sábado, 28 de abril de 2018

imocio do livro

CAPÍTULO 1
— Não vou chamar de novo! — advertiu mamãe.
Ah, não! Aquele sonho outra vez?
O maldito sempre surgia nos momentos mais conturbados da minha vida. Acreditava que
era uma forma de defesa, uma tentativa desesperada do meu organismo em me manter
mentalmente sã. Hoje mais parecia uma piada de mau gosto, um presente sádico do meu
subconsciente.
— Venham antes que a comida esfrie! — Stela começava a perder a paciência.
Venham...
Sim. Havia uma terceira pessoa naquele sonho. Nunca a vi, mas ainda experimento uma
emoção diferente, algo entre pesar e felicidade toda vez que me recordo da assinatura
inesquecível plainando no ar, a tatuagem de um botão de rosa esculpido na mão grande e
morena. Outra traquinagem que meu subconsciente insistia em me pregar e que, durante anos,
gerou desgastantes discussões com minha mãe. Stela afirmava categoricamente que era
imaginação da minha fértil cabeça de criança, que nada daquilo existiu. Verdade ou não, não
importava mais. Eu já sabia como o sonho acabaria: eu emburraria a cara porque mamãe me
obrigaria a parar de brincar para comer. Em seguida ela ameaçaria me levar ao médico.
— Vocês dois! Parem com a brincadeira e venham comer! — bufou ela, mas não havia
insatisfação em seu semblante. Pelo contrário, Stela estava feliz. Havia um brilho nos seus
olhos que nunca tive o prazer de presenciar, nem mesmo em nossos melhores momentos.
— Mas nós não acabamos o castelo! — resmunguei de volta. Eu estava em um dos
playgrounds do Central Park, as pernas miúdas afundadas em um tanque de areia. Devia ser
final de semana da primavera porque o céu estava muito azul, as flores tinham cores fortes e
definidas, e as folhagens exibiam o verde exuberante da vida em seu esplendor. O lugar
vibrava lotado de crianças brincando, jovens namorando, pessoas praticando exercícios,
outras lendo livros sob a copa das árvores e famílias fazendo piqueniques.
— Nina, você quer ficar doente?
Emburrei a cara.
Confere.
— Quer ir para o médico outra vez?
Confere.
— Venha comer e depois você acaba de construir o seu castelo de areia — acrescentou
ela.
Confere.
Em seguida mamãe apontaria para a travessa cheia de biscoitos de nata sobre a toalha
xadrez vermelha e branca e o sonho se desintegraria em mil pedaços. Três, dois, um, e...
— Depois continuaremos, Pequenina — uma voz masculina dirigiu-se a mim com candura.
Congelei.
Como assim? O sonho nunca foi até aquela parte! Que droga de brincadeira do meu
subconsciente era essa agora?
— Assim que acabarmos de comer vou encontrar uma flor bem bonita para fazer de torre
para o nosso castelo, tá? — acrescentou a voz masculina. — Será o castelo mais bonito do
mundo!
— De todo o mundo? — perguntei empolgadíssima.
— De todos os mundos! — afirmou ele.
Aquela voz... Ela nunca havia se dirigido a mim antes!
Eu queria dar um pause, precisava processar aquela voz em minha mente, vasculhar
minha memória à procura de pistas, mas o sonho prosseguia num ritmo acelerado e me pegou
desprevenida. Minha visão se limitava às minhas pequeninas mãos segurando uma pá de
brinquedo e um baldinho de plástico rosa transbordando areia. Ainda assim, foi o suficiente
para fazer todo meu corpo arrepiar e meu coração entrar num compasso desritmado.
— Deixa só mais um pouquinho, papai — minha voz infantil pediu de maneira melosa. —
Por favor?
“Papai”?!
Minha boca despencou, meu raciocínio se liquefez e me vi atordoada. Acorde, Nina!,
obriguei-me a despertar daquele transe sem sentido, sair daquela cilada bem bolada que
minha mente havia inventado para não sucumbir ao pânico, fugir daquele labirinto de emoções
perturbadoras. Nada daquilo fazia sentido. Nada daquilo havia acontecido. Nada daquilo era
verdade. Nada daquilo...
