domingo, 29 de abril de 2018

capitulo 2

CAPÍTULO 2
Naquela fração de segundos, perdi as contas de quantas vezes me perguntei se tudo
aquilo era real. Já deveria estar habituada aos pesadelos a que fui submetida nos últimos dois
meses da minha vida, mas os acontecimentos se atropelavam em uma velocidade tão absurda que era praticamente impossível processar tudo que ocorria ao meu redor.
Havia tensão no ar.
Kevin me puxou para junto dele e não reagi. Jamais poderia imaginar que um dia ficaria satisfeita em ir com ele. Se Stela estava realmente viva, ela só poderia estar em Marmon. E
eu precisava de minha mãe. Da força que apenas ela seria capaz de gerar em mim. Tinha que lhe pedir perdão por tudo, especialmente por ter sido tão cega, tão egoísta.
Como não fui capaz de enxergar todas as loucuras que ela fez por mim? Minha mãe, a pessoa que mais amei no mundo, ainda estava viva. E agora era a minha vez de retribuir o sentimento com que fui inundada, salvá-la, assim como ela fez comigo a partir do momento em que fui concebida. Precisava lhe confessar que tinha muito orgulho em ser sua filha e que a amava acima de tudo.
— Você realmente acredita que sairá daqui com ela, rapaz? — indagou sarcástico o líder de Thron enquanto fazia a varredura do horizonte. O sol de Zyrk surgia timidamente e a neblina começava a se dissipar. Ao longe uma nuvem ganhava definição: um exército de imponentes
cavalos brancos avançava em nossa direção.
— O que pretende fazer, senhor? — Muito antes de olhar, reconheci o dono daquela voz humilde: era Ben. — Richard já está muito mal — apontou preocupado para o corpo desacordado do amigo.
Shakur não respondeu e, com a postura rígida, encarou Richard por um longo momento.
Sua figura negra parecia mais enigmática e assustadora do que nunca.
Quis desviar meu olhar, mas me vi aprisionada em uma terrível constatação: agora que o dia clareava era possível averiguar os terríveis danos no corpo inerte de Richard: supercílio aberto, rosto ensanguentado e sujo de areia, lábios sem cor, costas, braços e abdome repletos de cortes, mãos sujas e pernas tingidas em vermelho vivo do sangue que escorria. O sol de Zyrk não refletia apenas a tensão nos rostos que me rodeavam, mas clareava também
meu cérebro e chacoalhava meu raciocínio.
Ao seu modo, Richard não havia me traído!
Ele tinha conhecimento de que Stela estava viva e me escondeu esse fato porque sempre soube que eu não partiria sem ela e que acabaria colocando minha vida em risco ao
permanecer em Zyrk. Não apenas a minha existência, mas a de milhares estava em jogo.
Richard sabia que já estava condenado ao Vértice devido aos stúpidos erros que havia cometido por minha causa. Tinha ciência de que seus dias estavam contados e de que nunca haveria um futuro para nós. Ele havia me enganado novamente, mas não em proveito próprio.
Todas as loucuras que fez foi para me manter viva, para me livrar da sua gente. Senti o gosto amargo da decepção sendo gradualmente substituído pelo doce sabor do perdão. Quem diria?
Minha morte dera sua vida por mim. Ela preferiu abreviar a própria existência para permitir que eu pudesse viver, para que eu tivesse uma história com início, meio e fim.
Pobre Rick! Ele só havia se esquecido de um detalhe monumental: se eu partisse para a segunda dimensão, eu também morreria. Seu coração zirquiniano não tinha entendimento de que só existe vida onde há amor. E os amores da minha vida estavam ali, em Zyrk.
O som de uma corneta ecoou pela planície desértica e senti uma ardência em meu pescoço.
— Merda! O que eles estão fazendo aqui? — praguejando e me trazendo à realidade, Kevin arrancou meu cordão com violência. Vi quando as pedras marrons escorregaram de seus dedos e suas pupilas trepidaram. Instintivamente amassei a fotografia em minha mão. Ele
não ia tirá-la de mim!
