— Por Tyron! Ela conseguiu escapar, Guimlel! — escutei a exclamação de aturdimento
ressoar no ambiente.
— Sra. Brit?!
— Eu mesma. — Apesar dos olhos arregalados, ela mantinha uma atitude contida. Senti
falta do seu costumeiro padrão agitado e afetuoso. Ao seu lado, a figura longilínea de Guimlel
parecia dobrar de tamanho. Com uma sobrancelha arqueada e a outra contraída, ele me
observava com um misto de espanto e preocupação. Desvencilhei-me de seus olhares
inquisidores e vasculhei o lugar. Meu coração começou a socar o peito com violência ao
perceber que estava dentro do casulo de Richard. — Você conseguiu — anunciou ela, mas o
estupefato de sua fisionomia perdia espaço para rugas de tristeza.
— Eu o quê?! Como vim parar aqui? — questionei atordoada e estremeci com a cena
que me envolvia. A Sra. Brit tinha a testa lotada de vincos, mas balançava a cabeça, como que
se desculpando por não poder responder. O semblante de Guimlel, por sua vez, denunciava
mais do que assombro. Havia algo estranho... Uma mistura de sofrimento e... desconfiança?
Céus! O que estava acontecendo ali? Encarei minhas mãos trêmulas e ensanguentadas,
chequei os danos em meu corpo. Aquilo era real.
— Richard? — senti um nó se formar em minha garganta. A Sra. Brit levou as mãos ao
rosto e fechou os olhos. Oh, não! — Ele...? Onde ele está? — meu sussurro saiu fraco,
ardendo na ferida da expectativa, no pavor de saber a resposta que poderia arruinar os cacos
da vida que estava me forçando para juntar.
— Meu menino não suportou, ele não...
— Está satisfeita agora? Veja o que você fez com ele, híbrida! — acusou Guimlel.
Então os dois se afastaram, abrindo meu campo de visão. Ainda caída sobre o chão, vi
surgir uma cama na minha frente. O corpo imóvel sob um lençol branco fez meu pulso disparar
e meu espírito encolher no peito. Desejo. Medo. Expectativa.
— Rick! — a rouquidão em minha voz se tornou um murmúrio de apreensão. Tentei me
levantar, mas minhas pernas não responderam. Aflita e sem conseguir ver seu rosto de onde
estava, comecei a me arrastar em sua direção.
— Fique onde está, híbrida traiçoeira! — advertiu Guimlel. Congelei no lugar. — Alertei-a
sobre o risco que Richard corria caso insistisse em ficar perto dele! Expliquei que você o
tornaria vulnerável e da importância de Richard para Zyrk. Mas você não me ouviu! Ou melhor,
fingiu ouvir e mentiu para mim. Bem típico dos humanos... Como fui tão estúpido e me deixei
enganar?
— Guimlel, não! — intercedeu a Sra. Brit.
— Deixe-me falar, Labrítia! Estou com essa droga agarrada em minha garganta. —
Guimlel estava enfurecido. Senti-me mal naquele instante, envergonhada. Bem no fundo sabia
que o mago tinha razão. Tudo aquilo havia acontecido com Rick porque ele quis me proteger.
Porque me amava. — N-Nós o perdemos — ele tentava manter a expressão de ira intocada,
mas não teve sucesso em disfarçar a sombra do desespero em sua voz. — Zyrk o perdeu por
sua causa, híbrida!
— P-Perdeu? — Foi a vez da minha voz falhar.
— Você quebrou sua promessa e veja o que aconteceu com Richard! Mostrei o perigo
para os dois! Alertei que era uma tolice acreditar que o sentimento que possuíam um pelo
outro era algo maior. Daquela vez ele quase a matou e agora foi a sua vez de revidar —
rosnou. — Parabéns! Você foi mais bem-sucedida que Rick!
— Ele está...?
— Morto? É essa a palavra que não consegue pronunciar, híbrida? Sim! Está satisfeita?
Meu estômago congelou. Eu não afundava apenas, estava em queda livre e em altíssima
velocidade. Um precipício sem fim, meu corpo despencando em um buraco negro de culpa e
angústia, uma queda para sempre.
— Não, Guimlel! Você está piorando as coisas — implorava a Sra. Brit através de um
choro fino e sem lágrimas.
— Por Tyron! Nós perdemos o filho que criamos e Zyrk perdeu um futuro melhor por
causa dela! E você me pede calma, Labrítia?
Eu também não tinha lágrimas. Não as encontrei dentro de mim. Estava seca,
completamente murcha.
