês.
— Certo — ele diz e parece ainda mais ausente.
Ela se afasta, abaixa a cabeça e vejo que tem dificuldade de respirar. Sua emoção vacila
e sua energia positiva perde espaço enquanto um halo negro avança por sua aura. Estremeço.
O que está havendo com ela?
— Dale, eu não sei o que fazer... eu também não esperava... essa criança... — ela
começa com a voz rouca e o halo negro expande-se ainda mais. Tenho a sensação de que ela
precisa sentir a reação dele, a aprovação dele.
— A gente pode se livrar dela assim que nascer.
Sou nocauteado. A resposta instantânea dele arranca o chão sob os meus pés. Não devo
estar nada bem. Não posso ter ouvido corretamente. Tenho vontade de arrancar sua língua
com minhas próprias mãos. Como ele pode ter dito algo assim? Chacoalho a cabeça, mais
zonzo do que antes. Devo estar enlouquecendo...
— É o que você quer? — ela indaga com os lábios cerrados em uma linha fina, a testa
tão lotada de vincos quanto a minha.
— Acho que é o melhor para nós.
— Você acha? — a voz dela fica subitamente irônica, o negro dos seus olhos ainda mais
escuros e impenetráveis.
— Você mesmo disse que foi cedo demais, que também não queria, e...
— Eu não disse que não queria! — ela rosna e vejo Dale se encolher. Ele tem o
semblante estranho, parece com medo. Medo dela?
— Stela, eu não queria que fosse assim, as coisas fugiram do meu controle, meu pai não
vai acreditar em nós, não vai aceitar essa criança, eu não sei o que fazer!
— Foi você que me fez acreditar que era possível algo entre nós, que um milagre poderia
acontecer...
— E aconteceu! — ele solta exasperado.
— Essa droga que está acontecendo aqui e agora é um milagre? — ela ruge. — Um pai
dizer que vai esperar seu filho nascer para se livrar dele?
Dale anda de um lado para o outro.
— Pois bem! — ela pisa firme. — Vou acabar com essa loucura agora mesmo!
— O que você pretende fazer?
— Acabou, Dale.
— O que você está dizendo?
— Aquilo que você é covarde demais para propor.
— Mas eu ainda quero você — ele solta de maneira fraca.
— Mas não quer o que está dentro de mim — ela retruca com sarcasmo.
— Você não pode se afastar de mim. Sua partida já foi decretada. Preciso vigiá-la. Logo
outros resgatadores virão atrás de você.
— Sei me proteger.
— Só porque sua percepção é aguçada? Não conte demais com isso — rebate ele.
— Talvez nem todos os zirquinianos sejam ruins.
Quero sufocar a emoção que me toma, mas sinto meu coração acelerar ao escutar
aquela frase.
— Hã? O que quer dizer com isso? — Dale parece acordar do transe.
— Que acabou tudo entre nós.
— E a criança? O que fará com ela?
— Agora está preocupado com ela? Fique tranquilo. Vou dar um jeito.
— “Um jeito”? Você vai matá-la ainda no seu ventre?
— Que diferença faz me livrar dela agora ou daqui a seis meses? — rebate nervosa.
— Faz toda a diferença do mundo!
— Você enlouqueceu? — ela indaga visivelmente espantada.
— Dê-me a criança assim que ela nascer! — Dale solta essa frase com uma energia tão
grande, que posso afirmar que é o que ele realmente queria dizer desde o início daquela
conversa.
— Como é que é?! — Stela dá um pulo para trás e, como reflexo, leva as mãos à
barriga. Vejo quando ela sorri ao se dar conta de que acaba de proteger seu filho pela
primeira vez, assim como as humanas têm o hábito de fazer. Imediatamente vejo o halo escuro
ao seu redor perder a intensidade. — Nunca!
Apesar de completamente distintos dos do meu povo, devo me recordar dos padrões
humanos. Enquanto na minha dimensão as mulheres nada mais são do que procriadoras que
se sentem aliviadas quando podem se ver livres do fardo em suas entranhas, as mulheres
humanas prenhas desenvolvem um sentimento descomunal por suas crias. Elas chegam ao
extremo de doarem suas vidas para protegê-las e têm necessidade de que as pequenas
criaturas sejam aceitas por todos, em especial pelo seu procriador. Os machos humanos
diferem-se barbaramente. Enquanto alguns são tão afeiçoados pelos filhos quanto suas
procriadoras, outros parecem completamente indiferentes a eles e, nesse caso, tão
semelhantes a nós, zirquinianos.
— Não enxerga que essa criança só trará desgraça para as nossas vidas? É
amaldiçoada!
— Jesus Cristo! Você pirou?
— Temos que nos livrar dessa criança, Stela!
— Nunca! Vai ter que me matar para conseguir colocar as mãos nela.
— É só questão de tempo, você sabe.
— Não!
— Por favor, não deixe as coisas desse jeito. Eu gosto de você. A gente pode tentar
outra vez, tentar outra criança, e...
— Outra criança? Por que diz isso se já temos essa? — Stela tem o semblante feroz
enquanto coloca a bolsa debaixo do braço. Pretende sair dali. — Ou você está louco ou me
acha muito estúpida para cair numa conversa dessa, Dale.
