terça-feira, 15 de maio de 2018

CAPÍTULO 17 - Não Fuja

CAPÍTULO 17
— Tome mais um pouco. Só existe essa fonte de água pela região. A subida será longa e
íngreme — explicou Richard após várias horas de caminhada. Era a primeira vez que
parávamos para descansar. Exausta, sentei-me sobre um amontoado de rochas na base de
uma colina. A paisagem continuava árida e inóspita; o deserto, cinza e ainda mais desolador.
— Não aguento mais beber água! — reclamei. — Minha barriga vai explodir!
Ele apertou os lábios.
— Sério Rick! Estou tão inchada que é mais fácil você me colocar para rolar, se nós
tivermos de correr, ok?
— Boa ideia — respondeu ele com a expressão melhorada. — Faço isso assim que
chegarmos ao topo da colina.
— Estou faminta — disse após ouvir um ruído estanho em meu estômago e ele ameaçou
um sorriso.
Finalmente uma trégua! Sabia que ele estava ali contra a sua vontade, mas não
aguentava mais a sua cara amarrada.
— Eu também — confessou e levou as mãos à cintura. — Por sorte temos água, mas
não há nada o que colher ou caçar nessa região. Não podia correr o risco de colocá-la em
perigo se fizesse outro caminho.
— Nós estamos nos campos neutros?
— Na parte mais neutra dos campos neutros, se é que me entende. Logo depois desta
colina há um lugar onde conseguirei abrigo para esta noite.
— Como assim? Não estamos perto de Marmon?
— Teremos muita sorte se conseguirmos alcançar Marmon ainda amanhã — assinalou.
— Lembre-se de que devo mantê-la protegida dos meus, mas também estou com a cabeça a
prêmio. Não posso dar as caras por aí — fez uma careta, visivelmente inconformado com a
situação.
— Como conseguiremos comida então? — perguntei e chequei nosso estado deplorável.
Seria praticamente impossível passarmos despercebidos em qualquer lugar daquela ou de
qualquer outra dimensão. Se não fosse pela capa negra de Shakur, eu estaria em uma
situação bem ruim. Meu vestido maltrapilho, sujo de sangue e rasgado em diversos pontos,
estava nojento e indecente. Descalço, descabelado e sem camisa, a aparência de Richard era
ainda pior. Sua calça cinza e completamente manchada de sangue me fazia recordar o que
havíamos acabado de passar e me dava calafrios.
— Darei um jeito. Seria tranquilo se estivesse sozinho, mas não posso deixá-la só nem
por um minuto. É perigoso demais.
— Você acha que o Grande Conselho vai dar o alarme sobre a minha fuga?
— Não sei mais no que pensar — ele deu de ombros. — Acho que os magos não terão
coragem de declarar para toda Zyrk que também falham e que a deixaram escapar.
— Mas eu sou a híbrida — relembrei-o.
— Ainda assim. Sua fuga evidenciaria a vulnerabilidade deles e acabaria dando muito
poder a uma única pessoa. Você poderá ser idolatrada, temida ou odiada. Não sei como a
população responderia a uma notícia desse porte. Não enxerga o que aconteceu quando
resolveu ficar em Zyrk, Nina? — A dureza de suas palavras me pegou desprevenida. — Você
se colocou em perigo e se tornou a maior de todas as armas. Não vai demorar e tudo irá pelos
ares. Zyrk vai explodir e não sei o que restará dela, de nós.
— Rick, eu não queria nada disso, eu juro... Eu só queria uma vida normal, minha mãe de
volta, e... — Afundei o rosto em minhas mãos tingidas de culpa e quase engasguei com o
pensamento que veio a seguir. Liberei apenas uma parte dele. — Ter a chance de voltar a
sonhar.
De acreditar que posso amar e ser amada, foi o que não falei.
— Os sonhos nem sempre se realizam, Tesouro. Acostume-se a isso — sua voz ficou
repentinamente triste. Encolhi no lugar. — Você vai descobrir que às vezes é perigoso demais
dar crédito a eles, que podem ser pesadelos disfarçados.
