CAPÍTULO 7
Os minutos passam e, de repente, sinto seu cheiro impregnar minhas narinas. Ela está de
saída! Não há ninguém por perto de onde estou e então posso entrar no modo invisível. Ela
olha ao redor, certificando-se do ambiente à sua volta, enrola a echarpe no pescoço e começa
sua caminhada acelerada pela cidade deserta. Vou acompanhando seus passos e gosto de
ver que ela é rápida para uma humana de estatura tão pequena. Ela continua sua caminhada
veloz e me pego andando quase ao seu lado, admirando-a sofregamente. Vejo-a enrugar a
testa e fechar os olhos em alguns momentos e sua energia ficar inconstante. O que está
havendo? Ela aperta o passo. Há algo errado no ar. Posso captar. A madrugada ainda está
escura. Não há ruídos de motores de carros nem de conversas entre humanos. O silêncio é
tão forte que é possível escutar o ruído dos semáforos enquanto fazem as trocas das cores
do verde para o vermelho. Ela atravessa mais dois quarteirões e sua energia piora, vira uma
esquina e então tudo acontece muito rapidamente.
Vejo quando ela leva as mãos à barriga e força a respiração. Sua pele morena fica
repentinamente pálida como cera. Estremeço. Quero ajudá-la e sei que não posso me
materializar agora. Sinto duas novas forças crescendo em meu cérebro, que as processa
rapidamente e confirma: perigo! Identifico ao longe a silhueta de duas pessoas que, pelo porte
e odor, sei que se trata de humanos, e com propósitos mais que hostis, pressinto intenções
típicas da minha espécie. Há maldade no ar. Meu pulso dá novo salto quando capto a
presença de um resgatador por perto.
Céus! Ela foi descoberta!
Quero alertá-la, quero agarrá-la e levá-la para longe dali, mas também não posso. A
máxima que separa nossos povos: não tenho permissão para interferir no livre-arbítrio dos
humanos e, se o fizer, pagarei com a minha própria vida. Os homens a avistam e se
aproximam a passos rápidos, mas ela não percebe porque está curvada sobre o próprio
corpo. Observo os movimentos cada vez mais fortes de subir e descer do seu abdome, mas
não sai líquido algum de sua boca. Mas que droga! Ela parou para vomitar em uma hora
como essa? Sinto uma aflição enlouquecedora esquentar minhas veias. Tenho raiva de mim
mesmo por ter me permitido entrar em uma situação como essa e, ao mesmo tempo, ódio
avassalador por não poder retirá-la dali. Os homens se aproximam ainda mais. Ela finalmente
percebe e levanta a cabeça.
— Olá, princesa! Sozinha nessas bandas uma hora dessas? — começa um deles. O
outro a contorna lentamente. Estão fechando o cerco.
Identifico a energia assassina que os move, meus pulsos se fecham instintivamente e
enrijeço no lugar. Conheço-a de cor e salteado. Ela corre em minhas veias... Os homens
pretendem matá-la. Não eles, pobres marionetes com suas horas contadas, mas sim o
zirquiniano por detrás daquela ação em andamento. Covarde! Uma morte indireta para
aniquilar uma humana daquele tamanho? Gargalharia se minha ira não atingisse proporções
assustadoras. Nunca senti isso antes, mas poderia jurar que seria capaz de matar uma besta
com meus próprios dentes.
A humana não responde e vejo quando seus olhos vivos fazem uma rápida varredura do
lugar e estudam as possibilidades. Ela avista o portão semiaberto de um prédio situado alguns
metros à sua frente. Sua energia dá um pico. Ela é corajosa e ainda pretende lutar contra os
dois. Pela sua vida. Pelo milagre da existência abençoada que os humanos dão tão pouco
valor. Admirei-a profundamente naquela fração de segundo.
O sujeito que avança por trás a segura com violência. Sei que devo me manter alheio ao
que se desenrola à minha frente senão serei considerado cúmplice da ação. Não posso
interferir. Sou proibido de me materializar na frente dos humanos. Se desobedecer, sei que
não passarei incólume à varredura que o Grande Conselho fará no cérebro dos humanos
envolvidos. Pena de morte dolorosa e imediata. Pior: meu nome será gravado na pedra da
desgraça e humilhação. Não vou me envolver, murmuro repetidamente esse mantra que não é
bem aceito pelo meu cérebro desgovernado. Tenho ciência de que preciso sair dali e ir em
busca do resgatador que está por detrás daquela covardia em andamento, mas, se eu o fizer,
terei que deixá-la a sós com esses humanos em transe de morte, e quando voltar será tarde
demais. Para ela. Para a emoção que ela gera em mim. Não suportarei ver a cor viva de sua
face ser substituída pelo opaco esquálido, a assinatura cruel da minha espécie.
Dane-se! Eu vou ajudá-la! Tenho que arrumar um meio!
