CAPÍTULO 6
Não colocava os pés na segunda dimensão havia vários anos. Um arrepio estranho
avança pelo meu corpo quando me deparo com um novo mundo à minha frente. Chacoalho a
cabeça e não dou atenção àquele primeiro sinal. Algo havia mudado de fato, mas não eram os
humanos. O novo mundo era eu! Eu me sentia diferente! Era tecnicamente a primeira vez que
entrava na segunda dimensão sem estar na pele de um resgatador de vidas e, pela primeira
vez na minha existência, minha missão era apenas observar e não matar. Tive que controlar
meus nervos e dominar meu impulso selvagem à força. Eu ainda podia sentir o guerreiro dentro
de mim vibrar alucinadamente. Ele era forte demais e ainda queria lutar, precisava matar.
Foco, Ismael!
Tornei a tragar o ar. Precisava me manter calmo e atento. Por que me sentia tão tenso
assim? Meu mestre deve ter se enganado. Talvez aquela missão não fosse para mim...
Mas ele nunca se enganou!
Sertolin disse que eu, somente eu, estaria apto a identificar a tal força poderosa e em
expansão. Mas não foi capaz de me fornecer nenhuma outra pista. Deu-me uma noção de
localização e só. Teria que fazer o trabalho de olhos fechados, procurar às cegas, baseandome
apenas no primitivo instinto que ele jurou que eu possuía.
Não imagino que droga de instinto é esse, raios! Na certa vou ficar vagando por essa
dimensão até morrer de velhice!
#
Duas semanas desde que coloquei os pés nessa estranha dimensão e sinto-me mais
perdido do que nunca. Há momentos em que tenho certeza de que estou cada vez mais
próximo da tal força poderosa, noutros duvido da minha sanidade mental. Acho que estou
enlouquecendo. Essa dimensão tem muitas facetas e todas elas são carregadas de
duplicidade. Os humanos são mais que imprevisíveis, são surpreendentes e ainda mais
complexos que o mundo em que estão aprisionados. Sinto o pilar da minha concentração, a
capa da serenidade que desenvolvi durante os anos de aprendizado entre os senhores do
Grande Conselho descascando minuto após minuto que permaneço aqui, deixando aflorar
meus velhos instintos de guerreiro. Nego-me a aceitar que esteja perdendo a batalha para
meus nervos. Estou agitado, um misto de agonia e ansiedade se desenvolve em meu peito,
como o espírito de um soldado instantes antes de entrar na batalha final. Preciso que esse
flagelo, essa tortura interna, acabe logo. Sei que não conseguirei aguentar muito tempo mais
nestas condições e não posso voltar a Zyrk sem absolutamente nada, nenhuma pista sequer.
Preciso cumprir minha missão. Não posso falhar com Sertolin novamente. Levo as mãos ao
pescoço. Minha língua gruda no palato. Sinto minha boca rachada, seca. Só então me dou
conta de que não como ou bebo nada há mais de três dias. Preciso me hidratar com urgência!
Não trago dinheiro humano comigo e resolvo ficar invisível para alcançar meu objetivo. Vejo
uma lanchonete na esquina, a uns cem metros de onde estou e, aproveitando-me de que a
porta está aberta a despeito do frio, entro e furto uma garrafa de água do balcão próximo à
entrada. Viro seu conteúdo de uma única vez, mas começo a perceber que não era sede a
sensação estranha que avançava sobre meu corpo. Por Tyron! O que está havendo comigo?
