quarta-feira, 16 de maio de 2018

CAPÍTULO 18 - Não Fuja

CAPÍTULO 18
— Nina, acorde. Precisamos partir — Richard anunciava enquanto estalava o pescoço e
alongava as costas. Uma fraca claridade penetrava na gruta, agora já sem a camuflagem na
sua entrada. Estava amanhecendo. — Conseguiu descansar?
A sensação era de que havia acabado de fechar os olhos. A tristeza que me impregnava
a alma havia consumido boa parte da minha energia. Ainda assim, menti, assentindo com a
cabeça.
— E você?
Ele me lançou uma piscadela rápida, mas não me convenceu. Eu o entendia cada dia
mais e sabia que também estava mentindo. Richard não havia dormido. Na certa, o coitado
havia passado a noite em claro e me vigiando.
— O dia será curto e teremos de correr. — E, sem rodeios, perguntou com urgência: —
Você ainda quer ir para Marmon? Mesmo depois de tudo que lhe contei?
Eu me fiz aquela mesma pergunta um milhão de vezes antes de adormecer em seus
braços. Estaria disposta a ir fundo e exigir toda a verdade de minha mãe assim que a
encontrasse? Se eu a encontrasse... Invariavelmente a conclusão era sempre a mesma: sim!
Eu tinha de conhecer a minha história, o meu passado. Eu precisava de respostas. E a única
pessoa que poderia fornecê-las era a minha mãe.
— Quero.
Richard piscou mais uma vez e, sorrindo, pareceu orgulhoso com a minha escolha. Sua
postura autêntica e amistosa mexia fundo comigo. Sem a sua armadura de terrível resgatador
de Thron, ele parecia até mais novo e ainda mais lindo. Estava adorando conhecer esse seu
outro lado, aquele que a Sra. Brit jurou existir. Uma pontada de felicidade salpicou em meu
peito e rechaçou a semente do temor que insistia em germinar em minha mente toda vez que
me recordava da advertência da bondosa bruxa, alertando-me de que Richard havia feito algo
errado. Flashes do que ele vinha fazendo para me manter viva apagavam qualquer dúvida. Ele
mal tocou em mim de tão preocupado em me causar algum mal, ele se importava comigo mais
do que podia imaginar. Eu queria chegar a Marmon e, ao mesmo tempo, estava adorando ficar
algum tempo a sós com Richard.
— Ah! Dei uma saidinha e olhe o que consegui. Não é grande coisa, mas...
— Pão! — Meu estômago vibrou mais alto do que minha voz.
— E tâmaras — acrescentou satisfeito ao me ver abocanhar um enorme pedaço de pão
sem a menor cerimônia. — O mercado das minas daqui vive às moscas.
— Está ótimo! — respondi com a boca cheia. Ele riu, sentou-se ao meu lado e pegou um
punhado de tâmaras para si. — Como conseguiu passar despercebido?
— Tenho meus truques — disse ele com um repuxar de lábios, fazendo-me recordar
imediatamente da gruta em que me escondeu assim que entramos em Zyrk.
— Claro — murmurei e me calei.
Não queria tocar naquele assunto e destruir o clima de paz entre nós. O Richard de
agora era outro e em nada se parecia com aquele. Muita coisa havia passado desde então,
muitas situações-limite nos afastaram para nos fundir com força triplicada, indiscutíveis provas
de amor e de vida mudaram meu conceito sobre ele. Richard era um diamante bruto que
começava a ser lapidado. Um ser complexo, repleto de camadas distintas, e por vezes
antagônicas, não significava dizer que se tratava de alguém de índole ruim. Ele era apenas um
novato nas questões do coração, atordoado pelas impossíveis emoções que pairavam em sua
pele e espírito até então anestesiados. Um zirquiniano com boas intenções escondido atrás da
couraça da agressividade e do temperamento hostil, perdido em meio a tênue linha divisória
que separa o bem do mal. Desde o início e, ainda contra a sua vontade, seus atos duvidosos
camuflavam ações verdadeiramente generosas. Ele mesmo não havia se dado conta de seus
gestos de altruísmo e, embora eu ainda não tivesse recuperado completamente minha
confiança, sabia que o amava com todas as minhas forças. Não suportava imaginar minha vida
sem ele e não conseguia acreditar que poderia existir sentimento maior do que aquele que
carregava no peito. Senti um calafrio dolorido percorrer minha pele e chacoalhei o pensamento
nefasto que ganhava espaço em minha mente. Se nós realmente nos amávamos, então por
que não conseguimos ter um contato maior? Por que quase morri quando Richard me tocou
de um jeito mais íntimo?
