quarta-feira, 24 de outubro de 2018

41 - NA INTERPRETAÇÃO RIGORISTA - IRMÃO X

41 - NA INTERPRETAÇÃO RIGORISTA
Juvenal Silva, após longa incursão nos domínios espiritualistas, concluiu que as aflições
alma representavam fatalidade, que a dor constituía inevitável espinho e que não seria
razoável imiscuir-se nas questões de auxílio. Não afirmavam os filósofos e instrutores que
o indivíduo recebe sempre de acordo com os próprios méritos? se não era possível
modificar a estrutura da semente, porque a audácia de transformar as situações?
Examinando todas as teses doutrinárias “ao pé da, letra”, rematava, convicto: – “para que
ajudar? se o aleijado respira sem movimento e se o pobre sofre miséria e infortúnio, certo,
obedecem a desígnios que não nos compete perturbar”.
Às vezes, em companhia de amigos íntimos, pilheriava:
Em algumas ocasiões, recorria ao caso da víbora enregelada que socorrida pelas mãos
de caridoso caminhoneiro, readquirira o equilíbrio, inoculando-lhe veneno letal.
Retraído nas interpretações que lhe agradavam, passou a vida, paradoxalmente. Aceitava
a Revelação Divina, mas negava o espírito de sacrifício. Se algum companheiro
ponderava a inconveniência do rigorismo, à frente dos textos sagrados, valia-se das
passagens que, de algum modo, lhe garantiam os pontos de vista e observava:
– O próprio Cristo não asseverou que nem um fio de cabelo da cabeça cairá sem que o
Pai o queira? se nossas dificuldades estão dependendo da vontade de Deus, como
entender as interferências da criatura?
Cristalizando-se-lhe a estranha atitude mental, tratou de ensimesmar-se na Terra. Depois
de trancafiar-se na torre falsa do individualismo excessivo, cercou-se de cofres pesados e
flores leves num palacete que resumia os mais avançados serviços de conforto moderno.
Sentindo-se amplamente desobrigado de auxiliar a quem quer que fosse, amealhou
facilmente o que pôde, precavendo-se para o futuro.
No campo teórico, era notável discursador, mas no terreno da ação, Juvenal entregara-se,
inerme, às sugestões que o egoísmo lhe oferecia. Se irmãos de luta lhe batiam às portas,
implorando socorro para desamparados, informava, semi-colérico:
-Não dou. Cada qual recebe o que merece. Onde guardarão vocês a cabeça? Isto é
invasão de seara alheia. A beneficência é dever do Estado. Não posso interferir com
autoridades.
Quando alguém lhe dizia que a dor não esperava por decretos e que a morte não
costumava ler portarias governamentais, explodia furioso:
_ Cada espírito se cerca daquilo que merece ou pede.
E lá vinha Juvenal com vastíssima série de referências às leis regenerativas. Para firmar-
se, estribava em estudos de toda sorte. Recorria a doutrinas orientais e ocidentais. Citava
enumeráveis exemplos da própria vida. E ninguém lhe deslocava o parecer.
– Perdoem-me – exclamava, irritadiço mas creio guardarem escassos deveres em casa.
De outro modo, não perturbariam o serviço divino, porquanto esta caridade pedinchona
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não se harmoniza com a justiça. Se vocês soltarem todas os malfeitores presas à grade
do sofrimento adequado, que seria do mundo em que vivemos? Saibam que não as
acompanho. Sou adversário da desordem.
Invariavelmente, retirava-se as protetoras dos necessitados, em meio à tristeza e ao
desapontamento.
Em semelhante rumo, prosseguiu Juvenal até à desencarnação, finda a qual, entrou em
aflitivo isolamento.
Vivia a esmo, como que envolvido numa coluna de neblina espessa. Lamentava-se,
chorava, pedia auxílio, mas em vão. Pressentia a passagem de muita gente em torno
dele; mas ninguém lhe prestava atenção.
Apareceu, todavia, um momento em que o desventurado foi atendido por um mensageiro
da assistência divina.
Valendo-se do ensejo, lastimou-se, suplicou, exigiu.
Afinal – declarava em desespero –, não fora um criminoso, um perverso...
O enviado, de olhar translúcido e coruscaste, informou calmo:
– Filho, cada qual recolhe o que planta. A árvores do egoísmo não produz flores de
cordialidade.
Juvenal desfez-se em explicações. Acusado pela consciência, pretendia argumentar
contra si próprio. Se não praticara maior soma de bens é que supunha conveniente não
dever contrariar os dispositivos das provações remissoras.
- Sim – acrescentou o emissário, sereno -, de acordo com os mesmos princípios,
compreende-se-lhe, agora a solidão...
– Quer dizer – exclamou Silva, desalentado – que deveremos invadir os celestes
desígnios?
O mensageiro, porém, esclareceu sem perturbar-se:
– Se a dor humana é lavoura de renovação para, quem sofre e resgata, é também
sementeira sublime para todas aqueles que desejam plantar o bem imperecível. De outra
forma, Jesus não precisaria imolar-se na cruz por nos todos.
O interlocutor escutava, admirado. Antes, contudo, de sua argumentação, o venerável
socorrista indagou, direto:
- Juvenal, se você, quando via alguém aproximar-se de sua porta ou de sua
personalidade, conhecia de tão perto a questão do merecimento, nunca pensou que a
sabedoria e o programa e Deus atuavam em cada acontecimento, através de ligações
invisíveis, porque o sofredor ou o necessitado já se faziam dignos de seu amparo e de
sua proteção?
Silva que, não obstante egoísta, recorria ao raciocínio e à lógica, perdeu o gosto de
responder, mergulhou a cabeça entre as mãos e começou a meditar.

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