CAPÍTULO 16
— Richard, acorda!
Sem sucesso, sacudia seu corpo inerte há mais de uma hora. Sua respiração constante
me tranquilizava, confidenciando-me que ele estava vivo. Ainda assim, sentia-me aflita por ele
não responder a nenhum dos meus estímulos e começava a ficar preocupada, insegura de que
ele tivesse sofrido algum dano maior ou batido fortemente com a cabeça quando nossos
corpos foram arremessados nesse lugar abandonado. Com dificuldade arrastei sua montoeira
de músculos até o pequenino riacho que margeava o terreno repleto de crateras. Lavei os
ferimentos em seu rosto, boca e mãos e removi todo vestígio de sangue possível. O corte em
seu lábio inferior, outra marca que deixara em seu corpo para me salvar, era profundo e ainda
drenava. Sem que eu desse por mim, deixei as pontas dos meus dedos passearem
lentamente pela confusão dos seus cabelos negros e fazerem caminhos tentadores, passando
pelo seu queixo, pescoço e descendo às cicatrizes do seu peitoral. A cadência calma de sua
respiração me fez entrar em uma espécie de transe e, sem perceber, eu o admirava com
desejo avassalador. A visão do meu fruto proibido bem diante dos meus olhos misturada às
lembranças do passado faziam minha pele esquentar e uma sensação de euforia se agigantar.
Tinha de ser racional e tentar acordá-lo a qualquer custo, mas não consegui. A luxúria
entorpecente que corria em minhas veias teimava em aproveitar aquele raro momento para
admirá-lo ao máximo. Com metade do seu corpo magnífico exposto para o meu deleite, estava
difícil demais não prestar atenção. Pensamentos um tanto obscenos sapateavam em minha
cabeça apaixonada: Haveria ele me observado dessa mesma forma quando cuidou de mim
das vezes anteriores?
— Nina?! — Richard despertou de repente e jogou o corpo para trás em reflexo.
Atordoado e com a expressão preocupada, ele se sentou num pulo enquanto checava com
rapidez a região que nos cercava. Jamais poderia me esquecer de que ele era um guerreiro e
já acordava preparado para o confronto. — Você está bem, Tesouro? — Ele me abraçou com
vontade arrebatadora e quase engasguei de emoção. Escutei o compasso desritimado em seu
peitoral e tudo em mim estremeceu de satisfação, como se finalmente eu estivesse completa
pela primeira vez em vários dias. Céus! Richard se transformara em uma parte de mim! —
Graças a Tyron! — arfou ele enquanto fazia a varredura minuciosa sobre mim, olhando-me de
cima a baixo. Não pude deixar de perceber que seu olhar permaneceu um instante a mais no
meu colo desnudo. — Por Tyron! Que droga foi aquela? Como viemos parar aqui? — ele se
afastou, recuperando a linha de raciocínio.
— Está tudo bem — acalmei-o, ajeitando a capa de Shakur sobre o meu vestido
destroçado. — Estamos seguros aqui.
Ele fechou a cara. Que ótimo! Mudança de humor à vista.
— Seguros?! Não acredito que você teve coragem de dizer isso! — Richard emitiu um
riso forçado, o temperamento tempestuoso à flor da pele. — Devo ter enlouquecido ou ficado
com a audição prejudicada nessa viagem interespacial dos infernos!
— Se alguém tem motivos para estar enfurecido aqui, esse alguém sou eu! — finquei o
pé.
— Ah, é? — cruzou os braços e uma veia latejou em seu pescoço.
— É sim! — rebati num rosnado. Argh! Ele era mestre em acender meu pavio curto. —
Ou já se esqueceu de que foi você quem me enganou?
— Eu estava te protegendo, sua cega! Será que ainda não compreendeu nada do que
fiz? — levou as mãos à cabeça.
— Você é que não me entende! Se eu colidisse aquelas malditas pedras-bloqueio, minha
vida acabaria! Aqui em Zyrk eu posso fazer a diferença, na segunda dimensão eu vagaria
como uma alma solitária!
— Abri mão de tudo que mais estimava no mundo, do meu posto, da minha vida e da
minha honra, tudo isso para que você pudesse viver e acabar com essa maldição terrível, para
que Zyrk não fosse destruída, para que meu povo pudesse sobreviver. — Ele me encarava
com a respiração entrecortada. — Mas você jogou tudo fora num piscar de olhos e sem a
menor hesitação. Você poderia recomeçar sua vida do zero, raios!