Era essa a dúvida que pairava no ar. Se a lenda era verdadeira, qual de nós não amava
o outro o suficiente para quebrar a maldição? Eu? Ele? O que sentíamos um pelo outro nada
mais seria do que uma forte atração?
— Uma vez você disse que invejava os garotos da minha dimensão — quebrei o silêncio.
— Se nada tivesse acontecido, quero dizer, se você não estivesse condenado ao Vértice, se
as coisas entre nós fossem possíveis... — continuei encarando minhas próprias mãos na
tentativa de esconder o rubor em minhas bochechas. — Se você tivesse a chance de escolher,
Rick, você realmente preferiria viver na minha dimensão e longe de Zyrk? Abriria mão da sua
importante função de resgatador principal e futuro líder de...
— Sim — ele não me deixou concluir a frase, fulgurando-me com intensidade. Sua
reposta sem a mínima hesitação mexeu ainda mais com as minhas estruturas. Ele não tinha
dúvidas.
— Lembre-se de que lá você seria igual a todos os humanos, sem poderes, sem nada.
— Eu não seria igual aos outros, Nina — rebateu e tornou a me nocautear com sua
resposta inesperada. — Eu teria você e eles não.
Meus lábios se afastaram involuntariamente e um sorriso gigantesco irrompeu em minha
face. Ele sorriu de volta e o ar em meus pulmões foi sugado, não mais pela beleza estonteante
de seu rosto perfeito, mas pelos encantos escondidos dentro dele que a cada segundo
conseguiam me surpreender ainda mais.
Colocando o pão de lado, aproximei-me dele e acariciei seu rosto.
— Nina, não podemos...
— Eu sei. — E, sem demora ou hesitação, afundei meus lábios nos dele. Richard
enrijeceu e não retribuiu de início, atordoado, mas também não recusou meus carinhos. —
Shhh — sussurrei em meio ao beijo. — Eu acredito, Rick. Eu sinto que não é errado o que
existe entre nós, que um dia nós vamos conseguir.
Instantaneamente sua armadura caiu e, deixando o cuidado de lado, ele aceitou meu
beijo apaixonado com uma vontade arrasadora. Suas mãos grandes e ágeis fazendo caminhos
perfeitos pelo meu corpo, sua língua vasculhando desesperadamente cada canto da minha
boca. Havia urgência no ar. A aflição dele espelhava-se na minha. Ardor. Desejo. Chamas.
Não tínhamos tempo a perder.
Não sabíamos quanto tempo nos restava.
Não suportávamos a ideia de perder um único momento juntos.
— Precisamos ir! Teremos que correr se quisermos chegar a Marmon ainda hoje — com
a fisionomia perturbada, ele se afastou num rompante. A ruptura inesperada daquele contato
chegou a doer na minha alma, mas, determinada, assenti e sufoquei meus hormônios à força.
Ele tinha razão.
Era a hora de enfrentar meu futuro e compreender meu passado.
#
Caminhamos por horas a passos rápidos pelas planícies áridas de Zyrk em direção a
Marmon. Fazíamos caminhos alternativos, subindo e descendo colinas escarpadas para não
nos depararmos com zirquinianos pelo caminho. Richard era cuidadoso, mantendo-se atento
aos meus mínimos sinais de fome, sede ou cansaço. O ânimo de Richard parecia refletir-se
no do sol zirquiniano e ia piorando à medida que a tarde avançava.
— Não acredito! A noite está chegando mais cedo — bradou nervoso checando a
posição do sol a cada poucos minutos.
Após o assustador vulcão adormecido que constituía Thron, o vale estrategicamente
protegido por um lago como era o caso de Storm, e a fortaleza de pedras de Windston, eu
estava esperando algo grandioso, épico, mas, pelo que havia entendido das explicações de
Rick, Marmon nada mais era que um reino subterrâneo construído a partir dos escombros de
um gigantesco terremoto no passado.