Escuto a porta bater e tenho vontade de berrar um palavrão. O murmurinho das pessoas
sentadas nas mesinhas arranham meus ouvidos, como o som de milhares de insetos
repugnantes. Claro! Como não percebi isso antes? Não sou eu que estou perdendo a razão,
são eles que estão me enlouquecendo! Quero sair dali o mais rápido possível e agora terei de
esperar. Preciso de ar. Necessito meditar em um lugar calmo e sem a presença de nenhum
humano por perto. Colocar em prática os ensinamentos de autocontrole da mente que aprendi
em Sânsalun. Tento abrandar minha pulsação. São em momentos como esse que gostaria de
ser um fantasma, atravessar aquela porta de entrada e desaparecer. Mas não posso. Como
também não posso aparecer ou desaparecer na frente dos humanos. É terminantemente
contra as normas do Grande Conselho. Os poucos zirquinianos que ousaram fazer isso
pagaram com a vida e tenho muita estima pela minha para me prestar a uma besteira desse
porte. Dessa maneira, preciso continuar respirando e aguardar o momento ideal para sair
daqui. Nunca gostei de ficar muito tempo próximo aos humanos, mas por alguma razão estou
mais aflito que o normal. Fico ao lado da maldita porta que agora resolve não abrir. Cinco
minutos de espera. Dez. Vinte. Tento me acalmar e, pelo vidro da janela, admiro o Empire
States e conto os segundos enquanto observo os flocos de neve rodopiarem no ar. A
temperatura caiu bastante. Os fracos humanos não a toleram e o número de pessoas
caminhando pela calçada é nulo. Começo a achar que terei de esperar uma eternidade quando
escuto pisadas rápidas e estaladas, típicas dos sapatos com saltos que as mulheres humanas
costumam utilizar. Alguém se aproxima em uma corrida. Escuto a respiração entrecortada do
lado de fora e vejo a maçaneta da porta girar. Ótimo! Minha chance de sair daqui! No instante
seguinte, uma bela humana empurra a porta de madeira e entra acelerada na lanchonete. Ela
não a abre totalmente, de forma que tenho que me espremer entre seu corpo e o umbral da
porta para conseguir sair. A humana de repente resolve sacudir a neve dos longos cabelos
negros e esbarra em mim.
Um toque.
Um único toque.
Um simples contato e alguma coisa muda dentro de mim naquela mínima fração de
segundo.
Tudo acontece tão rapidamente que o chão é varrido dos meus pés com velocidade
absurda e me sinto caindo em um abismo, sem ter onde me agarrar. Sei que ela não pode me
ver, mas tenho certeza de que ela conseguiu me sentir porque seus olhos negros e vívidos,
como duas jabuticabas cintilantes, elevam-se em minha direção. Seu movimento de cabeça
não deixa dúvidas. Ela é baixa e inclina o corpo para trás. Típica reação daqueles que lidam
com os meus quase um metro e noventa de altura. Por que olharia para cima se não fosse
capaz de captar minha energia? Sei que estou invisível, mas tenho a sensação de que ela
pode ver através de mim. Sinto-me nu de corpo e alma. Congelo no lugar e sei que esse foi
meu primeiro erro. Deveria ter-lhe dados as costas e ido embora imediatamente. Um bom
guerreiro sabe o momento em que precisa recuar para recuperar suas forças e tornar a atacar
em outra ocasião. Trinco os dentes. Não sou mais um bom guerreiro e a certeza disso, por
mais dolorosa que seria em qualquer outra ocasião de minha existência, afeta-me de forma
estranha agora. No lugar onde deveria haver decepção, dor e tristeza, acabo encontrando a
dúvida e a excitação. Quero continuar a olhar para ela. Seu rosto lindo, suas bochechas
rosadas pelo frio, sua aura de felicidade. Fico tão atordoado com a sua presença que não me
dou conta de que estou bloqueando a passagem e que, caso alguém resolva passar por ali,
acabaria trombando comigo. Devo seguir as normas e ser imperceptível aos humanos. É
assim que deve ser. A humana enxuga o rosto e ajeita o sobretudo bege no corpo. Há uma
graciosidade incrível em todos os seus movimentos, uma energia inexplicável a envolve.
É ela! A força poderosa e em expansão vem dela!
Levo as mãos à cabeça e saio como um foguete dali.
#
Preciso saber um pouco mais sobre essa humana, sobre essa energia que carrega e que
cresce a cada momento. Quero compreendê-la antes de aniquilá-la. Posso adiar sua partida
em um ou dois dias, não fará diferença alguma. Estudioso como é, fico imaginando a
satisfação do meu líder quando ficar a par desse caso extraordinário, das descobertas que
obtive. Sinto um bem-estar incrível com essa nova decisão e sou tomado por minha antiga
amiga: a vaidade. Fui um guerreiro vaidoso de corpo e alma no passado e, se não fossem
pelos anos de aprofundamento espiritual, se não fosse por Sertolin, ainda seria tomado pelas
amarras da arrogância e orgulho.
