domingo, 14 de outubro de 2018

32 - NUMA CIDADE CELESTE - IRMÃO X

32 - NUMA CIDADE CELESTE
Quando Joaquim Pires desencarnou, crente sincero e praticante assíduo que fora do
Evangelho, procurou, incontinenti, as portas do céu. Combatera as próprias paixões,
distribuíra benefícios sem cogitar de recompensa, humilhara-se em favor dos outros,
sempre que as circunstâncias lhe aconselhavam serenidade e renúncia.
Em suma, Joaquim fora um homem bom. Todavia, como vivemos sobre maneira
distanciados das criaturas perfeitas, andava preocupado com a idéia de repousar no
paraíso. Não tivera ocasião de provar-se em testemunhos reconhecidamente difíceis e
angustiosos. No entanto, acariciava o propósito de anestesiar-se no "outro mundo".
Queria descansar, esquecer, embriagar-se no êxtase divino...
"Morreu", por isso, sem receio algum. Despediu-se, quase contente, dos familiares.
Parecia andorinha humana, no júbilo de buscar a primavera noutras paragens. E, como
efeito, tantos méritos detinha consigo, que prodigioso frio de luz assinalava-lhe o caminho,
desde o túmulo até as portas de uma cidade resplandecente.
Aí chegado, Joaquim, premido pela emoção, empalidecera de regozijo. Enlevado, notou
que, lá dentro, havia felicidade e luz, mas inequívocos sinais de trabalho também...
Ruídos de atividade salutar e sons de campainhas inquietas alcançaram-lhe os ouvidos
surpresos.
Antes de se entregar a maiores perquirições íntimas, simpático mensageiro veio recebê-lo
no limiar.
-É aqui o paraíso? - inquiriu à maneira do sertanejo bisonho que visita grande metrópole
pela primeira vez.
-Sim - informou o interpelado, gentilmente -, estamos numa cidade celestial.
-Quer dizer, então, em boa geografia, que já não respiramos a atmosfera da carne... -
tornou o recém-chegado, hesitante.
-Não tanto - esclareceu o enviado fraterno.
De tímpanos aguçados, Pires registrou a chamada dos clarins de serviço e considerou,
tímido:
-Meu amigo, que eu não sou mais do número dos "vivos"...
O outro completou-lhe a frase reticenciosa, asseverando:
-Não padece qualquer dúvida...
-Mas - prosseguiu o "morto" adventício -, trabalham, ainda, aqui?
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-Muitíssimo.
-Há, nesta cidade, horários, distribuição de tarefas, responsabilidades individuais,
disposições de lei, lutas e conflitos?
O mensageiro esboçou expressivo gesto de complacência e observou:
- Acredita que a morte da carne, mero fenômeno da Natureza, purifique o Espírito
milagrosamente? Temos enorme serviço a fazer. E o repouso para nós é lição, reparo ou
estímulo. Nossa felicidade não se cristalizaria em altares imóveis.
-Oh! - clamou Joaquim aflito - a justiça ensinava-me no mundo que há um paraíso para os
bons e um inferno para os maus.
-E você - interrogou o companheiro, intencionalmente - se julga perfeitamente bom?
-Não - respondeu Pires com humildade não fingida -, sou um pecador, bem o reconheço;
contudo... Francamente, não admitia houvesse tanto serviço após o sepulcro.
-Suporá inoportuno e intempestivo nosso propósito de luta e solidariedade, melhoria e
reconstrução? Quem não é infinitamente bom, deve amparar quem não é infinitamente
mau. É imprescindível atender aos imperativos da vida.Só Deus é o Absoluto.
-Sim, compreendo... - resmungou Joaquim, descoroçoado - todavia, sonhava com a paz
perpétua.
E continuou:
- Existe aqui chefia e subalternidade?
- Perfeitamente.
- Servidores melhores e piores?
- Sim, em mais elevado padrão de justiça e aproveitamento.
- Há estudos e provas, especializações e obrigações?
- Muito além dos ensaios que efetuamos na Terra...
- Há probabilidades de erro e dúvida, discussão e negação?
- Em todas as rotas de ação, porque o livre-arbítrio da alma evolvida é naturalmente a
cooperar na estruturação dos destinos, com a supervisão da Vontade de Deus.
- Conseqüentemente - prosseguiu Joaquim -, há reparações e punições, desequilíbrios e
dificuldades.
- Exatamente. Você não ignora que onde o erro é possível deve existir recurso para a
corrigenda.
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O recém-desencarnado meditou, meditou e aduziu:
- Procuro o repouso inalterável... Quem sabe resplandece em esfera mais elevada o céu
que busco?
- Assim não é - disse-lhe o interlocutor. Quanto mais alto subir, ais trabalho encontrará,
embora em condições diferentes.
Pires, sentou-se, apalermado, sob indizível abatimento.
O emissário fixou um gesto de bom humor e acentuou com clareza:
- Parece-me que o paraíso, sonhado por você, é o éden da espécie "Limax arborum".
Essas criaturas, que no fundo são igualmente filhas de deus, organizam o próprio lar,
através de folhas e flores. Aquietam-se e dormem descansadas sob a claridade do
firmamento. Nada perguntam. Não riem, nem choram. Desconhecem os enigmas. Não
sabem o que vem a ser aflição ou dor de cabeça. Alimentam-se daquilo que encontram
nas árvores preciosas da vida. Ignoram se há guerra ou paz, dificuldade ou pesadelo
entre os homens. Vivem alheias aos dramas biológicos, aos conflitos espirituais e, se um
cataclismo fulminasse o Universo em que nos achamos, não registrariam grandes
diferenças...
-Oh! - gritou Joaquim, repentinamente entusiasmado - quem são esses seres
privilegiados?
-São as lesmas - esclareceu o emissário, sorrindo -, e se você descer, suficientemente,
encontrará o paraíso delas...
Joaquim modificou a expressão facial e, embora consternado, quando ouviu falar em
lesmas, resolveu entrar.

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