— A catástrofe aconteceu há muito tempo e arruinou a montanha sobre a qual Marmon
ficava. Meu povo estava em uma acelerada espiral de maldade e cobiça e o terremoto foi
outro castigo imposto por Tyron para nos fazer acordar. Dizem que o cataclisma foi tão
violento que teve repercussão até mesmo na sua dimensão e se tornou o estopim para o
surgimento do Grande Conselho. A tragédia quase dizimou a população de Marmon. A queda
não ocorreu apenas no número de habitantes, mas, em especial, no exército de Marmon. O
reino arruinado teve que permanecer durante dezenas de anos sob a proteção do Grande
Conselho para que não fosse alvo de ataques oportunistas — Rick explicava de maneira
acelerada.
— Foi por causa disso que eles preferiram construir uma fortaleza subterrânea?
— Isso aconteceu muitos anos depois. Lembre-se de que meu povo não constrói quase
nada, Nina. Somos eminentemente destruidores — ele repuxou os lábios, impaciente. — Os
sobreviventes daqui se tornaram mercenários ou quase nada fizeram para o fortalecimento de
Marmon. Sem contar que o controle de natalidade do Grande Conselho dificultou sobremaneira
que eles tivessem um número de homens com qualidades razoáveis para montar um novo
exército.
— Então Marmon não tem exército?
— Tem. Seu novo exército foi estabelecido após a chegada de Von der Hess por aqui, há
aproximadamente duas décadas.
— Von der Hess?!
— Não sei detalhes da história, mas o que se conta é que o médium fez um acordo com
o rei de Marmon, Leônidas. Em troca do cargo de autoridade máxima abaixo do líder, Von der
Hess lhe ofereceria ajuda “mágica” para fortalecer seu reino e criar um exército. Assim
Marmon se reergueria, conseguiria se livrar dos comandos do Grande Conselho, voltaria a ter
poder próprio e deixaria de ser visto como o filho leproso, o reino amaldiçoado de Zyrk —
arqueou as grossas sobrancelhas. — E, para reconstruir Marmon, Von der Hess se aproveitou
das novas condições do terreno após o grande terremoto.
— As fendas devem ser muito grandes para caber tanta gente.
— Dizem que são gigantescas, como grandes cânions subterrâneos, mas não acredito
que exista tanta gente para povoá-las. O número de resgatadores por aqui é reduzido se
comparado aos demais reinos e os boatos contam que Von der Hess também não mantém um
grande contingente de sombras.
— Ele as mata?
— Acho que sim, Nina — respondeu secamente. — Dizem que ele elimina boa parte
delas. Talvez tenha sido a forma que encontrou para mantê-las sob controle — explicou. —
Enfim, o que ouvi dizer é que o mago prefere trabalhar com o ataque surpresa e com a ajuda
dos seus insetos amaldiçoados, os Escaravelhos de Hao.
— Ainda assim, Marmon não estaria protegida de um ataque de outro reino — concluí. —
Como conquistam territórios e se defendem se não têm um grande exército lhes protegendo?
— O povo de Marmon não tem interesse em conquistas e também pouco precisa se
proteger.
— Por quê? Não entendo...
Richard diminuiu o ritmo.
— Olhe ao redor, Nina. O que vê?
— Além desse deserto horroroso? — fiz conforme me pediu e vasculhei com atenção
todo o entorno. — Nada.
— Zyrk é quase toda assim: árida. Nenhum clã luta pelas minas ou campos neutros
porque são locais estéreis, mortos. Os poucos lugares que têm algo de bom se transformaram
nas sedes dos clãs. O mais rico deles é Storm. Seu grande lago é fonte de sobrevivência
nesses tempos de secas ininterruptas, além de ficar sobre uma grande jazida de ouro.
Windston, por sua vez, tem o melhor clima, o solo mais fértil de Zyrk, e é de onde vem boa
parte dos nossos escassos alimentos. Thron, apesar de parecer um lugar muito sombrio, tem
pequenas reservas de água e jazidas de minério de onde extraímos o ferro para a fabricação
das nossas armas. Teve também a sorte de ter sido governada por grandes líderes militares.
