CAPÍTULO 13
— O que está acontecendo aqui? — A voz de Sertolin rompeu o silêncio e quase me
matou de susto. Uma luz branca e ofuscante clareava a bolha onde estávamos, como se
tivessem acendido uma centena de lâmpadas fluorescentes superpotentes ao mesmo tempo.
A Sra. Brit já estava ao meu lado e segurava meu braço.
— Como a híbrida veio parar aqui? Vocês a trouxeram? — indagou furioso o tal do
Napoleon.
— Claro que não! — rebateu a Sra. Brit com indignação, mas senti seus dedos tremendo
em minha pele. Mesmo pequenina ela o enfrentava. — Existe magia suficiente ao nosso redor
para saber que tudo é possível por aqui!
Sertolin nos estudava, a expressão de desconfiança esculpida nas rugas de sua face.
— Nós finalmente conseguimos acordá-lo, caro Sertolin — respondeu Guimlel, mudando
o curso da conversa.
— Tem certeza sobre o que está falando, Guimlel? — questionou desconfiado.
— Sim, milorde. Richard estava se recuperando, ele... — Guimlel empalideceu e engoliu
em seco ao ver que Rick desacordara novamente. Todos pararam para observar Richard e
minhas mãos começaram a suar frio. Hesitei por um instante. Sem movimentar as pálpebras,
ele respirava lenta e ritmadamente. Se eu não soubesse da nossa farsa, também acreditaria
que ele havia desfalecido.
— Como ele respondeu na checagem, Ferfelin? — interrompeu o líder.
— Sem resposta a qualquer tipo de estímulo — respondeu um conselheiro que até então
se mantinha calado. Ele era louro e de cabelos encaracolados.
— Eu lhe dou a minha palavra, Sertolin! Ele havia acordado — bradou Guimlel.
— Sei — murmurou Napoleon sarcástico.
— É possível sim, seu ignorante! — retrucou a Sra. Brit. — A híbrida o acordou!
— Cale-se, Labrítia! — advertiu Guimlel.
— Eles iam descobrir de qualquer maneira — retrucou ela para as faces assustadas de
todos os conselheiros.
— A híbrida o acordou? — questionou Sertolin com um brilho enigmático no olhar. Seria
receio? Euforia?
— Eu disse que manter essa garota viva era um perigo, Sertolin — soltou Trytarus. —
Temos que eliminá-la o quanto antes.
— Temos que aguardar a resposta dos mensageiros interplanos, isso sim! — ralhou
Sertolin. — Não podemos arcar com uma decisão de tal magnitude. A repercussão seria
perigosa demais.
O que eles estavam querendo dizer?
— Vá checar, Ferfelin — comandou o líder e os dedos da Sra. Brit afundaram em minha
pele. Olhei para ela, que me encarou por um breve instante antes de fechar a cara e
acompanhar os passos do tal de Ferfelin. Naquele instante não sabia quem estava mais
nervosa, ela ou eu.
O homem passou por nós e removeu parte do lençol que cobria o abdome de Richard.
Concentrado e de olhos fechados, o mago mantinha as palmas das mãos elevadas e a uma
pequena distância do corpo imóvel de Rick.
— A energia está recuperada! — soltou num assombro e Guimlel liberou um suspiro de
alívio. — Vou tentar acordá-lo.
Cristo! O que ele ia fazer com Rick?
Ferfelin então sacou uma pedra branca do bolso de sua manta verde esmeralda e a
pressionou contra a jugular de Richard que abriu os olhos no mesmo instante. Escutei o
murmurinho de espanto liberado pelos conselheiros.
— Acredita agora, Sertolin? — Guimlel não conseguia ocultar seu sorriso de satisfação.
— Sente-se bem, rapaz? — indagou o líder do Grande Conselho.
Richard pousou o olhar aéreo sobre todos os presentes e confirmou com a cabeça.
— Bom. Levante-se e caminhe pelo lugar.
Rick, não! Não!
Aparentando estar sob uma espécie de transe, Richard lentamente conseguiu se sentar
na cama, mas, assim que colocou os pés no chão, arregalou os olhos e caiu de boca no chão.
