segunda-feira, 7 de maio de 2018

CAPÍTULO 10 – Não Fuja

CAPÍTULO 10 – Aproximadamente 12 anos atrás
— Corram! Não podemos perder esse voo para Montevidéu! — acelero-as pelo saguão
de um aeroporto. Nina está mais linda e esperta a cada dia. Como a mãe. Minha alma regozija
com essa constatação.
— Isso precisa acabar! — Stela rebate aos brados.
— Isso vai melhorar quando eu acabar com Dale. Ele vem se escondendo de mim, mas
sinto sua energia por perto. Ele vai aparecer.
— E aí outro virá depois dele! — Ela leva as mãos à cabeça, os nervos ameaçando
dominá-la.
— Calma, meu amor. Eu vou dar um jeito. Não deixarei que ninguém faça mal a vocês
duas.
— Você se acha invencível, mas não tem como lutar contra todos! Não pode estar em
todos os lugares, Ismael!
— Quando não posso, conto com sua percepção para protegê-las. Eu te ensinei como
despistá-los. Sem contar que você é mais esperta que a maioria dos resgatadores, minha
pequena.
— Mas e se forem muitos?
— Duvido. Zyrk não tem uma oferta muito grande de homens para colocar atrás de você.
Lembre-se que, fora Dale, ninguém sabe da existência de Nina e, portanto, você não passa de
uma mera humana que teve sua data de partida alterada por ineficiência de seu resgatador.
Para todos os demais, Dale apenas enlouqueceu.
— Mas eles querem reclamar parte do território de Windston.
— Isso não é nada se soubessem da recompensa maior, da híbrida.
— Não a chame assim!
— Quantas vezes preciso lhe dizer que isso é um elogio, Stela?
— Desculpe — ela se aninha em meu peitoral. Consigo sentir sua dor e preocupação.
— Acredite em mim. Sei o que estou fazendo — acaricio seus fartos cabelos negros. —
Vocês duas são o meu milagre. Por favor, nunca duvide disso, Stela.
#
Stela tem andado muito tensa. Há momentos em que eu mal a reconheço. Esforço-me ao
máximo em criar um ambiente de harmonia e tranquilidade ao nosso redor, mas qualquer
tentativa de acalmá-la é em vão. Quando coloca algo naquela cabecinha linda, ninguém
remove. Está mais obcecada do que nunca em fazer uma lente especial para Nina. Tenho a
sensação de que não está satisfeita com os eficazes ensinamentos de defesa que lhe passei,
pois a encontro estudando com um afinco assustador, dia e noite, todos os tipos de materiais
que ocultam essências, cheiros humanos. Está ficando impressionantemente especializada no
assunto e distante de mim. Percebo que usa seu estudo como desculpa. No fundo sinto que
ela deseja ficar só e que, em determinados momentos, minha presença a incomoda. Sei que
deseja um lar definitivo mais do que tudo na vida, uma pousada onde possa viver sossegada e
criar nossa filha. Relevo vários comentários cruéis que lança no ar. Imagino que esteja assim
por causa da aproximação de mais um aniversário de Pequenina. Seus nervos estão mais à
flor da pele do que nunca. Com o tempo venho observando que ela está perdendo a luta contra
eles. A vida de nômades que somos obrigados a levar, os resgatadores que sou forçado a
eliminar com frequência para protegê-las e a preocupação com a segurança de Nina vêm lhe
afligindo com maior intensidade do que antes. Stela parece não suportar mais. Tento acalmála,
relembrá-la de que ela é uma receptiva espetacular, que as coisas vão se acalmar quando
nossa filha alcançar a maturidade aos dezessete anos humanos, que as pupilas de Nina vão
firmar, que a energia dela não oscilará tanto quanto agora e que não será mais um alvo fácil.
Respiro fundo e tento me convencer de que deve ser esse o motivo. Tampo os ouvidos para a
voz dentro de mim que alerta sobre um perigo à espreita, uma força oculta que cresce e
ameaça vir à tona.
#
Estou agitado, olhando para todos os lados com exceção do espetáculo à minha frente.