— Mamãe está chamando e ela tem razão. Você ainda não comeu hoje. Vai ficar muito
fraquinha. Você não disse que queria ser forte? — continuava a voz masculina. Ela era grave,
mas gentil ao mesmo tempo, muito gentil. Novo calafrio. Eu a conhecia de algum lugar... Aquilo
não era fruto da minha imaginação! Era uma recordação do meu passado! Uma lembrança de
um momento que realmente havia acontecido!
Droga! Eu queria enxergar... Eu precisava enxergar! Eu precisava conhecer meu pai!
— Sim, papai. Eu quero ser forte igual a você — respondi animada, mas meus estúpidos
olhos continuavam a focar o punhado de areia aprisionado em minhas mãos miúdas. Comecei
a ficar desesperada e com vontade de estrangular o meu eu em miniatura. Eu precisava
levantar a cabeça e olhar para aquele homem, tinha de conhecer meu pai antes que aquela
rara recordação se desintegrasse em milhares de pedaços e fosse varrida novamente para as
profundezas de minha memória. Entrei em desespero ao imaginar que aquilo poderia
acontecer a qualquer instante.
A voz soltou uma gargalhada de satisfação e, em seguida, senti meu corpo ser levantado
com absurda facilidade e rodopiado no ar. O verde das folhagens entremeado ao marrom das
árvores e o azul do céu cercando-me em um borrão de felicidade. Minhas pequeninas pernas
flutuando no ar. Quantos anos eu tinha? Três? Quatro?
— Não me solte, papai! — pedi com o coração acelerado.
— Nunca, Pequenina. Nunca. — Senti seus braços enormes me envolverem num abraço
quente e aconchegante, abraço de pai. O homem do sonho tornou a me colocar no chão,
acomodando-me cuidadosamente sobre a toalha xadrez. A sensação de um toque úmido e
delicado em minha testa fez a emoção em meu peito transbordar: um beijo.
Droga, Nina! Olhe para ele, sua criança estúpida!
— Aonde você vai? — perguntou mamãe para o homem assim que o viu começar a se
afastar de nós. Eu ainda consegui visualizar seus pés morenos pisoteando a grama bem
aparada onde havia largado meus brinquedos.
— Vou ver se acho um botão de rosa branca para colocar no nosso castelo. — Foi a
resposta animada de papai.
Mas que merda, Nina! Olhe logo para ele, sua...
Então, subitamente, minha cabeça mirim mudou seu ângulo de inclinação e olhou para
ele. Pisquei várias vezes antes de presenciar meu mundo girar de emoção e ruir. Senti meu
coração ser triturado e se tornar pó dentro do peito.
Era o homem da foto!
E agora também entendia o brilho nos olhos de mamãe. Papai era uma figura
hipnotizante: na casa dos trinta anos de idade, ele era alto, musculoso e muito bonito. Seus
traços marcantes conseguiam destacar ainda mais o azul dos olhos em sua pele morena. Olhei
para mamãe e vi uma mulher pequena e muito atraente, o corpo bem feito e cheio de curvas,
volumosos cabelos negros e vívidos olhos da mesma cor. Pelos meus cálculos, ali ela devia ter
uns vinte e cinco anos. Como um telespectador do próprio sonho, comparei minha pele pálida
com a dos dois, meu corpo longilíneo e meus cabelos castanhos alourados. Afundei o rosto
nas mãos e fui tomada por nova dor. Eu não era filha deles! Aquele homem não era meu pai!
E se... Por um instante cheguei a questionar se Stela seria também a minha mãe, mas
rechacei aquela ideia sombria da cabeça. Claro que era!
— Vá depois — tornou mamãe a pedir. — Primeiro coma uma fatia do bolo, amor.