Um porta-estandarte vinha à frente de um pequeno exército de imponentes cavalos brancos. Ele tinha uma bandeira com um trevo de quatro folhas. Em cada folha havia o brasão de cada um dos reinos de Zyrk. Três deles me eram familiares e julguei ser de Marmon o
brasão desconhecido onde havia o desenho de uma pena sobre um papiro aberto. Em seguida, identifiquei a flor de Thron, o raio de Storm e o punho fechado de Windston. No centro do trevo havia um círculo com o desenho de um pássaro voando e carregando uma argola em seu bico. Ele parecia atravessar um portal, pois a parte posterior do seu corpo não era visível.
— Parado, resgatador! — começou em alto tom um homem de meia idade montado em um cavalo atrás do porta-estandarte. Ele era tão magro que as linhas pronunciadas dos seus maxilares davam-lhe uma parência cadavérica. — Até segunda ordem, todos os presentes estão presos e serão levados para Sânsalun, onde serão julgados por terem  nfringido as normas fundamentais do Grande Conselho de Zyrk.
Sânsalun? Grande Conselho?
Um murmurinho baixo. Foi tudo que escutei antes de um silêncio perturbador preencher o lugar. Por que ninguém reclamou ou partiu para o confronto? Por que nenhum dos presentes foi contra a ordem dada se o número de homens de branco era bem menor que o grupamento de Kevin e Shakur juntos? Olhei furtivamente para os rosts de Kevin, de seus homens e até mesmo para a metade descoberta da face de Shakur e me deparei com semblantes que variavam entre apreensão e medo. Fui acometida por um surto de compreensão e senti a saliva gelada grudar em minha garganta: conhecendo o temperamento hostil dos zirquinianos, havia um motivo grave para o estado de submissão de Shakur, Kevin e companhia. Os homens de branco montados em seus cavalos também brancos deviam ser exemplares zirquinianos mais poderosos do que aqueles que me rodeavam.
— A híbrida! — soltou o homem cadavérico quando nossos olhares se cruzaram. — Como eu desejei que essa lenda fosse falsa...
— Não entendo, caro Napoleon. O Grande Conselho disse que se manteria afastado deste assunto e... — Kevin tentou argumentar com uma voz calma e gentil. Sua típica voz de serpente pronta para dar o bote.
— Isso foi antes dessa bagunça que vocês aprontaram, resgatador — interrompeu o tal
Napoleon. — Tiveram a chance de eliminá-la ainda na segunda dimensão e a deixaram
escapar. Aqui em Zyrk a híbrida é um perigo incomensurável.
— Mas...
— Calado, resgatador! A não ser que deseje aumentar sua pena — rebateu Napoleon. —
Venha para cá, híbrida! Agora!
Relutante, senti os dedos ofídicos de Kevin liberando meu braço.
— Vá — disse a víbora em alto tom, mas não sem antes cochichar em meu ouvido: —
Não se alegre. Será por pouco tempo.
— Estou contando com isso — sussurrei de volta. Ele fechou a cara.
Por enquanto quero ver no que toda essa confusão vai dar, foi o que eu não disse. O
que também não disse era que eu entrara naquele jogo de cartas marcadas e estava apenas
aguardando a minha vez de jogar. Não havia mais temor dentro de mim e uma força
arrebatadora me impelia a ficar ali e entender meu destino.
Sob a vigilância de todos os olhares, desci com cuidado a montoeira de rochas
irregulares até chegar à base da montanha. Estanquei o passo.
Não! Não! Não! Continuem caminhando, pernas!, ordenava aflita minha razão. Ela sabia
que eu não suportaria vê-lo caído ali tão perto... Ah, Rick! Estava difícil demais não me jogar
sobre seu corpo combalido, sua musculatura e rosto perfeitos ocultados pela capa de sangue
e areia. Não olhe, Nina! Ninguém pode suspeitar sobre o que você sente por ele. Aguente
firme! Mas, e se fosse a última vez que o visse? E se eu o perdesse para sempre? Céus! Eu
precisava tranquilizá-lo, agradecer por tudo que fez para me salvar. A última imagem que
Richard guardou de mim não fazia jus ao sentimento arrasador que nutria por ele. Só um
afago, um mínimo toque, um...