— Não! — berrou a Sra. Brit, soltando meu braço e ameaçando ir em socorro do filho
adotivo, mas conseguiu se segurar a tempo. Na certa não a deixariam cuidar de Richard caso
deixasse transparecer o quanto gostava dele. — Como pôde cometer um erro deste porte,
Sertolin! — ralhou ela e o líder arqueou as sobrancelhas. — Não vê que a força dele ainda não
é suficiente? Essa energia que Ferfelin constatou serviria para suprir o corpo franzino de um
dos seus, mas não o dele. Richard é fisicamente mais forte do que todos vocês juntos,
consequentemente necessita de muito mais, ora!
Boa jogada, Sra. Brit! Agora era a minha vez.
— Eu poderia ajudá-lo — balbuciei e as atenções se voltaram para mim. — Se eu
estivesse melhor, acho que conseguiria aumentar a energia dele.
— É claro! Como não pensei nisso antes! — vibrou a Sra. Brit ao abrir um largo sorriso.
— Richard se abasteceu da força da híbrida. Não foi suficiente porque ela está ferida. Temos
que tratá-la para que possamos recuperá-lo! É isso!
Guimlel andava de um lado para o outro e tinha a fisionomia ilegível, os demais estavam
agitados. Sertolin era o semblante da dúvida.
— Acho isso muito arriscado, Mon Senhor — comentou Napoleon.
— Temos pouco tempo até o acasalamento — imprensou Guimlel.
— Eles têm razão, milorde — adiantou-se Ferfelin. — Em condições normais a
recuperação dele seria muito lenta e acabaríamos perdendo a data da procriação.
— E Zyrk perderia a chance de gerar o maior guerreiro da sua história — acrescentou a
Sra. Brit.
Um momento de silêncio. Um a um, Sertolin estudava os rostos dos presentes.
— Está bem — assentiu o líder. — Cuide dela, Ferfelin.
Ah, não!
— Ele conseguirá ser tão rápido quanto a Sra. Brit?
Não queria, mas senti que minha pergunta saiu transbordando atrevimento. O peitoral
gorducho da Sra. Brit estufou de satisfação. Ela adorava um elogio. Napoleon, por sua vez,
lançou-me uma advertência nada polida por estar me dirigindo diretamente ao líder deles. Não
recuei. Encarei Sertolin com firmeza enquanto ele observava as feridas em meu corpo.
— Tem uma hora para curar a híbrida, Labrítia. Depois disso Ferfelin a levará para a
grande tenda. Não vou arriscar colocá-la em seu domo individual. Não depois do que acabou
de acontecer.
Droga! Minhas chances de fuga estavam indo para o ralo!
— Sim, milorde.
— Guimlel, você vem comigo. Preciso que me explique como rompeu o feitiço que
permitiu liberar a híbrida.
— Mas, Sertolin, não fui eu, e não...
— Eu sei que foi você. Não adianta querer me enganar — interrompeu intolerante. —
Cuide dos dois, Labrítia. Ferfelin vigiará o lugar.
— Agora mesmo, meu senhor. Mas preciso de paz e silêncio absoluto para realizar
minhas curas. Prefiro ficar a sós com os doentes.
— Ferfelin ficará e será responsável pelo casulo — determinou intransigente. — Ferfelin,
cuidado e atenção ao máximo. O Conselho estará em reunião emergencial até o amanhecer.
Não deveremos ser incomodados enquanto estivermos trabalhando com energias de tal
magnitude — advertiu Sertolin enquanto olhava para o filete de sangue que escorria pelos
lábios de um Richard desacordado. Parecia pressentir algo errado no ar. — Não faça nenhuma
idiotice, Labrítia. Tenho grande estima por você, mas os tempos são outros... Qualquer
sentença por desobediência será severa.
— Eu sei, milorde — ela balbuciou sem encará-lo enquanto apertava os dedos
gorduchos.
— Bom — finalizou ele, esfregando a testa lotada de vincos. — Vamos.
A luz branca se expandiu, deixando-nos quase cegos. Acordei sobre uma cama não sei
quanto tempo depois. Um ruído fino arranhava meus tímpanos, como de uma colher raspando
o fundo de um prato de cerâmica com força.
— Ei! — respondeu a Sra. Brit assim que me viu abrir os olhos. Tentou colocar ânimo em
suas palavras, mas sua face preocupada a traiu. — Não se mexa — sussurrou e, fazendo um
discreto gesto com as mãos, lançou-me um olhar de advertência. Eu assenti. Naquele instante
me dei conta de que as fisgadas no braço direito haviam desaparecido completamente. As
feridas na perna do mesmo lado tinham sua cicatrização bem avançada também. Ela veio até
mim segurando uma vasilha de vidro. Dentro da tigela havia uma compressa embebida em uma
papa esverdeada e uma colher dourada de metal que julguei ser de ouro. Ela se sentou ao
meu lado e, após colocar a compressa na ferida, começou a fazer ruídos altos e
incomodativos com a colher, chocando-a contra a vasilha de vidro.