— Quem disse que eu gostaria de recomeçar do zero, Rick? Não trocaria minha vida
atual por nenhuma outra!
— Grande estupidez!
— Coloque isso de uma vez por todas em sua cabeça dura: a chama que me mantém
viva está em Zyrk, e não na minha antiga dimensão! As pessoas que eu amo estão aqui e não
lá, droga!
— E que pessoas são essas, Nina? — questionou sarcástico. — Se não me falha a
memória, todos aqueles que você diz amar estão mortos ou foram sentenciados à morte. Se
até mesmo o filho de Kaller foi condenado ao Vértice, por quem você voltou, afinal?
— Por minha mãe! — rebati enfurecida. — Você me mandaria embora sem me contar
que minha mãe estava viva, Richard. Não tinha esse direito!
— Sua mãe é uma humana e jamais poderia ter entrado em Zyrk! Não vê que é uma
armação, uma grande mentira? Foi por isso que omiti os boatos de você. Para que não caísse
como uma tola no truque de Von der Hess. Como está fazendo agora! Além do mais, não
acredito que ela esteja realmente... — sua fala travou.
— O que você quer dizer com isso, Richard? — rebati com os dentes trincados,
afastando-me dele. — Fala!
— Viva — ele virou o rosto e liberou a maldita palavra.
Morri por alguns segundos.
— Você quer dizer que ela está morta e que o retrato é uma farsa? — inquiri tentando
ocultar o pavor em minha voz. Ele não respondeu e tive que segurar seu rosto com força e
fazê-lo olhar para mim. — Qual é a jogada agora, Richard?
— Se ela estiver realmente viva... Só pode ser algum tipo de magia ruim — confessou. —
Não enxerga o que está bem diante dos seus olhos? Ela está justamente sob o poder de Von
der Hess!
— Não! — Senti as lágrimas se formando, mas não lhes dei permissão para sair. Não ia
chorar. Não havia por que chorar. Minha mãe estava viva e ponto final. Ninguém me faria
mudar de opinião. Nem mesmo Richard.
— Como acha que eu me sinto por ser obrigado a fazer o oposto de tudo que vinha
tentando? Eu queria salvar você, porra! — Ele ficou rígido e a expressão de inconformismo
lavou seu rosto perfeito. — Agora estou incumbido de levá-la diretamente ao ninho da serpente
e vê-la ser usada e depois aniquilada pelas mãos daquele bruxo miserável, Nina! O retrato...
— É real, Rick — interrompi num sussurro fraco.
Ele fechou os olhos e tornou a franzir a testa.
— Não é — balbuciou. — Mas, digamos que o maldito retrato não seja uma montagem,
que a sua mãe esteja viva e em Marmon, não enxerga que Von der Hess a está utilizando
como isca para atrair você? É tão óbvio! Tudo faz parte de uma grande armadilha! Não
entendo como Shakur me fez esse pedido, eu não consigo compreender, eu... — ele enterrou
o rosto nas mãos e pude sentir sua aflição. Pobre Rick! Era tudo abstrato demais para sua
mente zirquiniana acostumada a tudo ou nada, sim ou não. Jamais conseguiria entender que
existe uma linha tênue entre essas duas condições, que eu preferiria morrer levando a chama
da vida dentro de mim a sobreviver carregando o peso de um coração apodrecido em meu
peito.
— Talvez você tenha razão... Em parte — confessei. — Mas acredito que minha vida tem
um propósito bem maior do que sair fugindo de um lugar para o outro. Algo me diz que é a
hora de ficar e lutar — acariciei suas mãos hesitantes. — E o fato de Shakur ter nos ajudado...
Quando toquei nele... Ele acredita! Eu senti, Rick — mirei bem dentro de seus olhos azuis,
agora escuros de tensão.
— Ele está armando! — bradou nervoso. — Ou perdeu o juízo! Porque é isso o que
acontece com todos os que lidam com você!
— Como ele fez aquilo? Ele é um mago?
Sua carranca ficou ainda pior.
— Pode estar certa que não parto antes de descobrir, Tesouro. — Suas palavras saíram
baixas e perigosas.