Um relinchar alto. Atordoada, revirei o rosto e me deparei com o enorme cavalo negro de
Shakur passando como um raio por mim e indo em direção ao corpo desacordado de Richard.
O animal estava nervoso. Shakur o impelia a isso. O cavalo empinou nas patas traseiras. O
que aquele líder de negro ia fazer? Ele ia pisoteá-lo? Shakur ia acabar de matá-lo?
— NÃO! — Ouvi um berro, mas não foi o meu porque minha voz entrou em estado de
choque e simplesmente travou na garganta. O cavalo negro bufou ainda no ar e Shakur
conseguiu contê-lo a tempo de evitar outra morte. Quando suas patas dianteiras tocaram o
chão, passaram de raspão pelas costas ensanguentadas de Richard. — Ora, ora... Quanto
tempo! Vejo que seu gênio continua indomável, caro líder!
Shakur não respondeu, permanecendo indecifrável por detrás de sua máscara negra. Vi
quando seus olhos azuis se estreitaram e correram furtivamente de mim para Richard e depois
tornaram a encarar Napoleon. O homem de branco fez um sinal com a cabeça e dois de seus
homens vieram em minha direção. Eles tinham a fisionomia assustada enquanto prendiam as
minhas mãos com cordas e me levavam até o cavalo ao lado do seu líder.
— Esse resgatador é um homem condenado e agora está sob os desígnios do Grande
Conselho — retrucou Napoleon. — Entendo que você queira vingar a morte de Collin, seu filho,
mas Richard de Thron foi condenado ao Vértice e pagará com a pena máxima de Zyrk.
— Isso é ridículo! — trovejou Shakur, balançando as rédeas do seu animal de um lado
para o outro. — Há centenas de anos não empregamos tal penalidade e vocês não podem me
tirar esse direito. Richard traiu Thron e cabe apenas a mim penalizá-lo.
— São ordens do Conselho! — bradou Napoleon. De perto, sua figura era ainda mais
magra que imaginei e veias arroxeadas saltavam em sua pele sem viço. — A híbrida ficará sob
meus cuidados durante todo o percurso até Sânsalun — determinou enquanto puxava as
rédeas do seu cavalo com força exagerada.
— São oito luas até Sânsalun! — reclamou Kevin. — É muito tempo.
— A viagem será concluída na metade do tempo — rebateu Napoleon.
— Então teremos que viajar à noite! — afirmou Ben preocupado.
— Eu não disse que todos concluirão a viagem, resgatador — Napoleon deixou escapar
um sorriso irônico.
Os homens entreolharam-se, evidenciando faces sem cor em semblantes repletos de
vincos. As palavras nas entrelinhas de Napoleon... Muitos deles morreriam durante esse
trajeto até Sânsalun? Era isso?
— Os governantes precisam ser avisados sobre o julgamento! — Kevin se adiantou.
— Já enviamos mensageiros aos três clãs — Napoleon alargou o sorriso torto. —
Obrigado por me poupar um mensageiro, Shakur.
— De nada — rebateu o líder de Thron, encarando-o com sua postura altiva e
assustadora de sempre. — É sempre um prazer estar à frente dos demais. Na verdade, sinto
grande pesar — soltou uma risadinha sarcástica —, em saber que estou à frente inclusive de
incompetentes que integram o quadro atual do Grande Conselho.
Fato: os dois travavam uma discussão particular.
— Shakur ficará em um animal à minha frente para que eu possa vigiá-lo! — Napoleon
fechou a cara e comandou: — Amarrem os resgatadores principais e os prendam aos seus
cavalos. Os demais farão a viagem a pé.
— Pouparíamos energia se deixássemos o resgatador principal de Thron aí mesmo, caro
mestre — comentou um soldado de branco. — Nos poupará tempo e trabalho também. Ele
não sobreviverá à viagem de qualquer forma.