— Tire as mãos do ouvido — ordenou ela em outro sussurro. Obedeci. Seus lábios
permaneciam imóveis e ela falava comigo como se fosse um ventríloquo. Que estúpida eu era!
Ela estava aproveitando a ausência momentânea de Ferfelin e camuflava nossa conversa
com um ruído de fundo. — O que quer que você esteja planejando, Nina, desista. Não há
como fugir daqui.
Ela era esperta.
— Há sim — respondi entredentes. — Eu saí daquele casulo, não saí?
— Como você fez aquilo?
Eu meneei a cabeça e não respondi. Ela se adiantou:
— Sinto muito, mas não conte comigo para outra fuga.
— Como ele está?
— Foi a mesma pergunta que ele me fez. Por que Tyron está fazendo isso conosco? —
soltou pesarosa.
— Não precisa ser assim.
— Infelizmente, precisa sim. Por que acha que os conselheiros aceitaram as condições
de Guimlel? — indagou com severidade. — O filho de Richard será o melhor exemplar
zirquiniano de todos os tempos. Não posso negar isso a Guimlel e muito menos a Zyrk. Sinto
muito, minha querida. Do fundo do meu coração eu gostaria que as coisas fossem diferentes...
— Mas, Sra. Brit... Eu e Rick... Nós podemos conseguir!
— Não tenho mais tanta certeza, meu amor. Se você sobreviver não será para ficar junto
dele.
— Hã?
Cristo Deus! O que havia acontecido para ela mudar tão drasticamente de opinião?
— John de Storm tem sentimentos fortes por você.
— Eu amo o Richard! — retruquei.
— É o que você pensa. Os humanos são meio complicados nessa questão e, Rick...
Bem, ele... — ela perdeu a fala. Havia decepção em seu semblante.
— Ele o quê? — indaguei tentando não parecer sobressaltada.
— Ele fez burrada, Nina. E das grandes! Ele...
Um uivo alto rompia do lado de fora, como um grito de advertência. A bruxa estremeceu,
interrompeu o assunto e olhou através da bolha de energia. Estava transparente agora e não
mais leitosa como antes, mas, ainda assim, não consegui ver nada, a não ser um mar de
escuridão. Era noite em Zyrk e meus sentimentos ameaçavam ir pelo mesmo caminho
sombrio. Não permiti. Não suportava mais tanta gente dizendo o que eu devia fazer com minha
vida, sobre os meus sentimentos e os de Rick. Foi por ter dado ouvido demais a elas que
acabei duvidando dele e nos metendo nessa situação horrorosa.
— Estou desacordada há quanto tempo?
— Pouco mais de uma hora — murmurou e, em seguida, acrescentou em alto e
proposital tom de voz: — Amanhã estará praticamente curada, híbrida.
Negativo! Não esperaria até o dia seguinte e não podia deixar que o tal do Ferfelin me
levasse para a grande tenda, onde minha chance de fuga seria, provavelmente, inexistente.
Aproveitar-me-ia da ausência dos olhos de águia de Guimlel e da reunião do conselho para me
mandar dali.
— Sua energia é diferente. Facilitou a cura — finalizou ela com um sorriso frio.
— Vou checar o resgatador. A híbrida está pronta? — indagou Ferfelin, aparecendo
subitamente. A Sra. Brit deve ter sentido sua aproximação.
— Sim — respondeu ela, empertigando-se ao meu lado e me ajudando a levantar.
Ferfelin caminhou em direção à cama onde Richard permanecia deitado. Ele rompeu um
biombo de energia branca que haviam colocado para separar os nossos leitos.
— Deixe-me sentir sua energia, rapaz. Sente-se — ordenou o conselheiro ao se
aproximar dele.