Minha força cai absurdamente em modo invisível, mas, ainda assim, manejo acertar um
golpe no braço do sujeito que a imobilizou. Ele leva um susto, puxa o braço para si e a solta
por um momento. Quando uso minha energia para defendê-la e o ataco, sei que quebro
momentaneamente a corrente magnética que o une ao seu orientador. Acabo de acionar o
resgatador causador. Ele agora tem ciência da minha presença. Maldição!
— O portão — sussurro em seu delicado ouvido e sou bombardeado pelo seu perfume
em minhas narinas e mente. Perco o equilíbrio. — Corra para o portão — reitero, mas no
fundo sei que não precisava repetir, pois já era isso o que ela tinha em mente.
Minha pequena humana não hesita e, mais rápida do que eu poderia imaginar, se esquiva
do algoz e está correndo em direção ao prédio. Ele fica para trás por um segundo, mas, no
instante seguinte, a sombra mortal dos dois cresce sobre ela. As pernas compridas deles
conferindo-lhes passadas muito maiores que as dela. Um deles joga seus braços no ar e tenta
agarrá-la, mas, ainda invisível, coloco um pé no seu caminho e ele se espatifa no chão. Escuto
quando pragueja alto, mas mal lhe dou atenção, estou focado no queixo do outro homem,
tentando unir todas as minhas débeis forças invisíveis para acertar-lhe um soco em cheio.
Consigo meu objetivo e intercepto seu avanço selvagem sobre ela. O estado de transe do
infeliz é tão forte que tenho a impressão de que seu corpo está possuído por um alucinógeno
potente. Mas sei que não está. Farejo sangue límpido correndo em seu organismo. Ainda
estou zonzo com a situação. O ataque deles é tão imediato, tão sem meio-termo, que chego a
me assustar. Em geral as mortes indiretas costumam ser lentas, para deleite, puro
divertimento do zirquiniano que a produz. Mas não é o caso aqui. O resgatador que os enviou
não pensa em perder tempo com diversões, a quer morta e ponto final. Pergunto-me por que
ele mesmo não veio eliminá-la? Seria tão fácil...
Fico tão desorientado com o que acontece bem diante dos meus olhos que perco um
instante crucial da luta. Quando dou por mim, escuto um berro e vejo a humana se contorcer
pela grade do portão de ferro vazado. Foi tudo rápido demais. Ela conseguiu chegar ao prédio,
mas um dos homens alcançou sua echarpe e, por entre as grades de ferro do portão,
começou a sufocá-la, espremendo seu delicado pescoço com força absurda. Os berros da
coitada se transformam em gemidos de dor. Ela engasga, mas ainda luta, tentando rasgar o
pano com as próprias unhas, procurando se livrar dele de todas as formas. Sua energia está
em rápido declínio. Atordoado, coloco-me atrás do sujeito, socando-o repetidamente, mas
pouca diferença faz. O homem está tão concentrado que meus fracos golpes invisíveis não lhe
causam qualquer desconforto. Entro em pânico quando o comparsa vem em seu auxílio e
agora os dois estão unindo forças, retorcendo a echarpe e a estrangulando sem compaixão.
Vejo as pequeninas mãos da humana perdendo a luta. Vejo-a perdendo o ar e noto quando
seu delicado rosto adquire um aspecto arroxeado e seus lábios se ressecam. Sua energia
começa a falhar. Se eu não agir agora, vou perdê-la para sempre. Sei que ela não vai suportar
muito mais.
Meu cérebro está a mil por hora. Em uma fração de segundo vejo o meu mundo, as
minhas crenças e a minha existência desmoronarem como um castelo de areia lambido por
uma onda do mar. Frágeis. Falsos. Aperto os olhos e os dias de glória como resgatador e os
sete anos de aprofundamento espiritual desintegram bem à minha frente. Tudo sem propósito.
Pela primeira vez em minha existência, tenho vergonha de ser o que sou e de estar invisível.
Acho-me verdadeiramente um espectro assombrado e questiono minhas verdades. Minhas
certezas nada mais são do que grandes farsas maquiadas.
— NÃO! — trovejo e, em seguida, quebro a última regra: materializo-me na frente dos
três. Sem perder tempo, seguro a cabeça de um deles e a bato com violência contra a grade
de ferro. Assusto-me com a minha ira desmedida. O golpe é tão forte que o sujeito desmaia
instantaneamente. O segundo homem hesita. Parece decidir entre continuar o assassinato ou
defender a própria vida. Abro um sorriso mortal quando noto que ele opta por continuar sua
ação. O resgatador que o comanda está realmente desesperado em aniquilar aquela humana.
Parto como um animal selvagem para cima dele e o atinjo com uma sequência de socos.