Estou em modo visível e, do outro lado da calçada, vejo quando ela abre as portas de
vidro do grande arranha-céu de onde homens de terno entram e saem o tempo todo. Fica
algum tempo ali, sentindo prazerosamente o vento roçar seu rosto delicado até resolver
começar sua caminhada em direção ao norte. Ela é morena clara e tem baixa estatura. Está
trajando uma blusa de seda vermelha justa com um avantajado decote no colo, uma saia preta
também justa termina acima de seus joelhos e equilibra-se com graciosidade em sapatos de
saltos altos pretos e brilhosos. Sua panturrilha bem definida chama minha atenção mais do que
o necessário. Chacoalho a cabeça e me forço a focar no objetivo que me trouxe ali: estudar a
força nela e não ela.
Uma rajada de vento. Ela parece gostar muito da sensação do vento em seu rosto,
porque estanca o passo de repente e novamente se delicia com o momento. A echarpe
escorrega sedutoramente pelos seus ombros e cai na calçada. A humana vira-se para trás.
Não tenho chance de me esconder e a possibilidade de ficar invisível com tantas pessoas por
perto é descartada de imediato. Sem opção, congelo poucos metros atrás dela. Outra lufada
de vento faz alguns fios dos seus volumosos cabelos negros dançarem no ar e pousarem em
seus lábios vermelhos como sangue. Ela nota a minha presença e eleva os olhos negros na
minha direção. Como da outra vez. Só que não estou invisível agora. Fico preso em seu olhar.
Sinto o mal presente nela, uma vibração de ondas ruins. Mas também vejo a luz ofuscante que
irradia de seus olhos, única, tão absurdamente límpida e penetrante. Diferente de tudo que já
vi ou senti na minha existência e...
Céus! Estou sendo enganado? Virei um joguete? Mas nas mãos de quem? Por quê?
Encontro-me perdido em um atordoante truque de ilusão. Não consigo mais diferenciar o bem
do mal... Tudo leva a crer que essa mulher está sob a possessão de uma força maligna
poderosíssima. Claro! Esse chamado da carne, essa atração avassaladora que sinto pelo
corpo dela só pode ser algum feitiço de Malazar. Aproximo-me ainda mais. Ela não recua. Não
posso sucumbir. Preciso matá-la!
Então cometo o erro de número dois.
Minhas mãos rompem a barreira de energia estranha que protege a humana e tocam em
seu abdômen. Apenas tocam e mais nada porque, no instante seguinte, a mulher sorri para
mim. Foi ali, naquele ínfimo segundo, que tive a certeza de que estava perdido de vez, que
entrara em um caminho sem volta. O sorriso mais lindo e hipnotizante do mundo me prendia
em uma teia sedutora e mortal. Minhas mãos tremem, hesitam e paralisam sobre seu ventre
ao mirar o cintilar do batom vermelho em seus lábios tentadores, seu rosto perfeito. Meu pulso
dá outro salto quando algo estremece dentro dela. Perco o controle do meu corpo. Acho que
vou ter uma síncope. Não é normal o coração bater tão forte assim dentro do peito.
De repente a humana morde o lábio inferior, e, sem mais nem menos, dá-me as costas e
entra em um lugar abarrotado de gente e música alta.
Merda! O que foi que eu fiz?
#
Fico ali, paralisado em meio aos borrões de pessoas que pipocam como flashes à minha
volta. Não me reconheço. Não compreendo minhas reações. Começo a duvidar de que serei
capaz de colocar o plano em ação, de que conseguirei estudá-la sem antes sucumbir e ser
hipnotizado por essa força magnética que pulsa através de sua pele. Há alguma coisa
diferente nela, posso sentir. Mas também há algo excepcional em seu organismo, bom demais
para ser destruído sem entendimento... Pressinto que é melhor esperar. Ela venceu a batalha
de hoje, mas a guerra prossegue e é só questão de me preparar melhor. Devo recuar para
tornar a contra-atacar. Tornarei a procurá-la amanhã, asseguro a mim mesmo, e tento sair
dali.
Mas minhas pernas não se mexem. Quero ir atrás dela. E agora!
Transito invisível pela multidão que se aglomera na porta de entrada. Empurro pessoas
no meu caminho até o banheiro (o lugar onde pretendo me materializar) e ninguém reclama dos
meus empurrões tamanha a confusão de pessoas dançando, rindo e berrando para conseguir
se fazer entender em meio àquela música que martela os tímpanos com violência. Que povo
estranho! Como os humanos sentem prazer nisso?