Seria eu o grande pesadelo?
— Abrir Chawmin... — balbuciei.
— Se isso acontecer, a sua e a minha dimensão serão arruinadas. Malazar vai lutar. Ele
almeja esse confronto há milênios e não deixará pedra sobre pedra em seu caminho — ele
olhava para o nada, o olhar perdido em um ponto distante.
— Tem que haver uma saída! Eu não teria nascido se não fosse por um propósito!
— Existem todos os tipos de propósitos no mundo, Nina. Bons e maus. — Sua resposta
saiu áspera, mas ele não me enfrentou. Ao contrário, sua expressão taciturna fez todos os
músculos do meu corpo se enrijecerem. — Digamos que sua mãe esteja realmente viva. O que
fará depois que a encontrar?
— Eu vou arrumar um meio, eu...
— Certo — ele me interrompeu. — Com todos os portais fortemente protegidos, o que
você fará caso consiga? — ele refez a pergunta ao notar meu estado catatônico: — Digamos
que a gente saia vivo de Marmon, o que certamente não vai acontecer. Para onde você vai
levá-la? Windston?
— É uma possibilidade — retruquei. — Tenho certeza de que meu avô lhe daria
cobertura.
— O poderio bélico de Windston é muito pequeno. Wangor não terá como suportar um
ataque maior ou protegê-las da intervenção do Grande Conselho.
— Mas Thron é forte e tem o exército mais preparado de Zyrk. E Shakur está do nosso
lado! Você viu!
— Eu não sei por que ele a ajudou a fugir para cá, Nina! Até agora não entendi o que
Shakur planeja por detrás dessa atitude, mas posso lhe garantir que ele nunca jogou para
perder. Ele é o maior estrategista que já vi na vida e todas as suas ações são muito bem
calculadas.
— Você quer dizer que ele vai tirar vantagem da minha fuga?
— É a única justificativa que vem à minha mente. Por que diabos ele me pediria para
ajudá-la a vir para cá e não para Thron? Por que não se salvou quando pôde? — Richard
esfregava as têmporas com força. — Nada disso faria o menor sentido se ele também não
tivesse algo a ganhar.
— Chega, Rick! Não quero mais pensar nisso! — bradei nervosa, levantei e, sem querer
dar o braço a torcer, comecei a subir a colina a passos acelerados. Minha mente fervia. Ele a
havia arremessado em um caldeirão de perguntas e suposições. — Você não vai conseguir me
fazer desistir.
— Eu sabia que não — murmurou, seguindo-me de perto.
— Malditas sandálias de couro! — gemi. — Aiii!
— Cuidado! — alertou, segurando-me com incrível rapidez quando pisei em uma pedra
solta e me desequilibrei. Senti seus olhos cravarem nos meus e o calor do seu corpo
esquentar a minha pele. Perdi a reação. Aquele contato tão próximo e repentino fez todo meu
sistema racional entrar em pane e desligar. — Essas sandálias não ajudam mesmo — disse
ele, presenteando-me com um semblante amistoso e sem fazer menção de me soltar.
— Sinto falta dos meus tênis — abri um sorriso desanimado.
— Sinto falta de muitas coisas da sua dimensão, Nina. — Havia uma pitada de tristeza
em sua inesperada confissão.
— Da sua moto?
— Dela com certeza — assentiu com um suspiro profundo. — Mas também adorava a
liberdade da noite humana. De poder sair sem medo, observar o céu lotado de pontos
brilhantes. Já deve ter percebido que não existem estrelas no céu de Zyrk.
Já havia notado isso, mas o que realmente observava agora era o brilho hipnotizante
que emanava de seus olhos enquanto caminhava em direção ao topo da colina me
carregando em seus braços. Ele era a minha estrela.
— Estou bem. Pode me colocar no chão.
Incrivelmente forte, meu peso não causava qualquer desconforto a Richard, mas a subida
era íngreme e seu equilíbrio ficava prejudicado vez ou outra.
