segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

O maior vendedor do mundo parte 4


Hafid pôs de lado o pedaço de pão mordiscado e pensou em seu
infeliz destino. Amanhã seria seu quarto dia em Belém e a única túnica
vermelha que ele retirara tão confiante da caravana estava ainda no
embrulho no lombo do animal, agora amarrado numa estaca na gruta
atrás da hospedaria.
Ele não ouvia o barulho que o cercava no superlotado refeitório,
ao fazer careta, a refeição ainda por terminar. Dúvidas que assaltavam
todo vendedor, desde o começo dos tempos, passavam-lhe pela mente.
“Por que as pessoas não me dão ouvidos? Como atrair sua
atenção? Por que fecham suas portas antes mesmo que eu tenha dito
cinco palavras? Por que perdem o interesse pela minha conversa e se
afastam? Será todo mundo pobre nesta cidade? O que posso dizer
quando eles declaram que gostam da túnica mas não podem pagá-la?
Por que tantos me dizem para passar depois? Como os outros
conseguem vender, quando eu não consigo? Que medo é este que me
domina quando me aproximo de uma porta fechada e como posso
vencê-lo? Será que o meu preço não faz par com o dos outros vendedores?”
Balançou a cabeça, em desgosto pelo fracasso. Talvez não fosse
aquela a vida para ele. Talvez devesse continuar como guardador de
camelos e ganhar apenas moedas de cobre por dia de trabalho. Como
vendedor de mercadorias, ficaria verdadeiramente feliz se voltasse para
a caravana, sem lucro absolutamente nenhum? De que o chamara
Pathros? Um jovem soldado? Ele quis momentaneamente que estivesse
de volta aos animais.
Seus pensamentos voltaram-se, então, para Lisha e seu severo
pai, Calneh, e as dúvidas imediatamente o abandonaram. Aquela noite
ele dormiria de novo nas colinas para conservar suas economias e na
manhã seguinte venderia a túnica. Ademais, falaria com tal eloqüência
que conseguiria um bom preço por ela. Começaria cedo, logo após o
alvorecer, e se instalaria próximo à fonte da cidade. Dirigir-se-ia a todos
que se aproximassem e dentro de pouco tempo estaria retornando ao
Monte das Oliveiras com prata nos bolsos.
Estendeu a mão para pegar o resto de pão e se pôs a comer
enquanto pensava no amo. Pathros iria orgulhar-se dele, pois não
desesperara ou regressara como fracassado. Em verdade, quatro dias
era muito tempo para consumar a venda de apenas uma túnica, mas ele
sabia que se realizasse o feito em quatro dias poderia aprender com
Pathros a realizá-lo em três e, depois, em dois dias. Com o tempo,
tornar-se-ia tão eficiente que venderia muitas túnicas numa só hora!
Seria, então, verdadeiramente, um vendedor de reputação.
Deixou a barulhenta hospedaria e rumou para a gruta e seu animal.
O ar frio endurecera a grama com uma fina camada de geada e cada
folhinha queixava-se, estalando com a pressão de suas sandálias. Hafid
decidiu não sair para as colinas essa noite. Em vez disso, descansaria
na gruta com seu animal.
Amanhã, sabia, seria um dia melhor, visto entender agora por
que outros sempre se desviavam da aldeia empobrecida. Tinham dito
que nada se vendia ali e ele recordava essas palavras toda vez que alguém
recusava comprar sua túnica. Pathros, contudo, vendera centenas de
túnicas ali, muito tempo antes. Talvez os tempos tivessem sido diferentes
e, afinal de contas, Pathros era um grande vendedor.
Uma cintilante luz vinda da gruta fê-lo apertar os passos, temendo
algum ladrão. Ele correu para a entrada pronto a derrubar o bandido e
reaver seus bens. No entanto, a tensão imediatamente o abandonou à
vista do que confrontava.
Uma pequena vela, forçada numa fenda na parede da gruta,
brilhava fracamente sobre um homem barbado e uma jovem, achegados
intimamente. A seus pés, numa pedra esburacada, onde usualmente
ficava a forragem do gado, dormia um menino. Hafid conhecia pouco
de tais coisas, mas sentiu, pela pele enrugada e sangüínea, que o menino
era recém-nascido. Para proteger do frio o menino que dormia, ambos
os mantos, o do homem e o da mulher, cobriam-no todo, menos a
cabecinha.
O homem assentiu com a cabeça na direção de Hafid enquanto a
mulher aconchegava-se à criança, Ninguém falou. Então, a mulher
tremeu de frio e Hafid viu que o fino vestuário dela oferecia pouca
proteção contra a umidade da gruta. Hafid fitou novamente o menino.
Observou fascinado como sua boca pequena abria e fechava quase
num sorriso, e uma estranha sensação o assaltou. Por alguma razão
desconhecida, pensou em Lisha. A mulher tiritou novamente e seu
movimento súbito despertou Hafid do devaneio.
Após dolorosos momentos de indecisão, o suposto vendedor
encaminhou-se para seu animal. Cuidadosamente, desatou os nós, abriu
o embrulho e retirou a túnica. Desdobrou-a e correu a mão sobre o
tecido. A tintura vermelha reluziu com a luz da vela e ele pôde ver o
símbolo de Pathros e o de Tola, na parte de baixo. O círculo no quadrado
e a estrela. Quantas vezes erguera essa túnica nos braços cansados, nos
últimos três dias? Parecia-lhe que conhecia toda configuração e cada
uma de suas fibras. Era, realmente, uma túnica de qualidade. Com
cuidado, duraria uma existência.
Hafid fechou os olhos e suspirou. Depois, dirigiu-se com rapidez
à pequena família, ajoelhou na palha ao lado do menino e, gentilmente,
retirou o manto do pai e, depois, o da mãe. Devolveu cada um ao seu
dono. Ambos estavam chocados demais com a ousadia de Hafid para
reagirem. Então, Hafid abriu a preciosa túnica vermelha e, gentilmente,
agasalhou com ela a criança que dormia.
A umidade do beijo da jovem mãe ainda estava na face de Hafid
ao conduzir ele seu animal para fora da gruta. Diretamente acima dele
encontrava-se a mais brilhante estrela que Hafid jamais vira. Fitou-a,
até que seus olhos se encheram de lágrimas, e então puxou seu animal
pelo caminho que levava à estrada principal de volta a Jerusalém e à
caravana na montanha.  

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