Saio do banheiro poucos segundos depois e agora a situação é bem diferente. Tento
refrear o prazer demoníaco que me toma quando quase todos os rostos femininos giram na
minha direção. Os anos de reclusão me fizeram esquecer esta agradável sensação que
somente o poder é capaz de gerar. A vaidade me envolve em seus braços e me deixo embalar
por ela. Gosto dela. Chacoalho a cabeça, arrependido de tal pensamento. Sertolin ficaria
decepcionadíssimo comigo se soubesse. Apesar de negar veementemente, sei que ele
sempre teve medo desta minha faceta sombria. Respiro fundo e concentro minhas forças.
Preciso me manter humilde. Tenho de me manter focado.
Localizo a morena sentada junto com as amigas em um sofá mais ao fundo daquele lugar
claustrofóbico. A nuvem de fumaça produzida pela queima do tabaco e as luzes coloridas que
piscam incessantemente fazem meus olhos arder. A quantidade de pessoas dançando e se
esbarrando naquele ínfimo ambiente é absurda. Podia jurar que um clã inteiro encontra-se
dentro do cubículo escuro que os humanos chamam de pub-danceteria, ou coisa parecida. No
passado achava esse tipo de lugar perfeito para realizar minhas buscas. Os humanos adoram
encher a cara de bebidas alcoólicas assim que colocam os pés nesses locais. O álcool...
Sempre esse maldito desde os primórdios... Nunca o experimentei e ainda assim tenho
repulsa por uma bebida que seja capaz de arruinar o discernimento de um guerreiro, alterar a
racionalidade de quem ousar enfrentá-lo. Vejo quão sábia foi a decisão do Grande Conselho
em proibi-lo na minha dimensão. Fico enojado com a forma vulgar que as mulheres em seu
poder se comportam, como me olham ou vêm falar comigo. Sinto asco em acompanhar o veloz
declínio moral dos humanos que o consomem, e diria que tenho até prazer em acabar com a
vida de uma pessoa que não foi capaz de dar valor aos seus preciosos reflexos e,
principalmente, ao seu instinto de sobrevivência, o tênue fio de energia que os une a essa
dimensão. Facílimo de entrar em suas psiques, mais fácil ainda eliminá-los com um simples
sopro...
Pisco e torno a olhar para ela. A morena está com uma bebida nas mãos, mas não a vejo
beber em momento algum. Suas amigas continuam conversando muito, gargalhando e, para
variar, sorrindo para outros homens. A pequena humana de cabelos negros parece
incomodada com alguma coisa. Com frequência ela gira o rosto em várias direções, como se
procurasse por algo ou alguém... Seria ela capaz de me sentir ali? Seria um caso raro de
percepção de que tanto ouço falar? Ela era uma receptiva?
Mesmo à distância é impossível não ficar hipnotizado por sua energia pulsante, pelo odor
distinto que exala de sua pele, tão inebriante e diferente de todos que já me deparei, seus
trejeitos ao falar, a forma como mexe os lábios grossos e arruma os cabelos, seu colo
desnudo... Céus, Ismael! O que está havendo contigo, homem?
Alguns machos se aproximam da mesa onde ela está com as amigas, e em geral é para
ela que direcionam sua testosterona envolta em uma capa daquele odor forte que aprendi a
reconhecer como feromônio. Eles oferecem ou pedem alguma coisa, não sei dizer o que, mas
saem de lá com apenas um mero cumprimento de cabeça. Não compreendo minha reação,
mas fico satisfeito com a recusa dela, realmente satisfeito. Isso não está certo, não mesmo. A
forma como sou sugado para seu campo gravitacional, a forma como ela me seduz, essa
energia não é normal, ela não pode ser humana... Preciso ir embora! Amanhã continuarei
meus estudos e...
Sinto uma alteração em sua energia. Vejo quando ela aceita o convite de um humano e
se dirige para a pista de dança abarrotada de gente. Travo no lugar. Simplesmente travo. Uma
cola potente me adere ao chão e não consigo sair de onde estou. Nenhuma parte do meu
corpo responde ao chamado acalorado de minha mente. Meu pescoço movimenta-se por
conta própria e guia meus olhos mais abertos do que nunca. Eles vigiam cada movimento dela
com avidez doentia. Vá embora daqui, Ismael!, grita a voz em meu crânio, a companheira e
sensata voz que sempre me guiou durante minha existência. Não a obedeço. Estou
hipnotizado. A humana move-se com graciosidade, seus cabelos negros, como a crina de um
corcel, fazem todos os pelos da minha pele eriçar e minha boca secar. Céus! O que está
acontecendo comigo? Preciso sair dali e procurar ar fresco. Pressinto que vou asfixiar a
qualquer instante. Começo a suar em abundância e, atordoado, avanço como um louco sobre
a bandeja de um garçom, pego os dois copos que se encontram sobre ela e despejo seu
conteúdo boca adentro. A bebida tem cheiro bom, mas é amarga e queima a garganta.