— Stela, quer me ouvir? Essa criança foi um erro. Ela é amaldiçoada! Não pode ficar
aqui e...
— Cale a sua boca, seu cretino! Essa criança é seu filho!
— Não é!
— Idiota! — Stela não consegue mais segurar as lágrimas e se afasta, chorando
compulsivamente. Tenho uma vontade louca de ir atrás dela, abraçá-la e confortá-la. Mas não
o faço e fico ali. Algo me impulsiona a entender o que acabara de acontecer.
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Fico dividido entre vigiar os passos de Dale ou continuar minha análise sobre a humana
que abalou com as minhas estruturas. Agora entendo o porquê da sua força em expansão: ela
carrega mais que o filho de um zirquiniano em seu ventre, ela carrega um milagre.
Não posso matá-la.
Pergunto-me como Dale não foi capaz de perceber aquela energia pulsante dentro dela
há mais tempo. Indago-me sem compreender sua reação e respostas sem cabimento. Por que
disse que a criança é amaldiçoada se a lenda é tão clara, tão límpida em dizer que um filho
entre as duas raças só poderia ser gerado se houvesse amor envolvido. Como um zirquiniano
como Dale, pertencente a uma espécie vil e insensível como a nossa, vivenciou relações
carnais com uma humana sem matá-la, gerou um filho e o tachou de amaldiçoado? Como teve
a coragem de pronunciar blasfêmia desse porte e ainda sugerir que poderia fazer outros filhos
nela? Por Tyron! Existe algo muito errado em andamento. Posso sentir, mas não sei o que é.
Sinto-me completamente cego e perdido.
Opto por ir atrás dele.
Peço a Tyron que tome conta da humana e, invisível, sigo durante três dias os passos de
um Dale de expressão sombria e andar cambaleante. Sua energia vacila ininterruptamente e
ele está tão desorientado que mal consegue captar a minha presença no ar. Acompanho-o
quando ele retorna a Zyrk. Fico mais confuso ainda quando ele passa longe do seu clã,
Windston, e, caminhando em uma espécie de transe, contorna as Dunas de Vento e sobe as
colinas escarpadas do Grande Conselho, único caminho viável em direção a Chawmin, o portal
pentagonal.
Ainda é dia, mas o céu na região onde fica o portal é escuro, mais negro que o de Thron,
meu antigo clã. Estremeço ao escutar trovões de advertência rasgando o ar. Não há nuvens e
ainda assim os relâmpagos são tantos que traçam uma teia gigantesca ao nosso redor. Os
uivos do vento machucam meus tímpanos. Tenho que forçar meus pés no chão para não
perder o equilíbrio. Vejo Dale se aproximar de Chawmin e hesitar por um instante.
Por Tyron! Ele ia se suicidar? Ia se condenar ao Vértice?
Quero berrar seu nome e alertá-lo sobre a estupidez que está prestes a cometer. Quero
acordá-lo daquele estranho estado de torpor, mas algo dentro de mim adverte para me manter
em silêncio. Sei que se ele entrar ali, nunca mais retornará. Ninguém nunca retornou do
Vértice.
A não ser que...
A parte inferior do portal se abre, mas Dale não faz menção em caminhar. Fica parado e
de cabeça baixa. De onde estou não consigo enxergar ou ouvir com clareza. Então dou mais
uns passos em sua direção.
— Congratulações, Dale! Você conseguiu o que nenhum outro foi capaz. Quando a
criança híbrida vai nascer? — Uma voz grave faz todos os pelos do meu corpo eriçarem.
Não podia ser! Aquela voz era de...? Ele estava conversando com Malazar, o
demônio?!
— Dentro de seis meses.
— Perfeito. Quero meu filho comigo assim que completar um ano de idade e puder
atravessar o portal.
Filho dele?!
— Mantenha qualquer zirquiniano afastado da humana prenha.
— Deixei dois homens vigiando-a enquanto estou em missão — responde Dale com
desânimo. — Assim que a criança nascer, eu mesmo me encarregarei deles.
— Bom. Poderá adiar a partida da humana até essa data. Enquanto isso, deleite-se com
as sensações que tanto sonhou experimentar.
— Mas é que...
— O que foi?
— Ela não me quer mais e... eu não pensei que seria assim, e...
Escuto uma gargalhada sinistra.
— Não queria ser um humano? — indaga a voz da besta com sarcasmo. — Agora
aguente lidar com as confusões emocionais dessa raça infeliz pela qual Tyron, meu adorado
pai, tanto se afeiçoou.
— Mas, eu não poderei usufruir de seu corpo, e...
— Tenho ciência de que já aproveitou o suficiente — escuto nova risada gutural.
— Foi por muito pouco tempo e...
— Cale-se! O pacto já foi selado. Cumpra o que lhe foi determinado, zirquiniano. Tragame meu filho híbrido! — troveja Malazar e observo, catatônico, Chawmin se fechar com
violência.
Caio de joelhos.
A força em ascensão no ventre daquela mulher era o filho do demônio!
CAPÍ
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