Richard nada respondeu e apenas obedeceu. Ele se desfez do lençol branco e sentou-se
numa cama de vidro idêntica à que eu estava. Para minha sorte, naquele momento todos os
olhares estavam voltados para ele e, portanto, não perceberam a minha expressão de deleite,
completamente vidrada nele. Descalço e trajando apenas uma calça cinza, ele era a visão do
pecado, do meu fruto proibido. Tive de segurar o furacão de emoções que ameaçou despontar
em meu peito ao relembrar a noite em que “quase” passamos juntos. Por sorte, fui acordada
pelos sensatos pontapés da minha consciência.
— Como se sente? — perguntou Ferfelin.
— Melhor, mas ainda fraco — respondeu ele, remexendo o pescoço e esticando o
peitoral. Senti um mal-estar passageiro ao detectar suas novas cicatrizes. Marcas de perda e
sofrimento cuja causadora, mesmo que sem intenção, tinha sido eu.
— Está mesmo — conferiu Ferfelin e, encarando-me, murmurou pensativo: — Graças à
híbrida.
Não gostei da expressão perigosa que surgiu no rosto do mago. Richard fechou a cara
instantaneamente. Acho que também notou.
— Posso continuar? — adiantou-se a Sra. Brit para o mago ao perceber o clima estranho
no ar. — Ainda tenho muito serviço a fazer e o dia da procriação se aproxima. Não se esqueça
de que também terei que preparar a energia de Samantha para o acasalamento.
Samantha?! Que ótimo! Havia me esquecido completamente dela.
— Ainda estou estudando a energia dele — disse Ferfelin sem se afastar de Richard.
— Pois se quiser, venha estudá-la após o dia da procriação. Meu tempo é curto e acho
que Sertolin não gostará de saber que você resolveu fazer experiências de última hora e
acabou me atrasando.
— Não terei tempo depois. Ele será encaminhado imediatamente para a catacumba de
Malazar.
— Pois então peça ao seu líder que lhe dê mais alguns dias para estudos. Sertolin é uma
pessoa bem compreensiva.
— Eu sei que é, mas os demais não. O Conselho quer acabar com isso o mais rápido
possível.
A Sra. Brit levou as mãos à cintura e deu batidinhas no chão.
— Está bem — soltou por fim o homem. — Ele é todo seu.
A Sra. Brit tentava ocultar a emoção que a invadia e fingia tratar Richard de maneira
profissional. Ela até podia enganar o conselheiro, mas não a mim. Vez ou outra, fingindo
aplicar alguma compressa em sua testa, ela aproveitava e disfarçadamente acariciava o rosto
de Richard.
— Venha, híbrida — chamou ela e eu me aproximei. Richard levantou o rosto e me
encarou, um olhar frio, quase distante. Gelei por dentro, mas uma rápida piscadela das pedras
azuis-turquesa me resgatou do susto. Ele estava representando e havia enganado até a mim.
Uau! Richard era um ótimo ator! Em outra ocasião eu teria ficado preocupada com essa
constatação...
Ferfelin não saía de perto. Visivelmente impressionado, ele observava com atenção a
forma como a Sra. Brit manuseava os elementos do ar em sua magia entremeada a ervas e
toques. A Sra. Brit tinha a fisionomia impassível e parecia não se incomodar com a presença
do colega. Com muita calma, ela orientava onde eu deveria colocar minhas mãos sobre o
corpo de Richard e me pedia para fechar os olhos e concentrar em algo bom. O motivo de ela
fazer aquilo eu não conseguia entender, porque, se ela realmente queria que eu quisesse me
focar em algo maravilhoso, era só pedir que eu mantivesse meus olhos bem abertos. Minha
miragem estava na minha frente. Nas poucas vezes em que vacilei e reabri os olhos, deparavame
com um Richard robotizado que se limitava a ficar de olhos abertos e me olhar, olhar,
olhar.
— A energia dele está aumentando muito rapidamente — murmurou o conselheiro,
satisfeito.
Droga! Quando ele sairia de perto para que eu pudesse falar a sós com Rick?
— Mas não está constante. Tenho que preparar um extrato de base fundamental para
sua fixação — respondeu a Sra. Brit com propriedade.
— Por Tyron! Existe isso?
— Acompanhe-me — ordenou ela, abrindo um sorrisinho de superioridade.
Ferfelin quase pulou de empolgação. Sua expressão eufórica assemelhava-se à de uma
criança que havia acabado de descobrir uma despensa repleta de doces por acaso.
— Venha conosco, híbrida — comandou ele.