Arrependo-me de imediato e xingo alto. Ninguém me ouve. Mas, para minha surpresa, após
algumas piscadas, sinto uma melhora quase que imediata em minha estranha sede. Torno a
procurar por ela na pista de dança e a vejo sorrindo para o humano que a acompanha, as
mãos do sujeito passeando pelas costas dela no ritmo daquela música enlouquecedora.
Instantaneamente sou tomado por uma sensação ruim. Não a reconheço. Há uma camada de
cólera sobre ela, mas não se trata de uma cólera habitual, não se trata de nenhum dos
habituais vis sentimentos zirquinianos, como raiva, inveja, cobiça, entre outros. Simplesmente
não consigo identificar o que é. Nunca o experimentei em meus treinamentos com Sertolin, mas
tenho uma vontade insana de estrangular o pescoço daquele humano, como se fosse o meu
mais antigo inimigo. Num piscar de olhos o pobre coitado acordaria no Vértice. Rio da minha
piada macabra.
Honro meu passado glorioso e não seria agora que faria uso de uma morte indireta para
aniquilar o pobre infeliz. Rio sarcasticamente de mim mesmo porque sei que, se eliminasse
algum humano fora da hora da sua partida, seria eu a ir diretamente para o Vértice. Torno a
respirar fundo quando percebo uma confusão se formar próximo aos dois. Uma habitual briga
entre humanos bêbados. Sete anos atrás eu teria gostado de presenciá-la. Divertia-me
verdadeiramente quando, no passado, eu os fazia de marionetes e os colocava para brigar
antes de resolver eliminá-los. Conferir alguma graça em sua despedida. Odiava partidas
monótonas. Mas a situação no momento não me gera qualquer contentamento. Sei que não há
perigo de morte no lugar. Não farejo nenhum dos meus por perto. Mas ainda assim estou
incomodado com o fato de que a humana possa acabar se ferindo. Não quero que a
distribuição de socos e pontapés a atinja de alguma forma. Está muito perto dela. Entorno
mais um copo cheio de outra bebida que se encontra sem dono no balcão às minhas costas.
Continua amarga e desagradável, mas não desce queimando como da vez anterior. Não posso
me envolver. Não vou me envolver. Ela que se cuide. Não escolheu ficar com aquele
paquiderme humano? Pois que ele a proteja. Preciso ir embora.
Pisco, mas meu piscar sai lento. Há um formigamento gostoso em minha pele e meus
pensamentos estão ligeiramente embaralhados. Então me dou conta: o álcool! Que raios!
Essa bebida macabra, essa praga está fazendo ninho em mim. Não posso permitir.
— Não! — Alguém berra.
Pisco novamente e escuto um estrondo, outros berros, e o grito histérico de uma mulher.
As cenas parecem em câmera lenta. Vejo um homem discutir aos brados e socar o adversário.
Este último está tão bêbado que, ao tentar revidar, seu golpe sai desengonçado e ele passa
direto, tropeça em uma mesa, derrubando-a e levando ao chão as pessoas e os copos de
vidro. Em seu impulso feroz e desorientado, avança sobre o acompanhante da minha humana,
que apenas pensa em livrar a própria pele e covardemente sai da linha de risco, deixando-a de
frente com o ataque do homem bêbado.
Asas surgem em minhas pernas porque estou praticamente voando no instante seguinte.
Em minha corrida meteórica em direção a ela, desvencilho-me de qualquer obstáculo no
caminho, empurrando cadeiras e pessoas com força descomunal. Percebo a energia encolher
abruptamente dentro dela e o medo expandir em sua essência. Vejo o homem bêbado
tropeçar nas próprias pernas e cair. Vejo a garrafa na mão do infeliz rodopiar no ar. Droga!