— É uma ordem? — perguntou, olhando-me pelo canto dos olhos. Vi quando reprimiu um
sorrisinho.
— Não — sorri em resposta.
— Então não vou acatar.
— Está dispensado dessa. — Tentei fazer cara de superioridade, mas a verdade é que
vibrava por dentro. Era bom demais vê-lo descontraído novamente, ter um momento de paz
entre nós.
— Vou dar um descanso aos seus pés, chefe. Acho que as tiras da sandália fizeram um
estrago — replicou ele com as sobrancelhas arqueadas. Olhei para as bolhas nos meus dedos
e suspirei, realmente feliz por vê-lo cuidar de mim. Por mais que esperneasse, ele ainda se
importava comigo. Richard era bom, só não sabia lidar com os sentimentos que eu provocava
nele. E nesse ponto ele seria sempre selvagem, o território desconhecido. Deveria aprender a
me acostumar com isso também.
Chegamos ao topo do aclive e, lá de cima, vi o lugar a que Richard se referia. Era uma
espécie de caverna esculpida na base oposta da montanha. Para minha felicidade, o percurso
de descida parecia tranquilo.
— Vai esfriar bastante durante a madrugada e não espere um local agradável — alertou
ele ao me pegar observando nosso destino com curiosidade. — É apenas um ponto de apoio
para passar a noite.
— Está ótimo! — soltei ao visualizar o sol se pondo no oeste. Em breve as bestas de
Zyrk estariam soltas. — Como o descobriu?
— Era um dos requisitos de Shakur para me tornar resgatador principal de Thron —
repuxou os lábios. — Ele sempre disse que um bom estrategista é aquele que conhece de
olhos fechados não apenas o seu território, mas também as terras do seu inimigo. Ele me fez
desbravar toda Zyrk e lhe contar em detalhes o que vi antes de me permitir assumir o cargo.
— Uau! Você passou por uma prova?
— Uma não, Nina. Várias! Por isso Thron sempre foi tão superior aos demais clãs.
Shakur nunca descuidou do desempenho físico e mental dos seus homens. E era ainda mais
rigoroso comigo — arfou. — Vamos, o sol está se pondo rapidamente.
#
— Sinto muito, Tesouro. Mas não temos mais tempo e não encontrei nada pela região.
Só comeremos amanhã — disse desanimado, enquanto ocultava a entrada da caverna com
pedras e troncos secos de árvores.
— Estou bem — menti, segurando o tremor em minhas mandíbulas. Como Richard havia
alertado, a temperatura caíra absurdamente. Não sabia o que era pior: a fome ou o frio. — NNão
entendo. Por que sinto mais frio aqui do que na Floresta Fria?
— Porque lá era uma área de magia e parece que seu corpo é relativamente imune aos
feitiços de Zyrk.
— Ah! — encolhi ainda mais.
— Não devia, mas... Você não pode ficar assim. — E, sem perder tempo, ele fez uma
fogueira. Aos poucos, o calor foi se espalhando pelo ambiente e pelos meus ossos. — Está
melhor? — perguntou ao ver o meu rosto recuperar a cor. — Que tal dormir um pouco? Nossa
jornada será intensa amanhã.
— E você?
— Tenho mais carga na bateria — piscou.
Claro! Ele era um zirquiniano.
— Durma tranquila. Vigiarei o lugar.
Assenti e, sem contestar, deixei meu corpo e mente escorregarem, derrubados pelas
toneladas de sono e de exaustão em minhas pálpebras.
#
Tremores e xingamentos baixos. Acordei com eles. Muitos e todos os tipos deles. Para
meu espanto, não era apenas o meu corpo que chacoalhava de frio, mas o chão trepidava com
fúria. Escuridão. A fogueira estava apagada. Ainda assim não sabia se estava dentro de um
pesadelo.
Ou um sonho.
Apenas o manto de Shakur cobria nossos corpos colados. Richard tentava me aquecer,
esfregando meus braços com vontade e sem tirar os olhos da frágil camuflagem colocada na
abertura da gruta, como um cão de caça pronto para o ataque.