— Ela fica — disse a bruxa de forma severa e ele se encolheu. — Será que ainda não
aprendeu nada, homem? Nós vamos produzir um extrato para fixação dos resultados e não
para criá-los. É o poder dessa garota quem os cria. Quem nos garante que se ela sair de
perto dele nós não perderemos o que acabamos de conseguir? E se ela não for capaz de
gerar outra resposta como essa no organismo dele? São muitas variáveis, Ferfelin, e você tem
que estar atento a todas.
— E-está certo — balbuciou ele coçando a cabeça. — Fique, híbrida, e continue se
concentrando.
— Mais do que isso. — A Sra. Brit ajeitou o cabelo. — Quero que você descentralize a
força, garota. Sua energia está muito localizada. Você precisa espalhá-la pelo corpo dele.
— Como assim? — perguntei sentindo a descarga de adrenalina avançar por minha pele
e chacoalhar meu corpo por inteiro.
— Deite-se, Rick, e cubra-se até o pescoço com o lençol — ordenou ela. Richard
obedeceu sem pestanejar.
Eu poderia jurar que os olhos dele faiscaram naquele instante.
Então ela se dirigiu a mim:
— Você vai passar as mãos por todo o corpo dele, Nina. E vai começar pelos pés. Não o
descubra porque a energia não pode escapar, entendeu?
Deus! Era tudo o que eu mais desejava, mas não daquele jeito, ali e naquela hora.
Assenti, balançando a cabeça como um boneco, os olhos arregalados, o coração
fazendo uma coreografia intricada dentro do peito. Agora era eu quem havia robotizado.
Comecei timidamente, massageando seus pés por sobre o lençol. Richard tinha os dedos
longos, pés grandes e lotados de calosidades. Bem compatível com um guerreiro do seu
porte.
— Não estou sentindo — disse ele com a voz falsa e fraca enquanto checava os próprios
pés. Atordoada, parei a massagem e olhei para ele, que me encarou de volta e
disfarçadamente me lançou uma piscadela marota. Filho da mãe! Ele arrumara um jeito de
implicar comigo!
— Massageie por debaixo do lençol, Nina. Não o descubra — respondeu a Sra. Brit em
modus operandi aquecendo um líquido alaranjado dentro de uma bacia de alumínio. Ferfelin
também não nos deu atenção.
Tornei a encarar Richard e não acreditei no que vi. Mesmo em nossa péssima condição
ele ainda foi capaz de fazer uma cara sem-vergonha. Comecei a massagear suas panturrilhas
e, para minha surpresa, o tecido da sua calça comprida era uma espécie de seda fina e
escorregadia, permitindo-me sentir seu corpo com detalhes. Fui subindo a massagem, passei
pelos seus joelhos e, quando minhas mãos se aproximaram de suas coxas musculosas, parei
para respirar por um instante. Senti meu rosto corar intensamente. Tive de segurar a sensação
avassaladora que começava a dominar meu corpo, um calor que subia por minhas bochechas
e a vontade desesperadora de soltar uma gargalhada de puro nervosismo. De canto de olho, vi
que Richard mordia o lábio e segurava à força o sorrisinho malicioso que teimava em aparecer
em sua face linda e cafajeste.
Olhei para o lado e vi que a Sra. Brit encontrava-se distraída, separando algumas ervas
sob a vigilância atenta do conselheiro. Dei um pulo no lugar quando o cretino aproveitou o
momento para esfregar a perna em minhas mãos. Estreitei os olhos.
Ah, é? Eu também estou aprendendo a jogar esse jogo, Rick.
Sem a menor cerimônia, mudei a trajetória das minhas mãos e comecei a passar os
dedos na parte interna das suas coxas. Encarando-o sem parar e mordiscando o lábio inferior,
fui deixando minhas mãos subirem lentamente por suas pernas, intercalando carinhos e
apertadas mais audaciosas. Richard arregalou os olhos azuis-turquesa e o sorriso abusado foi
varrido de seus lábios. Ele agora estava tenso, a musculatura de seu peitoral subia e descia
com velocidade. Sentia a pele dele esquentando as palmas de minhas mãos enquanto meus
dedos, quase em câmera lenta, continuavam seu trajeto perturbador. Confesso que, naquele
instante, não saberia dizer se era mais para mim ou para ele, mas pouco importava. Eu estava
quase lá. Após comprimir os lábios e detectar um discreto trepidar de suas pupilas, suas
rápidas mãos paralisaram as minhas.