Stela já percebeu meu estado alerta, mas, depois de tantos anos fugindo dessa sombra
certeira, compreendeu que, da mesma forma que a vida se renova a cada instante, sempre
existirá alguém morrendo em algum lugar do mundo. Sempre. Como deveria ter acontecido
com ela, há mais de cinco anos. Não tocamos nesse assunto. Não suporto pensar na ideia de
perdê-la, da mesma forma que sei que ela se recusa a desistir da vida por causa de Nina. Tem
ciência de que nossa Pequenina ainda precisa de nós para se manter viva. Somos
expectadores das pessoas com suas horas contadas e que atravessam nossos caminhos, mas
precisamos nos esquivar dos resgatadores que estão atrás delas. Não podemos correr o risco
que eles esbarrem em nós também. Já bastam aqueles de quem fugimos constantemente.
Respiro fundo. É mais que natural que alguém vá morrer em breve em um lugar
abarrotado de gente como este circo. Sinto a indiscutível energia zirquiniana crescendo. Há
mais de um resgatador pelas redondezas. Mas há algo estranho dessa vez e não consigo
captar. Vejo Stela me observar pelo canto do olho.
— O que foi? — ela sussurra.
— Fique aqui. Vou ter que fazer uma varredura pelas redondezas — respondo.
— Por que está tenso? Estão atrás de nós?
— Shhhh. Vai ficar tudo bem. Uma ronda usual — tranquilizo-a ao visualizar sua testa se
enchendo de vincos.
— Mamãe, eu quero fazer xixi — Pequenina nos interrompe.
— Já vamos, Nina. Mamãe está conversando com papai — Stela responde agitada
demais.
— Mas eu quero...
— Fica quieta, Nina! — Stela rosna e agora sou eu quem aperta os olhos, preocupado
em deixá-las ali a sós. Stela está tendo outra crise e tenho medo que seus instintos para a
percepção sejam prejudicados devido ao seu estado nervoso, que ela cometa alguma falha
enquanto eu estiver atrás dos resgatadores. Mas também sei que não posso ficar ali com elas.
Se ficar, estaremos perdidos. Meu trunfo sempre foi ser o elemento surpresa. Os
resgatadores correm atrás das duas e não sabem da minha existência. Cegos pela atração,
como moscas que farejam mel, eu os elimino em nossa teia. — Ismael, eu...
— Calma, minha pequena — peço e acaricio seu rosto lindo. — Vai dar tudo certo. Vou
me certificar do perigo e, se for o caso, eliminá-los.
— Ismael, e-eu... — ela hesita e me olha com intensidade. Tremo. Tento engolir, mas
minha boca está seca.
— O que foi? — pergunto e ouço minha voz. Está rouca.
— Eu... — suspira e segura minhas mãos. — Você sabe que eu te amo, não sabe? Que
eu sempre te amei desde a primeira vez que o vi.
Por que ela está me dizendo isso ali e tão de repente?
Meu coração acelera, enlouquecido dentro do peito, enquanto afundo no banco da
arquibancada. Estou sem reação, apático, mudo. Há anos desejo ouvir essa frase de seus
lábios. Stela nunca disse. Sempre deu a entender, mas nunca utilizou a palavra amor. Eu
também nunca disse, mas por medo de errar ou mentir, por receio de não saber se de fato é
isso o que sinto no peito. Teoricamente eu seria vetado de tal sentimento por ser um
zirquiniano e não me perdoaria se mentisse para a pessoa que mais estimo na vida. Adoro
nossa Pequenina, mas sei que é por Stela o sentimento avassalador que me move todos os
dias. Mesmo sem nunca termos tido um contato mais íntimo, sinto-me profundamente feliz por
tudo que tenho vivido ao seu lado. Todas as sensações que ela foi capaz de fazer meu corpo
experimentar não foram nada se comparadas à mudança em minha essência. Por ela tenho
certeza de que daria a minha vida e a minha alma.
— Pequena, o que está havendo? — pergunto sem força. Devia estar feliz, mas onde
deveria encontrar euforia, deparo-me com um vazio de pavor.
— Não importa o que venha a acontecer, nunca duvide disso — pede baixinho.
— Stela, você está me preocupando.
— Eu te amo, mas não aguento mais. Eu preciso... — ela não diz mais coisa com coisa.
Sinto a explosão de energia negra dentro dela. Eu já a vi muito nervosa antes, mas essa crise
é, indiscutivelmente, a maior de todas. Fico assustado. — Você é o pai dela, Ismael —
continua acelerada. — Dale foi apenas o procriador. Pai é quem cuida, quem ama. Nina
sempre foi sua filha, Ismael. Mesmo que um dia tenha muita raiva de mim, não jogue a culpa
nela. Nunca se esqueça de que você é o pai dela.
Minha cabeça gira dentro de um furacão de emoções. Outra energia, a hostil, expandese
rapidamente. Os resgatadores estão por perto agora. Não temos mais tempo para
conversa. Preciso agir.