Um uivo estridente do lado de fora.
— R-Rick! A-Ah, não... U-Uma b-besta? — empertiguei-me no lugar e senti que não havia
saliva em minha boca. Minha pele estava completamente congelada e meus dedos enrijecidos
pelo frio.
— Shhhhh! A maldita nos sentiu. — Suas pupilas trepidantes confirmavam a situação
ruim. — Tive de apagar a fogueira e você começou a congelar.
— E-Estou bem... — sussurrei, e vi que ter acordado e me deparado com ele tão
próximo a mim, as mãos enormes apertando minha pele, fez toda a diferença do mundo.
Hormônios são como álcool em fogo. Comecei a esquentar.
Camuflado na escuridão da noite de Zyrk, o animal ficava em silêncio por longos minutos,
à espreita de algum movimento da nossa parte. Todas as vezes em que Rick acreditava que o
monstro havia perdido nosso rastro e ameaçava se levantar para fazer uma nova fogueira,
éramos surpreendidos por novos ganidos de advertência e ele retornava ao lugar de origem,
ou seja, ao meu lado. Sorri intimamente. Eu estava começando a gostar daquela besta.
— Estou melhor. É sério — reafirmei algum tempo depois, encarando o rosto dele
perigosamente próximo ao meu. Minha pulsação deu um salto e corei furiosamente quando
percebi que Richard passeava os olhos vidrados por todo o meu corpo. O calor que subia por
minhas pernas e bochechas acendeu a fogueira dentro de mim e agora era eu quem pegava
fogo por dentro. Quando dei por mim, meus dedos se entrelaçavam em sua nuca e, sem
conseguir refrear o magnetismo que me impulsionava para ainda mais próximo dele, aproximeime
lenta e cuidadosamente. Vi quando seus lábios se afastaram e sua respiração perdeu o
ritmo, deixando seu peitoral subir e descer de maneira acelerada. Richard permanecia mudo.
Medo e desejo intercalando-se na expressão de seu rosto irretocável.
— Por que insiste em fazer isso conosco? — Ele paralisou minhas mãos num rompante
e soltou um suspiro encharcado de dor.
— Desculpe. Eu não quis, eu apenas... — perdi a voz e o rumo dos pensamentos ao
visualizar sua expressão derrotada.
— Você não tem culpa. Eu lhe dei falsas expectativas. Acreditei que, algum dia... seria
possível... nós dois... — murmurava hesitante. — Mas nada aconteceu conforme sonhei —
soltou um riso amargurado enquanto encarava as próprias mãos. — Acabou para mim, mas
você ainda pode fazer a diferença para Zyrk. É por isso que estou aqui. Para tentar me redimir
das incontáveis burradas que fiz pelo caminho, Tesouro.
— Rick, não diga isso, eu...
— Ficar tão... perigosamente perto de você é arriscado e irresponsável demais — ele
me interrompeu, fulgurando-me com intensidade e urgência, o azul em seus olhos agora
completamente negro. — Você não tem ideia da total ausência de controle que tenho sobre
mim quando você está por perto e do risco que eu a coloco por isso. Ao mesmo tempo em que
preciso de você viva para me sentir vivo, da necessidade insana em protegê-la de qualquer
perigo com a minha própria vida, eu sei que eu sou o maior perigo de todos. Você desperta e
atiça a fera que tento domar a todo custo dentro de mim, a besta que é capaz de sugar a sua
energia até a última gota num piscar de olhos, Nina. Então — franziu a testa com força, como
se travasse uma luta interna de proporções gigantescas —, não provoque meus sentidos desta
maneira. Não se coloque em uma situação... mortal — acrescentou sombrio. — Quando quase
a matei... a dor que senti... — travou por um momento. — Nunca mais vou arriscar a sua vida.
Nunca mais — destacou cada palavra com determinação. — Entendido?
Negativo!, era o que eu queria dizer, argumentar que precisávamos apenas de mais
tempo para encontrarmos uma saída para a nossa situação insolúvel, mas respirei fundo e
apenas assenti. De fato, eu não podia correr riscos com a vida da minha mãe em jogo. A
partida acabaria em breve.