— Acho que é o suficiente por hoje, Sra. Brit — disse ele com a voz arranhando e se
levantando num rompante. — Sinto-me muito bem.
Tive de segurar o riso. Richard estava fugindo de mim!
— Volte a deitar, rapaz — comandou ela sem entender muito bem o que havia acabado
de acontecer. — Já estou indo.
— Vejam, eu estou muito... — ele insistia.
— Deite-se! Não escutou a ordem, resgatador? — reiterou Ferfelin. Richard fechou a
cara e obedeceu contrariado. Não estava em sua essência receber ordens.
Aproveitei a situação para cobri-lo com o lençol e me aproximar do seu rosto perfeito.
— Vamos fugir assim que derem o toque de recolher. Fique preparado —balbuciei em
seu ouvido.
— Você não vai a lugar algum, Nina! — rosnou baixo e uma veia tremeu em seu maxilar.
— É impossível agora. Esse lugar é cercado por magia e há bestas do lado de fora.
— À noite eles não irão atrás de nós. Teremos alguma margem de tempo em nossa fuga
para Marmon — disfarcei meu sussurro abaixando-me ainda mais sobre sua cabeça. Meus
cabelos se transformaram em uma cortina separando nossos rostos de Ferfelin e da Sra. Brit.
Assustado, os olhos de Richard dobraram de tamanho e, em seguida, ele fechou a cara.
— Marmon?! Você enlouqueceu de vez? Não vou ajudá-la a cometer suicídio!
— Vou atrás da minha mãe e ninguém me impedirá. Nem mesmo você, Richard.
— Pois então terá que se virar sem mim!
— Se é o que prefere — rebati com firmeza e vi as ondas de fúria surgindo no mar
revolto dos seus olhos.
— O que é que está havendo aí? O que vocês estão conversando? — bradou Ferfelin
desconfiado.
— Essa garota é completamente sem jeito! É a segunda vez que ela quase me cega! —
reclamou Richard.
Ele era mesmo um ator!
— Se afaste do rosto dele, híbrida! — ordenou a Sra. Brit, estudando-nos com atenção.
— Não preciso ficar deitado. Eu me sinto ótimo — insistia Richard, ameaçando se
levantar novamente.
— Argh! Quantas vezes eu vou ter que... — vociferou o conselheiro partindo impaciente
em direção a Richard. — Mil vezes Tyron! Ele está absurdamente lotado de energia, Labrítia!
A híbrida o recarregou completamente. Acho que não precisaremos mais das suas ervas.
— Como assim? O quê?! — questionou a Sra. Brit, que em seguida segurou o braço de
Rick com vontade. — Céus!
— Quero ver a cara de Sertolin quando souber o que aconteceu aqui — matutava o
conselheiro animadamente. — Pode descansar agora, Labrítia. Eu sei que você não dorme
desde que resolveu agir nesse caso.
Ela assentiu com a cabeça e, de costas para Ferfelin, olhou carinhosamente para
Richard. Surpreso, ele piscou várias vezes e deixou os lábios se afastarem, puxando o ar com
força. A expressão de agradecimento em sua face espelhava-se com o semblante emocionado
da bondosa bruxa. Fiz alguns ruídos na clara intenção de chamar a atenção para mim e não
deixar que o conselheiro captasse a nuvem de sentimentos que pairava no aposento. Rick
sabia que não poderia ter uma conversa mais íntima com ela e aquela era a sua forma de lhe
agradecer, de perdoá-la por ter me ajudado a fugir com John.
Escutei o zunido de energia aumentar do lado fora e uma luz azul resplandeceu ao redor
da nossa bolha: o toque de recolher! Era chegada a hora de fugir! Olhei para Richard uma
última vez na esperança de que ele tivesse mudado de ideia. Não encontrei nada a não ser
uma expressão fria, a testa lotada de vincos e a sombra de algo ruim ocultando o brilho de seu
rosto perfeito. Pisquei para ele e ainda o vi balançar a cabeça discretamente, como se
compreendendo a minha decisão e me pedindo para não ir, para não fazer aquela loucura.
Segurei a dor no peito que ameaçou me paralisar, o ar ficou pesado demais e minhas mãos
começaram a esquentar.
— Vamos embora, híbrida. Vou levá-la para a grande tenda — finalizou o conselheiro. —
Soldados! — chamou alto enquanto um filete de luz emergia de seus dedos.
Negativo! Ele não ia me levar para lugar nenhum!
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