— Bolo de laranja com coco? Você fez para mim? — O homem que se dizia meu pai
estancou o passo, abriu um sorriso estonteante de tão perfeito e lançou uma piscadela. Uau!
Ele era muito bonito!
Mamãe retribuiu com um sorriso sedutor que eu nunca tive a possibilidade de presenciar.
Ela não tinha os traços tão bonitos quanto os dele, mas havia uma aura de beleza, uma
energia pulsante ao redor do seu corpo que parecia sugar qualquer um para seu campo
gravitacional, quase um ímã. E o olhar apaixonado de papai confirmava o que eu acabava de
visualizar. Olhar vidrado. Olhar de entrega. Olhar de amor. No instante seguinte ele caminhava
em nossa direção e abaixava-se ao encontro dela. Seus faiscantes olhos azuis piscando dentro
dos negros de mamãe, o sorriso afetuoso estampado em seu rosto.
— Você nunca se esquece, Pequena — sussurrou ele, acariciando o rosto de mamãe.
“Pequena”?
— Como poderia esquecer? — ela sorriu um sorriso de cumplicidade. — Há três anos
não faço outro. Não sei como você não enjoa.
Sem deixar de sorrir, papai franziu a testa e meneou a cabeça.
— Como nunca enjoarei de vocês. Nunca.
— Sei. — Sem conseguir disfarçar a felicidade estampada em sua face, Stela mordiscou
o lábio e o puxou pela gola da camisa para bem junto dela. — Se você quiser, eu posso fazer
muitas outras coisas para você.
Papai parecia ser um sujeito envergonhado, pois, apesar de demonstrar evidente
satisfação com aquele gesto, arregalou os olhos e se esquivou do beijo apaixonado de
mamãe.
— Ôoo! — gargalhou ele, abraçando-a repentinamente por trás. — Quem é que não tem
noção do perigo por aqui, hein?
Mamãe se afundou no abraço dele e começou a rir com vontade. Ingênua e feliz, me
joguei para junto dos dois.
— Calma aí, mocinha! O que é isso? — Papai brincava, imitando os trejeitos do vilão de
um desenho animado a que eu costumava assistir. — Um exército contra mim? Pequena e
Pequenina unindo forças? Não sei se conseguirei suportar. Não tenho forças para lutar contra
as duas ao mesmo tempo! — retrucou gargalhando enquanto se defendia de meus infantis
golpes de karatê e nos envolvia com seus braços enormes.
Assistindo à cena de longe, senti uma lágrima rolar por minha bochecha e um nó de
emoção se formar em minha garganta. Minha mãe havia sido feliz um dia. A frase de Kaller
reverberava em minha mente e me angustiava a alma: “No momento em que você nasceu, a
vida dela acabou, Nina. Ela vivia apenas para manter você viva.”
De repente um chamado intruso e um movimento brusco em resposta. Mais rápido que
um raio, papai desvencilhou-se de mim e de mamãe, deu um salto incrível e avançou como um
bicho para cima de um vendedor ambulante. Quando dei por mim, ele o suspendia no ar. Seu
semblante feliz havia desaparecido e se transformado no de um animal em sua extrema fúria.
— Calma, moço! — implorou o sujeito que oferecia seus serviços de fotografia. Preso
pelo pescoço, papai o mantinha suspenso no ar com uma facilidade assustadora. O homem
remexia as pernas e seu rosto vermelho dava sinais de início de sufocamento. — M-Me solta!
— Solte-o! — mamãe pediu apavorada, intercedendo em favor do pobre sujeito. Papai
parecia transtornado e mantinha os olhos fechados durante todo o tempo. — Você vai matá-lo!
— Ela implorava, mas papai estava irredutível.
— O que é isso? — papai reabriu minimamente os olhos e, com violência, puxou a
câmera mega antiquada. — Como se aproximou tão rápido?
— Isso é uma máquina fotográfica, moço! — O ambulante gemia. — E eu não me
aproximei tão rápido assim. Vocês é que estavam distraídos.