— Portanto, é realmente sensato e necessário que fique quietinha. Já está dificílimo
refrear as sensações que você gera em mim — assinalou com a voz rouca e um brilho
perturbador nos olhos. — Consigo captar sua energia, e parece estar equilibrada no momento,
mas, depois daquele incidente... Não sei o quanto posso lhe tocar sem lhe fazer mal.
— Você não vai me causar nenhum mal — afirmei, mas a sombra da tristeza que cobria
sua face de guerreiro me fez encolher e, antes que ele pudesse me afastar, aninhei-me em
seu peitoral. — Mas estou começando a perder a fé. Por favor, só me abrace, Rick — pedi,
removendo a máscara de durona e deixando finalmente transparecer as camadas de dúvida e
desespero que carregava sobre as minhas costas exauridas. Não havia me permitido fraquejar
desde que fui capturada pelo Grande Conselho e tudo que meu espírito atormentado precisava
naquele instante era dele. Apenas da sua presença ali do meu lado.
Richard soltou um gemido baixo e envolveu meu corpo em um abraço terno. Quando seus
dedos hesitantes se entrelaçaram aos meus e nossas mãos se tocaram — quando realmente
nossas mãos se encaixaram —, o mundo entrou nos eixos, as engrenagens se ajustaram, o
universo fez sentido, tudo parecia certo demais. Não havia mais dúvidas. A abrasadora energia
no ar: palpável, doce, quente demais, como um rio de mel fervente. Não existia um depois.
Havia apenas o presente, Richard e a certeza de que, independentemente do que viesse a
acontecer, qualquer que fosse o nosso futuro, naquele instante eu o amava mais do que tudo
na vida.
— Ah, Tesouro! — ele suspirou, abraçando-me com tanto cuidado como se eu fosse
quebrar com seu simples toque, um cristal delicado demais.
— Não sei mais no que acreditar, Rick.
— Acredite na sua força, minha linda — suspirou. — Eu acredito nela como nunca antes.
Procurei seus olhos, surpresa com aquela inesperada confissão.
— Acredita?
— Suas mãos... — ele arqueou as sobrancelhas, pensativo. — De onde surgiu aquilo,
Nina? Como conseguiu desacordar Ferfelin só com o seu contato?
— Não sei — devolvi um sorriso apático. — Isso só acontece quando me sinto realmente
ameaçada.
— Fico feliz que não se sente ameaçada agora. — Ele olhou para cima, o olhar distante.
— Não consegui — confessou de repente. — Quando me pediu para cortá-las...
— Ainda bem que não — murmurei, tentando mudar de assunto. Imaginar que, se
Richard tivesse me obedecido, eu estaria sem as mãos naquele exato momento fez meu
estômago embrulhar.
— Você foi muito corajosa, Tesouro — ele abaixou a cabeça e agora me encarava de um
jeito diferente. Havia algo além de desejo ou emoção em seu olhar vidrado. Estremeci de
satisfação ao reconhecer o ar que exalava de seus lábios entreabertos: admiração! — Nunca
vi homem algum dar uma ordem daquela magnitude. Você realmente me impressionou e...
— E...?
— E fez o que nenhum guerreiro foi capaz até hoje — sua voz falhava: — Você realmente
me assustou, Nina. Sua força deixou o meu espírito ainda mais desorientado.
Sem que eu pudesse esperar, ele deslizou os quatro dedos de uma das mãos para a
minha nuca enquanto o polegar roçava delicadamente pelo contorno dos meus lábios. Fez o
mesmo com a outra mão, aprisionando ainda mais, como se fosse possível, o que restara de
meu corpo e espírito.
— Lá no portal, eu...
Sua testa ficou tomada de vincos e, tragando o ar com força, tornou a me olhar com
profundidade. Eu sabia que era dificílimo pensar com clareza com Richard me encarando
daquele jeito, mas não desviei o rosto. Necessitava de suas explicações para continuar minha
jornada. Depois de reencontrar Stela, era tudo que mais queria na vida.