— Espere-me aqui — ordeno e lhe dou um beijo na testa. Stela levanta o rosto e me
puxa para perto, afundando os lábios nos meus. Há urgência e desespero nesse beijo. Abraçoa
com vontade e sinto a dor do momento se espalhar por minha pele. Não consigo
compreender o que está acontecendo ali. Perco a fala e, angustiado, levanto-me num
rompante. Quero ficar. Desejo ardentemente acalmá-la e certificá-la de que tudo ficará bem,
mas sei que, se não for agora, será o nosso fim. — Não vou demorar. Não saia daqui, está
bem? — Ela me olha com intensidade e acena levemente. Viro para o lado e Pequenina está
gargalhando com a apresentação dos palhaços. O esboço de um sorriso me escapa e me
convenço de que logo tudo ficará bem.
#
Demoro mais tempo que imaginava. Foram quatro resgatadores eliminados. Três deles
enviados por Windston. Wangor, pai de Dale, não está dando trégua. Venho ocultando o fato
de Stela e lhe dizendo que os homens que estão atrás de Nina nada mais são do que
resgatadores em missões habituais, mortes comuns. Não quero que sofra ainda mais. Sei que
os humanos dão muito valor a essa questão de família e ela ficaria arrasada se soubesse que
o avô de Pequenina é quem mais deseja vê-la morta.
Estou exausto e sei que não foi pelas lutas. É um cansaço interno, celular. A
apresentação acaba. Vejo a multidão de pessoas sair, dispersando-se pelo gramado ao redor
da grande tenda. Procuro por elas e não as encontro. Farejo o ar e nada. Nem sinal das duas.
Recordo-me imediatamente das palavras de Stela. Estremeço com a certeza que perambula
em minha mente.
Não pode ser! Ela não fez isso comigo!
Berro seu nome e o nome de Pequenina. Corro feito um louco por entre aquela manada
de gente. Empurro todos pelo caminho. Esbravejo o nome delas como um louco. Tenho ódio
de mim, de existir. Xingo centenas de palavras vis, praguejo, jogo-me no chão, a cabeça entre
as pernas, e choro um pranto seco. Estou sangrando por dentro.
“Mesmo que um dia tenha muita raiva de mim...”
Ninguém as havia capturado.
Era apenas uma despedida.
Stela tinha me abandonado.
#
Dois anos, cento e setenta e sete dias desde a última vez que as vi. A lembrança do beijo
de despedida, dos olhos negros traiçoeiros de Stela e da expressão de alegria no rostinho
inocente de Nina ainda permanece vívida em minha mente. Vasculhei todos os cantos do
planeta em minha busca frenética. Todos os sinais se desintegraram pelo caminho. Há
momentos em que rio da minha desgraça e a admiro em silêncio. Stela se superou e, se não
fosse pelo ódio mortal que cresce dia após dia em minhas veias, poderia aplaudi-la de pé. A
aprendiz havia superado o mestre. Hoje compreendo e até tenho pena da loucura de Dale.
Venho perambulando nessa dimensão como um ser amaldiçoado. Tenho vergonha de ser o
que sou, de ter me transformado nesse homem sem destino, clã ou honra. Acho o Vértice
digno demais para o verme que me tornei, mas meu orgulho também não admite que seja alvo
de escárnio pelos da minha própria espécie. Abandonei meu reino, meu mentor, meu futuro
glorioso. Deixei tudo para trás pelo amor de uma humana. Todos sempre me alertaram sobre
essa raça perigosa. Uma espécie interesseira e de ações dúbias, capaz de pisar, esmagar
com as próprias mãos o sentimento mais estupendo que já encontrei.
Sinto a formação de uma pista estranha me atraindo para esse lugar há algum tempo.
Farejo-a com determinação. Capto traços das duas, mas não consigo ter certeza. Boa parte
da minha confiança me abandonou naquele dia fatídico. Perambulo por ruas desertas de
Istambul. Os auto-falantes lançam os cânticos das mesquitas no ar. Orações. Torno a
estremecer com esse pensamento. Há dois anos, cento e setenta e sete dias eu não medito e
tenho vontade de desistir delas, de mim. Apesar de tudo, ainda tenho fé em Tyron e sou
convicto de que suicídio é para os fracos. Uma semente de esperança insiste em se manter
viva dentro de minha alma. Acredito que algo bom há de acontecer em breve, que meu
sofrimento foi por um motivo maior, que Stela teve uma razão muito forte para tudo.