— Nada de fotos! Maldição! Como me deixei ser pego de surpresa assim? — Papai
parecia inconformado consigo mesmo e começou a apertar ainda mais o pescoço do
ambulante.
— M-Me larga, moço.
— Solte-o! Você não pode fazer isso com todo mundo que se aproximar de nós! —
Mamãe gritava agora: — Será que não percebe que está nos fazendo mal? Por sua causa
estou ficando cheias de neuras, com medo da minha própria sombra!
— Por minha causa? — papai murmurou e, após balançar a cabeça, finalmente soltou o
infeliz.
— Cristo! — reclamou o sujeito esfregando o pescoço assim que conseguiu tragar uma
golfada de ar. — Você é louco?
— Vá embora, moço — ordenou mamãe fitando papai com severidade.
— A senhora não quer ficar com ela? — O sujeito não devia bater bem das faculdades
mentais. Ele ainda tinha a audácia de tentar vender a fotografia em meio àquela confusão?
Sorri intimamente. Mamãe havia dado um jeito de reaver aquela fotografia!
— Vá embora! — rugiu ela para o fotógrafo antes de se voltar para o papai: — Você
está ficando paranoico e não pode fazer isso conosco também, ouviu?
— Tudo que faço é para protegê-las, você sabe. — A voz dele saiu rouca.
— Eu sei — mamãe olhou para mim e liberou um suspiro. — Mas está começando a
passar dos limites.
— Não existem limites para os meus, Stela. Você sabe disso melhor que ninguém. —
Mamãe não respondeu, mas ficou com o semblante pesaroso. Papai parecia convicto de suas
ações. — Qualquer cuidado é pouco e vocês duas são preciosas demais para mim. Não posso
sequer imaginar perdê-las.
— Você não vai nos perder. Está exagerando como sempre — murmurou ela que, após
estudar papai por um instante, perguntou: — O que você está escondendo de mim?
— Sou tão óbvio assim?
Mamãe era esperta.
— O herdeiro de Windston...
Herdeiro de Windston? Ele estava falando sobre Dale, meu suposto pai?!
— O que tem ele?
— Perdi seu rastro.
A cor foi varrida do rosto de mamãe.
— Há quanto tempo? — balbuciou ela, vindo em minha direção. Stela queria bancar a
durona, mas senti suas mãos tremerem ao me colocar no colo.
— Quatro dias. — Os ombros de papai se curvaram. — Não quis te preocupar.
O Central Park perdeu o som e era possível tocar o silêncio aterrador que nos envolvia.
— Não estou preocupada — afirmou mamãe sem encará-lo. — Ele não nos faria mal e
me sinto segura aqui.
— Nenhum lugar é seguro enquanto eu não recuperar as pegadas dele, Stela — rebateu
papai de maneira rude. Seus olhos azuis chegaram a queimar. — Pare de se enganar! Não
enxerga que Dale enlouqueceu?
— Pare você de me deixar neurótica! — retrucou mamãe supernervosa. — Ele não vai
fazer nenhum mal a Nina!
— Dale pode fazer qualquer coisa, Stela! Ele enlouqueceu!
— Céus! Ele não é como você diz, afinal ele é o pai dela e...
— Eu sou o pai dela, Stela! — ele a interrompeu. Havia uma pitada de amargura em sua
voz.
Mamãe fechou os olhos com força e, em seguida, abriu um sorriso triste.
— Claro, meu amor. Você é o melhor pai que Nina poderia ter, Ismael. E é isso o que
vale.
Ismael???
— Venha. Vamos comer.
— E a flor do meu castelo, papai? — inquiri, pulando do colo de mamãe e me jogando
nos musculosos braços do homem que eu chamava de pai.
— Vou buscar agora mesmo, Pequenina. Agora mesmo — murmurou gentil, dando um
beijo delicado em minha bochecha e me abraçando com vontade. O abraço foi tão real, que
meu peito estufou, como se eu pudesse sentir na pele o bem-estar que ele me proporcionava.
Se Dale era mesmo o meu pai, então quem era aquele homem?
Quem era Ismael?

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