— Eu tinha certeza de que estava tudo acabado entre nós. Pensei que você nunca mais
falaria comigo, que me odiaria para sempre — ele abaixou a cabeça. — Eu já era um homem
condenado ao Vértice e foi fácil desistir de mim, de viver. Simplesmente não queria mais
continuar. Não até... — ele tornou a levantar a cabeça e mirou os meus lábios. Comecei a
tremer e meus batimentos cardíacos aceleraram a níveis perigosos. — Até você aparecer
dentro daquela bolha e eu escutar de sua própria boca que me perdoava.
— Pensei que estivesse desacordado — brinquei.
— E estava até aquele instante — ele piscou de volta. — As pedras-bloqueio... — soltou
repentinamente taciturno. — Eu devia ter lhe contado. Não havia como ficarmos juntos de
qualquer forma e...
Enrijeci no lugar. Por mais que desejasse esquecer, aquele assunto ainda me magoava.
—Você sempre soube que não seria uma despedida provisória, Rick.
— Era a única forma de mantê-la livre dos meus. Mesmo com toda força diplomática do
seu avô, em questão de tempo você seria perseguida na sua dimensão também.
— Não o culpo por isso. A mágoa que tenho é por você ter me enganado.
— E-Eu só... — engasgou. — Eu só quis te proteger. Sempre foi essa a intenção.
— Eu sei, Rick. Acho que já o conheço mais do que você imagina — lancei-lhe um sorriso
cúmplice. — Você não esbravejaria nem brigaria comigo ou com Shakur se realmente não
acreditasse se tratar de uma missão suicida essa viagem para Marmon.
— Adoro missões suicidas — ele tentou descontrair o clima e arrumou uma mecha dos
meus cabelos.
— Não quando a minha vida está envolvida — acrescentei e voltei ao assunto que
martelava incessantemente em minha cabeça. — Richard, eu preciso saber: por que o Grande
Conselho disse que eu era o produto de uma concepção maligna? Por que você chamou o
relacionamento dos meus pais de aberração? Depois de tudo que passei... Eu tenho o direito
de saber.
Ele abaixou os olhos e sua respiração deu um salto. Com seus braços me envolvendo, foi
facílimo perceber sua musculatura enrijecer debaixo da minha pele.
— Por favor, Rick? — implorei e, com a ponta dos dedos em seu queixo, levantei seu
rosto em minha direção.
— Eu não devia ter dito nada — praguejou. — Eu achei que lhe contando isso talvez a
convencesse a não mais ficar em Zyrk, que estaria protegendo sua vida, mas foi uma
estupidez — contraiu os olhos. — Eu não podia ter me esquecido de que você é uma humana.
Leila havia me dito que os humanos são curiosos por natureza e ávidos por explicações.
— Eu sou uma híbrida, Rick. Ainda assim, preciso dessas explicações para não desistir
de tudo. Você vai me contar, não vai? — insisti e ele assentiu com a face perturbada. Não
gostei.
— Tudo o que sei foi-me dito em segredo e não poderei confessar a fonte. Também não
sei se é informação segura — alertou. — Soube que o relacionamento entre seu pai e sua mãe
foi artificial.
— “Artificial”?! Como assim? — questionei com a voz vacilante, o raciocínio me
escapando. Eu podia esperar tudo, menos aquela resposta.
— Dizem que seu pai vendeu... — Richard abaixou a cabeça, estranhamente temeroso.
— O que meu pai vendeu? — Meu coração batia muito rápido agora.
— A alma, Nina — confessou e suas pupilas momentaneamente verticais me fizeram
congelar. Richard foi direto ao X da questão: — Dizem que ele vendeu a própria alma a
Malazar para poder ter um contato físico mais íntimo com a sua mãe.
— Malazar?! O demônio? — indaguei atordoada, forçando-me a recordar as explicações
de Leila. Malazar era um dos dois filhos da maior divindade dos zirquinianos, e foi banido e
condenado a viver para sempre no inferno, ou Vértice. Tyron, seu pai, aplicou a terrível
sentença após descobrir as suas trapaças e malfeitos, mas, principalmente, pelo fato de
Malazar ter matado o próprio irmão, apunhalando-o pelas costas.