Nossos homens tiram prazer da luta e do álcool como recompensa, o que nos faz ainda mais
fortes — ele abriu os braços e girou o rosto em direção ao horizonte. — Torne a olhar ao seu
redor. Essa paisagem será a mesma que verá quando, em poucos minutos, cruzarmos aquela
colina e chegarmos a Marmon.
— Mas não há nada.
— Exatamente. E ninguém luta por nada — explicou de forma enfática, fazendo-me
acelerar ainda mais o passo. — Os clãs não têm interesse em ter baixa de soldados por um
lugar que não lhes dê nada em troca. Aqui não há água, ouro, minérios, clima ou solo que
possam atrair os demais líderes. Sem contar que Von der Hess conseguiu camuflar muito bem
as entradas para Marmon. Comenta-se que ele as modifica de tempos em tempos para que
nenhum exército as descubra e, caso isso viesse a ocorrer, ele faria uso dos insetos malditos.
— Sua voz saiu arrastada. — São criaturas de vida limitada, mas perfeitos para o caso.
— Os escaravelhos são capazes de matar?
— Não. Apenas deixam a pessoa em estado de alucinação enquanto leem seus
pensamentos. Mas, uma vez os soldados inimigos se contorcendo no chão, eliminá-los tornase
tarefa fácil, mesmo para um número reduzido de homens — bufou. — Bem-vinda a
Marmon, Nina — soltou com descaso ao cruzarmos a tal colina que havia mencionado, divisa
para o mais abandonado de todos os territórios de Zyrk.
— Meu Deus! O que Von der Hess viu aqui que pudesse ter lhe gerado tamanho
interesse?
— Poder, Nina. Os zirquinianos, assim como os humanos, adoram a sensação do poder
— abriu um sorriso frio. — Sem contar que os boatos também dizem que...
— Quê?
— Que o lugar é realmente amaldiçoado. Que existe energia ruim por aqui. Não se sabe
se ela já existia e Von der Hess apenas se aproveitou do fato ou se foi ele quem trouxe os
poderes malignos para cá.
— Então você nunca esteve em Marmon?
— Nunca entrei pra valer. Meu líder jamais teve interesse no lugar.
— Como encontraremos uma entrada então?
— Com você a tiracolo algo me diz que não será uma tarefa difícil. Eles virão até nós —
confessou.
— Eu direi como — uma voz grave e rascante ecoava na planície desértica e nos
atropelava sem permissão. Shakur!
— O que você está fazendo aqui? — Os olhos azuis de Richard dobraram de tamanho,
suas pupilas vibraram num misto de espanto e incompreensão e ele se jogou comigo para trás.
— Vim dar cobertura para vocês.
— Cobertura para entrarmos em Marmon? — Subitamente Richard perdeu a voz e seu
corpo enrijeceu. Ele fechou a cara e a sombra da fúria deformou rapidamente seus traços
perfeitos. — Afinal, qual é o seu interesse nela? Qual a jogada agora? Que outros segredos
você esconde além da bruxaria?
— Richard, eu sei que tudo parece sem sentido, mas não temos tempo para explicações.
— Havia aflição na voz constantemente autoritária do líder de Thron. — O elemento surpresa é
a nossa única chance. O perigo está à espreita. Eu sinto.
— “Perigo”?! Você “sente”? Por que não sentiu isso antes, hein? — Richard cuspia as
palavras com o maxilar trincado.
— Veja como fala comigo, rapaz. — Shakur fechou os punhos enluvados.
— Eu falo como quiser, droga! Eu sinto o cheiro de mentira de longe e, se não me falha a
memória, foi você quem adestrou o meu olfato.
— Richard, eu não...
— Chega! — Veias arroxeadas saltavam pelo pescoço de Richard e sobressaíam em
sua pele alva. Ele parecia mais do que transtornado. A admiração que nutria pelo líder era
tanta que a dor da decepção se fazia insuportável. — Que tipo de armadilha é essa?
— Rick, por favor, fique calmo — pediu Shakur ao presenciar Richard balançar a cabeça
de um lado para o outro, transtornado. — Você tem dúvidas e medo. Por causa dela... Está
descontrolado, mas eu não o culpo. Acredite. Eu entendo.