— Esse corpo sem vida à sua frente é de Richard sim! — vociferou o mago.
— Não completamente... ainda — apressou-se em dizer a Sra. Brit. — Ele não partiu,
Nina, mas não consigo mais captar sua energia. Tecnicamente é como se estivesse morto.
— Ele não tem energia, mas ainda não partiu? — balbuciei, forçando minha mente a se
manter lúcida e atenta, algo quase impossível quando todo ar havia sido tragado dos meus
pulmões. Nada mais fazia sentido. — Não entendo.
— A magia do Grande Conselho está adiando a partida dele. Estão apenas aguardando
a data do acasalamento — explicou ela.
— Oh, Tyron! A data está quase chegando! — Guimlel levou as mãos à cabeça em
desespero.
— Mas por que não conseguem?
— Nós somos a morte, garota estúpida! — Guimlel me interrompeu sem paciência. —
Temos poder sobre a morte e não sobre a vida!
Poder sobre a vida...? Claro! Um discreto sorriso me escapava.
— Deixe-me vê-lo. Talvez eu possa ajudar — tomada por súbita esperança, tentei me
levantar.
— Fique onde está, híbrida venenosa! Vou avisar o Grande Conselho sobre a sua fuga.
— Não! — A Sra. Brit bradou alarmada, segurando-o pelo braço. — Será que não
enxerga, Guimlel? Ela não pode lhe causar nenhum mal, pelo contrário.
— O que quer dizer, Labrítia? — desvencilhou-se de forma brusca.
— Deixe-a tentar.
— Quantas vezes tenho que dizer que ela é um grande perigo! — retrucou nervoso. —
Além do mais, o Grande Conselho descobrirá o que acabou de acontecer. Ele jamais permitiria
uma insanidade desse porte.
— E desde quando você se preocupa com a opinião do Grande Conselho, Guimlel? Se
agirmos logo eles só descobrirão depois que tivermos tentado.
O mago hesitou por um instante.
— Quem sabe se ela... — A Sra. Brit insistia.
— Não! — rebateu ele sem muita convicção. — Ela pode acabar de matá-lo!
— Não vê que ela é a nossa última chance, Guimlel? O tempo está se esgotando!
— Eu não sei. — O médium começou a andar de um lado para o outro. Senti novo aperto
ao reconhecer o movimento. Richard fazia o mesmo quando se encontrava nervoso. Herdara o
cacoete de Guimlel, o homem que o havia criado na infância.
— Pois decida-se! Você sabe que logo eles estarão aqui!
— É arriscado demais! — vociferou o mago. — Ele pode não aguentar e aí não haverá a
procriação.
— Se este quadro permanecer, não haverá procriação de qualquer maneira, homem!
— Raios! Não vê que ele está assim por causa dela? — Apontou para mim com o rosto
crispado de raiva.
— Se eu sou a culpada, deixem-me tentar reparar meu erro. — Meu pedido saiu baixo.
— Por favor?
O vento começou a uivar raivosamente do lado externo. Guimlel continuava a esfregar a
longa trança negra da barba para cima e para baixo.
— Rápido, Guimlel! — ordenou a Sra. Brit com o rosto deformado pela tensão.
— Por Tyron! Tantos anos, tanto esforço! Tudo jogado fora! — Ele balançava a cabeça
sem parar. — Vá, híbrida! — ordenou nervoso e caminhou até a outra extremidade do casulo,
permanecendo de costas para nós. Sem perder tempo, tornei a me arrastar em direção à
cama.
As feridas em minhas mãos latejavam e não sentia mais meu lado direito, mas pouco
importava agora. Meu corpo haveria de suportar e me levar até Richard. Nem que eu tivesse
que me arrastar com os dentes. Levantei-me aos tropeços, tentando ignorar a dor e a
ardência terríveis que se alastravam por minha pele.
E quase fui a nocaute no instante seguinte.
Uma descarga de adrenalina, como se injetassem droga potente em minhas veias, fezme
estremecer da cabeça aos pés. Um filme de incompreensão, amor e doação passando
rápido demais em minha mente, chacoalhando meu mundo e todas as minhas dimensões. As
ridículas balas de café, a primeira vez que vi seus magnéticos olhos azuis, nossas discussões,
fugas, mortes, meu amadurecimento forçado, sua armadura se desintegrando, nosso diálogo
insuficiente, perdido em meio a um amor impossível, ações genuínas de afeto e uma sina
maldita. Senti o gosto de lágrimas em meus lábios e nem sabia que estava chorando. Pisquei
com força e o encontrei: a pele alva e pálida demais, olheiras pronunciadas, a barba por fazer,
os cabelos negros desgrenhados na bagunça mais linda que meus olhos ousaram vislumbrar, a
escultura mais perfeita que um ser maior poderia ter construído. Com apenas o rosto do lado
de fora do lençol, ele parecia a pintura de um deus grego embalado em um sono profundo,
meu indomável príncipe encantado. Como ele poderia ser a minha morte se meu coração
trepidava, minhas células vibravam enlouquecidamente e eu me sentia mais viva do que
nunca em sua presença?