Cristo Deus! Foi a esse ser inescrupuloso que meu pai havia vendido sua alma?
— Então... Foi por isso que conseguiram me gerar. — Aquela constatação era como
ácido e corroía minhas crenças e linha do raciocínio.
— Mas pode ser mentira, Nina. Meu povo é mestre em semear discórdia.
— Meu pai não amava minha mãe... — As palavras despencaram da minha boca.
— C-claro que amava! — ele titubeou e sua resposta sem convicção fez meu mundo
girar.
— Se ele a amasse não precisaria vender a alma para possuí-la — balbuciei derrotada.
— Não! Quero dizer... E-Eu não sei, Tesouro.
Fechei os olhos e segurei a breve tontura que abalou perigosamente os pilares das
minhas poucas verdades.
— Nina?! — Richard segurou meus braços, preocupado.
— Eu estou bem — menti e, reabrindo os olhos, liberei as palavras que
irremediavelmente me rasgariam por dentro. Minha mente sangrava. Meu coração sangrava.
Minha alma sangrava. — Nunca houve amor entre eles.
— Não diga isso! — Richard arfava agora. — Seu nascimento permanece uma charada a
ser desvendada, mas não significa que eles não nutriam bons sentimentos um pelo outro.
Uma charada...
Dúvidas arrasadoras avançavam sobre meu espírito atormentado. E se eu nunca fui o
fruto de um amor impossível entre duas espécies distintas, mas sim o produto de um desejo
doentio e avassalador? Seria eu o vírus da morte, a semente de uma negociação
amaldiçoada? Teria meu pai realmente amado minha mãe em algum momento ou apenas
desejava usufruir seu corpo? Stela foi enganada ou havia compactuado do terrível acordo?
Teria ela sido capaz de fazer uma loucura desse nível? Seria por isso que nunca falou sobre
ele ou sobre seu passado? Por vergonha?
— A história do suicídio do meu pai é outra grande mentira — afirmei, juntando as peças
do quebra-cabeça.
— É o que parece — Richard assentiu em baixo tom. — Malazar cobrou seu preço.
— Minha mãe sabia? — questionei apática.
— Sinto muito, mas não sei de mais nada. — A respiração acelerada de Richard
confirmava seu estado de tensão. Estava visivelmente arrependido por ter me contado a
verdade.
Pisquei algumas vezes e, sem reação, abracei os joelhos e me encolhi. Sentia-me vazia,
uma semente sem vida e completamente seca por dentro.
— Eu nunca devia ter nascido.
— Jamais diga isso, Nina. Jamais. — Richard segurou meus ombros com vontade e, a
seguir, abraçou meu corpo sem vida. — Você é o nosso milagre.
Isso eu tenho certeza de que não sou, foi o que eu quis dizer, mas não suportaria
continuar aquela conversa. Meu mundo fora novamente bombardeado e eu precisava, ainda
que cambaleante, reerguer-me, encontrar um caminho entre os destroços e ir adiante.
— Faça-me dormir, Rick. Por favor — pedi e me aninhei em seu peitoral, desesperada
em me livrar não apenas dos meus tormentos, mas de mim mesma, ainda que por apenas
poucas horas.
— Eu vou, Tesouro. Eu vou — ele me acalmava, apertando-me ainda mais contra si. Uma
nuvem nebulosa preencheu a penumbra e avançou pelos cantos da minha mente, deixando-me
em um agradável estado de torpor. Um sono pesado e em forma de noite escura abrandava
os danos nas chagas da minha esperança. Um bálsamo entorpecente. Uma voz distante, um
sonho em forma de sussurro, embrenhou-se em meus ouvidos enquanto embalava meu
espírito:
Eu sinto muito, Tesouro. Se pudesse ser diferente...
Perdoe-me por...

Nenhum comentário:

Postar um comentário