Shakur pousou o olhar em mim. Estremeci com aquele contato visual e fui tomada por um
sentimento diferente, obstrutivo e ao mesmo tempo protetor, como se uma mão envolvesse
meu coração. Só não sabia se aquela mão desejava esmagá-lo ou embalá-lo e, apesar de
entender que podia estar sendo alvo de algum tipo de magia, uma ideia inesperada se
expandia e começou a latejar em minha mente. Uma voz dentro de mim afirmava que havia
algo importante atrás dos olhos azuis daquele líder sombrio. Havia ódio, frustração, desespero
e mágoa neles, mas o que meus sentidos insistiam em sinalizar era a presença de um misto de
preocupação e esperança entremeadas a um sentimento que eu não conseguia decifrar, mas
que meu âmago afirmava que eu precisava descobrir.
— Você não entende nada! — Richard rugiu levando as mãos à cabeça. Ele parecia
querer arrancar à força algum pensamento que o massacrava. Então, de rompante, segurou
meu braço e determinou acelerado: — Eu não estou gostando nada disso. Vamos embora
daqui, Nina.
— Vocês não têm onde se refugiar. Vai anoitecer muito antes de chegarem às minas!
Toda Zyrk já sabe da sua fuga e do prêmio que o Grande Conselho colocou na sua cabeça,
Richard! — Shakur advertiu e pude detectar apreensão exalando de sua voz grave. — E na
dela também!
— Não! — Richard ainda lutava.
— Temos que entrar em Marmon. É nossa única saída — insistia Shakur.
— Rick, eu vou ficar — determinei decidida, desvencilhando-me da pegada dele e
colocando um fim àquela discussão interminável. Richard travou, visivelmente perdido,
enquanto os traços da hemiface visível do líder de negro se suavizaram. — Se minha mãe está
viva em algum lugar por aqui, eu não posso simplesmente fugir e deixá-la para trás. Foi para
isso que eu vim. Para salvá-la.
Richard fechou os olhos e, depois de estudar Shakur por um momento, assentiu sem
vontade.
— Ok — soltei aliviada. — Como faremos isso, Shakur?
— As entradas do lugar são camufladas por bruxaria, mas existe uma falha no feitiço de
Von der Hess. Há um determinado momento, quando o sol está se pondo, em que a angulação
dos seus raios consegue evidenciar as margens das fendas no solo. São as entradas.
— Quando você soube disso? — questionou Rick com as sobrancelhas mega-arqueadas.
— Eu sempre soube, rapaz — Shakur abriu um sorriso mordaz.
— Sempre soube? Que ótimo! — Richard franziu o cenho e, bufando, afastou-se de nós
enquanto chutava pequenas pedras soltas pelo chão. Devia estar arrumando uma maneira de
abrandar seu gênio forte.
— O pôr do sol começou há algum tempo. E se esse momento já passou? — perguntei.
— Nina! Cuidado! São os... Argh! — O berro de Richard parecia um aviso distante.
— Rick?! Ai! — Senti uma fisgada lancinante no ouvido. Minha orelha direita ardia. O
mundo zunia.
— Nina! — escutei o bramido de Shakur. Novas rajadas de zumbidos passaram ferozes
por cima da minha cabeça, como se um enxame de abelhas fosse lançado violentamente em
minha direção. O líder de negro arregalou os enormes olhos azuis e saltou sobre mim, fazendo
nossos corpos se espatifarem pelo terreno áspero. O escudo com a insígnia de Thron foi
arrancado com violência de sua mão, levando a luva negra consigo. Shakur desequilibrou e
caiu com o rosto no chão. Parte da máscara negra se quebrou e ele urrou alto num berro que
mais parecia de raiva do que de dor. — Você está bem? — indagou ofegante ainda caído
sobre mim. A pressão aumentava em meus ouvidos. Os sons vinham estranhos, abafados,
como se eu estivesse fazendo mergulho no fundo de uma piscina. Meu raciocínio começou a
processar as informações ao redor com dificuldade, captando os berros distantes de Richard
e o desespero na hemiface do líder de negro de forma lenta e retardada.
Mas minha visão estava intacta.
E eu vi.