— Pouco importa agora. Eu preciso fazer isso. Ela é minha mãe! É uma dívida da minha
alma. Se você me impedir, eu nunca mais o perdoarei — ameacei e me surpreendi com a
dureza no meu tom de voz. Respirei fundo, ajustei as malditas sandálias de couro, analisei o
degradê do céu e comecei minha caminhada em direção ao cinza escuro de Marmon.
— Aonde você pensa que vai? — indagou feroz, segurando meu braço com força.
— Você sabe muito bem para onde estou indo — olhei por cima do ombro e, com a voz
baixa e comedida, soltei a bomba: — Obedeça-me e siga-me.
— Como é que é?! — Seus dedos se afrouxaram e, instantaneamente, seu rosto ficou
vermelho como um pimentão.
— Já se esqueceu da promessa que fez a Shakur? Ou vai dar para trás? — tornei a
alfinetar. Contive o sorrisinho que ameaçou escapar e virei o rosto para que ele não
presenciasse minha expressão de triunfo. Em seguida escutei seu ganido feroz. Ele ficara
louco da vida, mas, pelo som das suas passadas, sabia que estava me seguindo.
— Isso é loucura! — Richard bradava de tempos em tempos, mas, assim como uma
sombra, ele não saía da minha cola. — Deixe de ser mimada e egoísta! Tantas pessoas
lutando pela sua vida e você a entregando de bandeja para Von der Hess? — Ele não dava
trégua e jogava um motivo atrás de outro na inútil tentativa de me fazer desistir. Se não fosse
pelo momento tenso e decisivo em minha vida, seria uma situação cômica observar Richard,
sempre tão pomposo e marrento, o resgatador mais temido de toda Zyrk, engolir seu orgulho,
implorar coisas, e me seguir como um bichinho domesticado.
— Preciso de respostas, conhecer a minha história e aí decidirei se lutarei por minha
vida, Rick — respondi em meio à caminhada.
— Aí será tarde demais.
— O tempo dirá.
— Você não vai encontrar nada em Marmon a não ser um mago sádico que vai utilizá-la
para abrir Chawmin e depois descartá-la como lixo! Von der Hess não é apenas louco, ele é
cruel, Nina! — Escutei sua bufada atrás de mim.
— Vou pagar para ver — rebati sem diminuir o ritmo da minha marcha. — Tenho certeza
de que minha mãe faria o mesmo por mim.
Seus passos perderam a força. Ele parou de me seguir. Algo dentro de mim ficou
imediatamente inquieto, dolorido. Apesar de saber que nada me faria desistir do meu
propósito, sua presença me deixava mais forte e segura. Estanquei o passo e me virei. Com a
testa lotada de vincos e a expressão taciturna, Richard tinha as mãos na cintura e o olhar
perdido.
— Rick? — Minha garganta ameaçou fechar.
— Você ainda teria uma vida inteira pela frente, Tesouro. Não jogue isso fora.
— Eu não estou jogando fora. Eu a estou resgatando, não enxerga? Estou dando sentido
a ela.
— Sentido? — Ele tentou colocar algum sarcasmo em seu tom de voz, mas fracassou.
Ele saiu lânguido, triste. — Na morte?
— Sim, Rick. Na morte — suspirei. — E na vida que reconstruirei a partir dela.
— Eu não entendo.
— Eu sei... Mas acredite. Eu vou reconstruir nosso futuro.
— Eu não tenho um futuro, Nina. Nós não temos um futuro juntos. Você sabe disso
melhor que ninguém.
— Vamos dar tempo ao tempo, você mesmo disse isso.
— Isso foi antes de eu quase ter te matado, raios! — respondeu nervoso.
— Não vou discutir isso agora — interrompi seu ataque de cólera. — Ajude-me a entrar
em Marmon, Rick. Não por Shakur, mas por mim.
— Eu não... — ele recuou e começou a andar de um lado para o outro. Seu cacoete
típico dos momentos de tensão. — Não vou suportar ver você se entregando, eu...
— Se já está com as horas contadas, então não terá nada a perder — insisti.
— É aí que você se engana profundamente, Tesouro — suspirou após um instante em
silêncio e uma veia latejou em seu maxilar. Meu coração vibrou, mas contive a emoção que
ameaçou vir à tona com aquela confissão.
— Obrigada — respondi de cabeça baixa, o coração batendo rápido demais no peito.
Não tive coragem de encará-lo.
— Vou cumprir minha promessa, Nina. — Sua voz saiu seca enquanto sepultava o
assunto. — Espero que não se arrependa no fim das contas.
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