De repente sinto várias energias no meu campo magnético. Preciso me focar. Calma,
Ismael! Calma!, ordeno-me com severidade. Esvazio minha mente e então, como num passe
de mágica, eu as sinto. Distintas e muito claramente: Stela e Nina! Não há tempo para me
regozijar. Há três resgatadores correndo para o local onde elas estão. Meu coração dá
pancadas frenéticas no peito. Terei que ser rápido! Eles estão mais próximos que eu!
Corro como um louco e ainda assim não consigo alcançá-los. Perco o ar algumas vezes e
tenho que parar para respirar. Praguejo alto. Segurando a dor em meu abdome, torno a correr
em direção ao local onde a força se expande. Uma fumaça negra sinaliza a direção. Sinto novo
aperto no peito. À medida que me aproximo, escuto uma confusão de vozes falando ao mesmo
tempo, berros de desespero, gritos de horror, pessoas chorando alto. Fecho os olhos quando
uma rajada de vento quente atinge meu rosto. Vasculho ao redor e não as encontro. A fumaça
negra já se alastrou e impregna minhas narinas. O local exala um calor mortal. Sinto-me dentro
de uma fornalha. Olho em todas as direções. Ainda sinto o cheiro delas. Há uma nuvem
claustrofóbica de pavor. Os berros estão cada vez mais altos. Sei que os resgatadores estão
por ali, mas não consigo enxergá-los. Resolvo ficar visível, preciso das minhas forças, e
avanço ainda mais. Forço meu olfato em meio àquela nuvem de borracha carbonizada e capto
a essência delas. Estremeço. Não pode ser! Mal percebo o suor que gruda a roupa em minha
pele e sigo em direção ao foco do horror, o motivo de tudo.
E paraliso, catatônico, quando vejo meu coração abandonar o corpo.
Há um carro em chamas na minha frente. Labaredas, como ferozes línguas vermelhoalaranjadas,
o engolem com uma velocidade assustadora. A nuvem de fumaça ganhou peso e
lança suas garras febris em todas as direções, ameaçando sufocar os que ousarem se
aproximar. A lataria está em brasas, mas a parte interna ainda está relativamente preservada.
Levo as mãos à cabeça quando detecto duas pessoas lá dentro.
Tyron tenha misericórdia! São elas!
Dou dois passos à frente e então recuo por um momento. Sinto traços modificados na
essência delas. Aperto a cabeça entre as mãos, desorientado de pavor. Não tenho tempo. Há
muita fumaça e sei que meu estado de tensão está prejudicando minha capacidade olfativa,
mas reconheceria de longe o sangue que corre em suas veias. Meus olhos ardem e
lacrimejam. Sinto nova descarga de adrenalina e pavor. O fogo já se alastrou por todos os
lados e não tenho como ajudá-las. Começo a berrar e, enlouquecido, ando de um lado para o
outro em meio ao calor demoníaco. Não tenho como romper aquela barreira mortal. Sei que é
um caminho sem volta. Torno a encarar o carro em chamas e uma certeza me invade a alma:
eu sou um forte! Não vou abandoná-las! Jurei que as protegeria! Dei minha palavra que daria
minha vida para salvá-las e agora é a hora de provar!
Eu sou um homem de palavra!
Se não serei capaz de salvá-las, então partirei com elas!
Deixo os berros de advertência atrás de mim e avanço como um raio em direção ao
maldito carro. Suporto com os dentes trincados a ardência alucinante das queimaduras em
minhas mãos e rosto enquanto abro a porta do carro em brasas e me deparo com os dois
corpos à minha frente. Não consigo acreditar no que vejo. Tombo para a frente, curvado pelas
queimaduras irreversíveis da amargura e do sofrimento. Vomito fel. Fui enganado! Acho que
escuto novos gritos de pavor atrás de mim. Não tenho certeza de mais nada porque acabo de
morrer. O corpo que carrego pertence a um morto-vivo. Estou morto muito antes de meu
coração parar de bater e minha pele desintegrar. Sou lambido pelas chamas, mas estou
anestesiado. Os danos das brasas incandescentes da fúria e decepção são arrasadores.
Perco a única coisa que me mantinha de pé: a fé em um ser superior. Tyron é uma farsa; o
amor, uma armadilha demoníaca; os seres humanos, pragas a serem eliminadas da face da
terra.
Então eu morro e me transformo em um monstro de corpo e alma

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