— Ah, Rick! — gemi num sussurro afônico e me joguei sobre ele, abraçando-o com
todas as minhas forças, apreensão, desejo e fé. Segurei seu rosto exuberante entre minhas
mãos trêmulas e comecei a beijá-lo com desespero, as lágrimas forçando passagem, rolando
por minhas bochechas e encharcando as dele. Imóvel como um pesado boneco de cera, sua
pele quente era a única pista de que ainda estava vivo. — Por favor, acorde. Eu preciso de
você — soluçava agora.
A ausência de resposta começou a me afligir. Um tsunami de emoções contraditórias.
Medo. Incerteza. Dor. O filme de amor tinha falhas, vinha imbuído pela sentença da desgraça.
Ele ganhava espaço e sufocava a semente de esperança, esfacelava de vez meu espírito
combalido e me fazia compreender a indefinida realidade à minha frente.
E se o que o paralisava não fosse o mesmo sentimento que consumiu meu avô? E se
eu não fosse capaz de despertá-lo? E se realmente houvesse um ponto vulnerável em nossa
relação? E se o elo frágil fosse eu ou o meu amor insuficiente? E se...
O pavor começou a se agigantar dentro do meu peito. E não era pelo receio de que ele
não me amasse o bastante, mas principalmente pelo medo de que, na única vez em que
Richard precisou de mim, eu falharia com ele. Entrei em desespero e comecei a sacudi-lo.
Destruída e sem saber o que fazer, afundei meu rosto em seu peitoral e chorei muito. Meu
sofrimento em ondas de soluços vibrava por sua pele como notas de uma triste melodia de
despedida.
— Eu não queria que nada disso tivesse acontecido, e-eu... Desculpe! — entre
espasmos, confessei a minha dor. — Obrigada por tudo que fez por mim. Desculpe por não ter
te entendido, por ter sido tão estúpida, tão cega. Você tinha que ter confiado em mim, no
nosso amor. Não devia ter guardado tantos segredos. — Meu pranto enchia o ambiente. Ao
longe captei um gemido da Sra. Brit e a respiração acelerada de Guimlel. — Desculpe por
estar falhando com você. A última coisa que eu queria era destruir sua vida, seu futuro. Sinto
muito por não ter sido forte o bastante e por ter duvidado de você, de nós.
Dor e impotência rasgavam meu peito. Arfando entre soluços, tornei a envolver seu
maxilar anguloso e o beijei sôfrega e desesperadamente. Deixei que o gosto salgado das
minhas lágrimas invadissem seus lábios. No lugar onde minha felicidade deveria encontrar seu
pouso, deparei-me com a incompreensão e a tristeza envoltas em uma capa de dor e... ira!
Nada era como eu imaginava! Minha vida era uma droga, um grande emaranhado de
mentiras e sofrimento!
Uma fúria obstrutiva lançou suas garras em torno do meu pescoço. Comecei a sufocar.
Confronto. Energia. Um fogo crescente e abrasador tomou conta do meu corpo. Minhas mãos
ardiam e senti toda desesperança do mundo invadir minhas células. Eu não podia perdê-lo.
Assim como minha mãe, Richard era parte da minha vida, um dos pilares da minha existência,
da minha força. Uma parte de mim estava morrendo ali, com ele, dentro dele.
— Não! Não! Não! Seu estúpido! — comecei a socar seu peito com força, como se
quisesse que ele sentisse uma mínima parte da dor que me dilacerava. — Droga, Rick! Por
que mentiu para mim, seu cabeça-dura metido a herói! Por que está fazendo isso comigo?
Você sempre foi tão forte! Por que não reage agora? Por quê? — Comecei a sacudi-lo com
violência, meu inconformismo e força subitamente drenados por uma onda de pranto
devastador, suor e derrota. O pior pesadelo, aquele que jamais julguei ser possível, agora se
tornava realidade: Eu o estava perdendo. Richard estava morrendo e eu não conseguiria salválo.