Escuto o corpo da humana cair do outro lado das grades. Escuto sua respiração asmática e
sinto sua energia tornar a crescer. Sou tomado por uma sensação de alívio que nunca antes
tive a oportunidade de experimentar. Graças a Tyron! Ela está bem! Torno a olhar para o
infeliz à minha frente, mas estou cego e não enxergo nada a não ser ira. Continuo esmurrando
o humano sem parar. Vejo seu sangue escorrendo entre meus dedos e seu rosto começar a
deformar sob a ação dos meus golpes.
— Apareça, covarde! — grito para o ar gelado da madrugada. Minha voz ecoa na rua
deserta. Quero que o resgatador responsável por aquilo mostre a cara, mas é covarde demais
para tanto. Ele sabe que eu me ferrei, que logo o Grande Conselho vai ler a mente dos
humanos envolvidos e descobrir o que eu fiz. A não ser que...
— Acabe logo com eles! É só questão de tempo! — ouço a voz dela. Está rouca e
assustada.
Ela diz em voz alta o que eu já havia cogitado, mas que não quis admitir para mim
mesmo: ambos têm a marca negra em sua aura, a confirmação de que seus dias estão
contados e que morrerão em breve. Assim como ela...
— Rápido! Antes que apareça alguém — torna ela a comandar e, apesar de saber que é
o mais lógico a fazer no momento, hesito. Há sete anos não mato nenhum humano. Se quero
permanecer vivo, não tenho outra opção. Inspiro profundamente e então eu o faço com
maestria: elimino os dois com um simples quebrar de pescoço. Tento refrear o prazer que
sinto na ação, como se fosse um viciado que acredita estar curado até o momento em que
coloca a droga novamente em suas mãos.
— Como você...? — começo a perguntar, mas não tenho tempo de ir adiante. Ela segura
meu braço e me puxa para uma corrida. Eu a acompanho ainda mais satisfeito e encantado.
Ela é uma receptiva! E das boas!
Corremos mais três quarteirões de mãos dadas e, mesmo sem dizer uma palavra
sequer, nunca me senti tão vivo, tão em sincronia com o universo, como se já a conhecesse há
anos, como se tudo aquilo fizesse parte de um plano perfeito, irretocável. Ela para em frente a
um prédio antigo e olha para mim.
— Foi ele quem te enviou para me proteger? — e antes que eu pudesse perguntar a
quem se referia, ela se adiantou: — Você se materializou para me salvar?
— E-eu, eu... — a voz custa a sair e, quando o faz, novamente está estranha e fraca.
Céus! Por que fico tão atordoado perto dela?
Ela balança a cabeça positivamente e, em seguida, expõe um sorriso repleto de malícia.
— Vem cá — ela gesticula com o indicador e comanda com candura. Não contesto. Sou
um metro e noventa de puro atordoamento e emoção. Sinto-me patético, mas absurdamente
satisfeito com aquele pedido. Não sei que sentimento é esse, mas estou pegando fogo, mais
acordado do que quando massageiam a minha vaidade. Aproximo-me lentamente. Deveria ter
medo dela? Ela está planejando algum golpe?, indaga minha consciência sempre atenta e,
por via das dúvidas, deixo minhas mãos em estado de alerta ao lado do corpo. — Mais perto
— pede ela com voz melosa. Então nossos rostos ficam frente a frente e seus olhos negros e
impenetráveis estudam os meus receosos olhos azuis.
— O que você quer? — pergunto finalmente e minha voz sai mais abafada e rouca do
que de costume. Sinto o perigo à espreita. Estou ficando agoniado demais e sei que cada
segundo olhando para ela me afasta do meu caminho de volta. Estou irremediavelmente
perdido.
— Agradecer — responde e, antes que eu diga qualquer coisa, ela joga seus braços ao
redor do meu pescoço e encosta sua boca na minha. Paro de respirar e arregalo os olhos. Um
beijo! Eu estava recebendo um beijo humano! Minha reação inicial é jogar meu corpo para
trás, mas é tarde demais. Quando sua língua afasta meus lábios sem resistência e encontra a
minha, sinto meu corpo estremecer no lugar. A velocidade com que a minha língua a aceita e o
prazer com aquele toque é tão arrebatador que acho que vou explodir ali mesmo. Sinto meu
coração dar socos violentos na caixa torácica e outras partes do meu corpo acordar. Perco
todo o oxigênio dos pulmões. Vou sufocar de uma sensação maravilhosa, mas não quero que
acabe. Ela se afasta e ri de meu estado catatônico antes de desaparecer, fechando o portão
do seu prédio e me deixando em estado de torpor do lado de fora. Percebo que é a segunda
vez que ela faz isso comigo em uma mesma noite. Checo ao redor e não capto a essência do
resgatador. O covarde deve ter se mandado. Aliviado, afasto-me dali. Preciso pensar, mas no
lugar dos meus neurônios encontro apenas pó.
Só sei de uma coisa: estou ferrado.
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