Senti um misto de pavor e angústia com aquelas palavras. Richard não podia morrer. Ele
tinha de aguentar e sobreviver. Ele sempre foi tão forte, resistente à dor, destemido e tão
cheio de vida que a ideia de perdê-lo parecia algo impossível, intangível, como se ele fosse um
super-herói, um imortal. Mas ele não era. E, em questão de dias, horas talvez, ele poderia não
mais existir. Estremeci quando uma voz interior começou a me preparar para o pior.
— Eu sei — Napoleon finalmente parou para estudar o corpo destroçado de Richard. —
Mas o crime deste resgatador foi sério demais para ter uma partida tão simples assim. Ele
servirá de exemplo e deverá ter uma punição à altura de seus erros. Além do mais, Sertolin,
nosso líder, não quer que deixemos ninguém para trás.
— Como preferir, senhor. — O subalterno repuxou os lábios e tornou a se posicionar
atrás de Napoleon.
— Prendam todos! — tornou a ordenar Napoleon e os soldados de branco acataram,
mas, em vez de virem em nossa direção com armas em punho, começaram a rodar os braços
no ar como vaqueiros girando cordas para laçar um animal. Comprimi os olhos quando uma
súbita ventania avançou sobre o meu rosto. Vários redemoinhos de energia surgiram no ar,
faiscantes e perigosos, e uma grande teia de eletricidade foi sendo tecida bem diante de
nossos olhos. Então entendi o que estava acontecendo ali afinal de contas: Magia! Era por
isso que ninguém contestou a ordem dada por Napoleon: ele tinha poderes sobrenaturais e
não vinha acompanhado de um exército comum, mas sim de um batalhão de magos
disfarçados em trajes de soldados brancos.
— Não! — berrou Ben, avançando com seu animal para proteger Shakur quando
Napoleon moveu suas mãos em direção ao líder de preto. Num passe de mágica, seu cavalo
tombou, desacordado, enquanto o corpo do pobre coitado era suspenso no ar. Ele se
contorcia com violência, como se estivesse em convulsão. Ben queria berrar, mas voz alguma
era emitida de sua boca e apenas um filete de sangue surgiu em seu lugar. Seu rosto foi
tomado pela cor roxa e seus olhos começaram a ficar estranhos, ausentes. Céus! Napoleon o
estava matando!
— Pare com isso! Não irei resistir — trovejou Shakur, apontando o dedo para Napoleon.
— Liberte o infeliz, Napoleon!
Detectei o olhar frio do bruxo ficando hesitante. Em seguida Napoleon diminuiu o
movimento de seu braço, abriu um sorriso mordaz e Ben caiu desacordado aos pés do líder de
Thron, que apenas soltou um suspiro rouco, abaixou a cabeça e deixou os ombros tombarem,
em sinal de sua própria rendição.
— Como conseguiram as pedras malditas? Onde elas estão? — indagou subitamente
Napoleon.
Kevin fez uma cara cínica, Shakur não se mexeu e os resgatadores de ambos os grupos
permaneceram em um silêncio perturbador. Por que Napoleon não utilizava sua poderosa
magia para detectar onde as pedras-bloqueio estavam? Por que ninguém ali falava a
verdade? Por que não delataram a víbora do Kevin? Encarei Kevin que olhou rapidamente
para mim e notei um discreto trepidar de suas pupilas. Tive uma vontade louca de gritar e dizer
que as malditas pedras estavam ali, com ele. Assim aquele crápula também seria condenado
ao Vértice e eu me veria livre de sua cara asquerosa para sempre. Mas algo dentro de mim
sinalizava para ficar quieta como todos os demais.
— Se algum de vocês souber sobre o paradeiro destas malditas pedras-bloqueio é
melhor que fale agora ou também será considerado cúmplice na fuga da híbrida. É meu último
aviso — ameaçou sombrio Napoleon, desconfiado com o suspeito silêncio. — Muito bem.
Vocês pediram.

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