Nas outras vezes em que nos deparamos, a penumbra ou a distância se encarregaram
de ocultar pormenores com mais perfeição que a amedrontadora máscara e roupas negras
que vestia. Mas agora, munida da claridade oriunda dos raios solares, da proximidade e de
parte da máscara quebrada, consegui vislumbrar detalhes até então camuflados em seu rosto,
como o maxilar deformado, a pele arroxeada, fina e repuxada e, principalmente, o buraco no
lugar onde devia estar seu nariz, causado pela ausência da cartilagem e que deixava suas
narinas assombrosamente expostas. Seria o momento exato para repulsa ou medo, mas meu
coração esquentou dentro do peito quando se deparou com a verdade estampada em seus
expressivos olhos azuis. Havia o brilho de uma emoção neles que não havia identificado antes,
mas que agora era mais que cristalina: Shakur se importava comigo!
E, de alguma forma, eu sentia que meu corpo retribuía aquele sentimento inesperado de
forma pungente e decidida. Você se importa com ele?! Você gosta dele?! Mas que droga!
Que insanidade é essa agora, Nina?, berrava o resquício de razão a um cérebro letárgico.
Tentei me afastar, nervosa e agitada, diante da estranha avalanche de sentimentos que
ameaçava me paralisar.
— Rick! — Meu berro ecoou no nada. A ausência de resposta comprovava que a
situação era grave.
Congelei sob a nova descarga de adrenalina que percorria minhas veias. Virei o rosto,
desvencilhando-me com dificuldade do peso do corpo de Shakur. E então entrei em choque
com o que meus olhos presenciavam: Richard se contorcia violentamente no chão, as órbitas
brancas em meio a uma crise convulsiva. Tentei me afastar do líder de negro, mas, de olhos
fechados, ele me envolvia com força, murmurando furiosamente palavras sem sentido. Céus!
Shakur havia nos submetido a algum feitiço? O que estava acontecendo? Sons de homens
berrando e se aproximando rapidamente. O zunido aumentava e minha mente girava num
furacão de atordoamento.
— Me solta! — bradei apavorada. Zonza, eu não sabia o que estava acontecendo, mas
precisava me livrar de Shakur e ajudar Richard. Então lancei minhas mãos em direção ao líder
de Thron, que se defendeu do meu ataque, segurando meu pulso com a mão desenluvada.
— Nina, pare! — esbravejou com a voz rouca e congelei.
Não por medo, muito menos pela sua autoridade. Havia uma intimidade que chegava a
doer em seu tom de voz. Meu coração começou a bombardear o peito. Fiz força para me
soltar, mas, mesmo deformados pelo fogo, seus dedos eram fortes e mantinham meu pulso
aprisionado. Desesperada em me livrar de sua pegada, levei os dentes à área exposta, no
local onde a cicatriz da queimadura havia deixado sua pele fina e deformada e recebi o golpe
fatal. Paralisei no meio do caminho. Meus olhos arderam e minha memória entrou em
combustão ao avistar a tatuagem no único ponto ileso na pele da sua mão.
O botão de rosa.
A rosa do meu sonho.
Único registro de uma infância feliz.
Não podia ser! Nada disso fazia sentido. Oh, Deus! Eu estava enlouquecendo!
— Pequenina, por favor, não chore — implorou ele quando lágrimas romperam as
barreiras da minha alma e comecei a chorar copiosamente.
“Pequenina”?! Então ele era...?
De repente, o corpo de Shakur se enrijeceu, suas pupilas assumiram a posição vertical e
ele me soltou.
— Concentre-se na cor branca — ordenou nervoso, assustando-me ao começar a
balançar a cabeça de maneira descontrolada. No instante seguinte, contorcia-se no chão
exatamente da mesma forma como havia acontecido com Richard. E, da mesma forma que
seu pupilo, Shakur desacordou próximo aos meus pés.
O mundo girava em um tornado de imagens distorcidas e perguntas sem respostas. O
zumbido ensurdecedor tomou conta dos meus ouvidos e mente.
— A híbrida é minha. — A voz afeminada de Von der Hess me apunhalava pelas costas e
me fez desmoronar de vez. — Acabou, Ismael!
Ismael?!
Shakur era... Ismael?!
Meu Deus! Ismael era o homem que eu chamava de pai nos meus sonhos!

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