Estou quase lá, mas não vou conseguir chegar e... Atônito e sem parar de correr, observo
com satisfação quando a morena usa seu reflexo e joga seu lindo corpo para trás e se desvia
da garrafa que bate no chão ao seu lado e explode em milhares de pedaços. Por um
centésimo de segundo, fico orgulhoso em ver que ela tem reflexos rápidos para uma humana,
mas, no instante seguinte, vejo-a escorregar ao pisar em um caco de vidro, o traiçoeiro salto
do seu sapato torcer em um ângulo agudo e a humana desequilibrar, caindo de encontro às
lâminas de vidro. Dou um último impulso e, de qualquer jeito, jogo-me bem a tempo de segurar
seu corpo ainda no ar, a poucos centímetros do chão. Apavorada, ela finca as unhas em minha
pele e se agarra em mim como pode. No instante seguinte eu a coloco de pé e sua pequena
cabeça afunda em meu peitoral, a respiração rápida demais. Sua energia torna a expandir. Ela
se afasta para me olhar. Sinto-me bem ao perceber sua expressão de alívio e felicidade em
estar ali comigo. Sinto-me mais do que bem quando vejo o brilho da admiração refletir em seus
profundos olhos negros. Sou acordado do transe pelos aplausos efusivos das pessoas ao
redor. Nova onda de satisfação. Jamais poderia esperar uma atitude assim vinda da parte
deles. Meu peito estufa. Gosto de ser ovacionado. Sacudo novamente a cabeça. O que foi
que eu fiz? Eu devia ser invisível para eles e não ter virado um super-herói.
Ainda estou zonzo quando volto a mim. A bela humana está em meus braços e
desvencilho-me dela com rapidez. Apesar de não perceber qualquer alteração em suas
vibrações, não sei até que nível do meu contato ela suportaria antes que sua energia vital
começasse a ser drenada por mim. Sinto um calafrio na coluna quando me dou conta de que
sou a personificação da morte e acabo de salvar a vida de uma humana.
— Você está bem? — pergunto com uma preocupação que sei que é desnecessária,
mas, por alguma razão, preciso ouvir a resposta de sua boca.
— Sim. Graças a você — diz ela com a voz mais suave que já tive a oportunidade de me
deparar na vida. Todos os sons ao redor desaparecem.
— Bom — respondo e me calo. Perco o raciocínio. Faço papel de idiota. Estou tremendo
e amaldiçoo o álcool por me deixar naquele estado.
— Hmm — ela faz esse som com a boca quando fico em silêncio e não dou o menor sinal
de que falarei novamente. Não tenho controle sobre a minha voz também. — Nunca o vi por
aqui — ela se adianta. — É novo na cidade? Trabalha com o quê?
Por Tyron! De onde saiu aquela enxurrada de perguntas? Começo a tremer.
— Preciso ir — digo finalmente. Ela percebe o tremor em minhas mãos. O que não
imagina (e o que me nego a acreditar!) é que estou tremendo por estar ali com ela e não pela
situação que acabei de passar. Enfio minhas mãos no bolso, faço um gesto de despedida com
a cabeça e dou dois passos em direção à saída.
— Ei? — Sua delicada mão segura meu braço. Eu giro a cabeça sobre o ombro e a vejo
logo atrás de mim, uma expressão vívida e desejável em seu rosto lindo. — Posso ao menos
saber o nome do meu salvador?
“Salvador”? Ao ouvir essa palavra, reprimo um sorriso sarcástico. Meneio a cabeça
negativamente. Ela repuxa os lábios, não sei se está segurando um sorriso também, mas não
parece estar chateada com a minha reação. Ela me encara. Ela é forte. A atração que sinto
por ela dobra de tamanho. Sou um guerreiro e amo sangue guerreiro.
— O que você faz na vida? — pergunta com atrevimento. Pressinto que se não lhe
fornecer uma resposta qualquer, ela não vai me deixar em paz. Eu mato humanos! É o que
simplesmente tenho vontade de dizer, mas me calo. Coloco meu cérebro para funcionar e
tento pensar o mais rápido que posso. O álcool não ajuda muito.
— Eu... — titubeio. Não sou um medroso que se esconde atrás de mentiras. Não vou
mentir. — Trabalho com resgates... — Deixo as palavras soltas no ar, esperando que ela
acreditasse que eu era funcionário de banco ou que trabalhava na bolsa de ações.
— Entendi — ela pisca para mim e solta meu braço, como que me dando permissão para
sair. Quase rio da situação. Quase. — Resgates, né? Então você é o meu resgatador! —
afirma com alegria e me dá as costas.
Quase engasgo com suas palavras e fico plantado como um tonto no meio da pista
enquanto vejo sua cabecinha se afastar e desaparecer no meio de tantas outras.
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