Após berrar, implorar e soluçar, meus braços tombaram, exaustos, e desmoronei em seu
peitoral de pedra. Fechei os olhos e, afogada em meu sofrimento, soltei um choro rouco e
baixo, meu pranto de redenção: — Desde a primeira vez que o vi... Eu sempre te amei, Rick. E
sempre te amarei.
— Eu também, Tesouro.
O murmúrio saiu tão baixo que pensei ter sido a voz do meu subconsciente me pregando
uma peça. Mas, assim que seus dedos entrelaçaram-se levemente nos meus e uma descarga
elétrica percorreu minha pele de cima a baixo, fui eu quem quase enfartou de felicidade. Sem
encontrar a minha voz, levantei o rosto e quase fiquei cega com o brilho incandescente que
emanava de suas pedras azuis-turquesa. Mesmo abatido, seu discreto sorriso fez minha alma
ricochetear freneticamente dentro do peito até explodir de euforia, como nunca nenhum outro
foi capaz. Richard era a bateria que me recarregava, o combustível para o meu corpo e
espírito.
— Ah, Rick! — arfei sem conseguir segurar o sorriso que quase rasgou o meu rosto de
um lado ao outro. Vidrado, ele apertou minha mão entre seus dedos quentes. De repente sua
testa se encheu de vincos.
— Que cheiro é esse? — questionou ele ainda deitado, afastando meu corpo do dele.
Richard reparou no estado em que eu me encontrava e, anestesiada momentaneamente pela
injeção de felicidade, só então me dei conta de que todo meu lado direito latejava. Furiosa, a
dor voltara com força total. Contraí a testa quando ele tocou meu braço direito. — Isso é...
Por Tyron! Nina, você está ferida! — observou preocupado.
— Calma — pedi. — Você também não está muito melhor do que eu.
— O que houve? — arqueou uma das sobrancelhas inquisitivas enquanto tentava se
levantar.
— Não use suas energias, filho! — gemeu a Sra. Brit visivelmente emocionada. Ela tinha
a boca estreitada em uma linha fina e apertava as próprias mãos. — Por Tyron! N-nosso mmenino
conseguiu, Guimlel!
— S-sim, ele... — Guimlel respondeu atordoado, os olhos arregalados brilhavam muito e
denunciavam sua surpresa enquanto entortava a barba de um jeito estranho. Correndo a visão
dos nossos dedos entrelaçados para os nossos rostos, seu semblante de excitação foi
abruptamente substituído por um aflito. — Eles estão chegando! Afaste a híbrida dele,
Labrítia!
— Não! — Richard rugiu e passou o braço pela minha cintura. Fiquei realmente tocada e
orgulhosa do homem que amava. Mesmo fraco Richard ainda era um guerreiro que daria a
vida para me proteger. — Ela não sai daqui.
— Fique quieto, Rick! Desde quando você ficou tolo assim? — rebateu o mago. Richard
fechou a cara e, sem deixar de encará-lo, começou a se levantar.
— Filho, não! — implorou a Sra. Brit agoniada.
— Eles têm razão, Rick. Fique — pedi com uma calma que surpreendeu a mim mesma
porque minha mente trabalhava de maneira alucinada com a súbita decisão: nós íamos fugir
dali!
— Nina, eles não...
— Shhh — interrompi colocando um dedo em seus lábios ressecados.
Um ruído maior do lado de fora.
— Tire-a daí, Labrítia! — rosnou Guimlel. — Eles chegarão em instantes.
— Venha, Nina — pediu ela e, antes que se aproximasse de mim, eu fiz um gesto com as
mãos para que ela ficasse onde estava.
— Não quero complicar as coisas para o seu lado, Sra. Brit — respondi para a surpresa
de todos. — Deixe-me apenas dar um último abraço nele.
— Nina, não! — Richard tinha a testa lotada de vincos, mas era óbvio que não tinha força
suficiente para ir contra a situação. Estava fraco demais.
— Eu vou feliz, Rick — pisquei e, atordoado, ele apertou ainda mais a minha cintura e me
puxou para junto dele.
Era o que eu planejava!
Com os braços ao redor de sua cabeça sussurrei rapidamente em seu ouvido: — Tenho
um plano para sairmos daqui. Assim que eu me afastar de você finja que está mal novamente.
Entendeu?
Pedi a Deus que ele tivesse me escutado. Levantando-me com dificuldade, acariciei seu
rosto e nossos olhares se encontraram. Suas pedras azuis brilharam para mim e eu sorri.
Ele havia entendido!
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