segunda-feira, 30 de abril de 2018

CAPÍTULO 3

CAPÍTULO 3
Todos os homens tiveram que remover suas armas e abandonar seus animais. Visto de
longe, parecíamos um grupamento de escravos marchando como num cortejo fúnebre. Uma
procissão dentro de um silêncio perturbador pelas planícies decadentes de Zyrk. Todos
pareciam saber que se tratava de uma marcha da morte para a morte. Uma parte dos
soldados de branco ia abrindo caminho. O meu animal fora amarrado ao de Napoleon e
cavalgávamos lado a lado. Ficando sempre atrás do cavalo de Shakur, o mago girava sua
cabeça com frequência de mim para Shakur, estudando-nos com enervante interesse.
Dois outros grupos de soldados de branco vinham atrás de nós. Um deles ficava em uma
estratégica posição intermediária, dando cobertura a Napoleon enquanto vigiavam Kevin e
Richard, ambos amarrados em seus animais. O corpo exangue e sem vida de Richard vinha
tombado sobre um cavalo malhado, que, incomodado, remexia-se com frequência, fazendo o
pescoço de Richard ganhar ângulos cada vez mais retorcidos. Sentia meu corpo enrijecer por
inteiro nas vezes em que, ainda inconsciente, eu o escutava soltar gemidos de dor. Não
poderia cometer novamente a idiotice de demonstrar meu interesse por Rick. Eu o tornara
vulnerável e foi por me amar demais que ele estava ali, naquele estado. Por ter optado me
poupar e decidido entregar suas armas ao crápula do Kevin. Agora era a minha vez de
retribuir. Mas como o livrar daquela gente e ajudá-lo? Minha mente rodava dentro de um
furacão de possibilidades e ideias. Mas uma certeza me fazia permanecer mais forte do que
nunca: eu não podia perdê-lo. Eu não ia perdê-lo! Algo em mim dizia que Rick ia aguentar. Ou
seria apenas desespero e negação?
Precisava ter muito cuidado com minhas reações, principalmente sabendo que Kevin
estava ali. Nas poucas vezes em que girei a cabeça sobre os ombros fingindo me ajeitar sobre
o cavalo e alongar o pescoço quando, na verdade, desejava checar o estado de Rick, dava de
cara com os olhos de serpente de Kevin me observando com intensidade. O maldito fazia
questão de me provocar olhando de Richard para mim e abrindo um discreto sorriso de triunfo.
No entanto, eu podia captar que as coisas também não estavam boas para o seu lado.
Algumas vezes eu o observei de rabo de olho e detectei tensão em seu rosto louro ofídico.
Atrás de nós marchava uma comprida fila de homens amarrados em sequência em uma
grande corda. Depois de horas caminhando por lugares áridos e escarpados, eles começaram
a reclamar de fome, sede e cansaço, mas o segundo grupo de soldados que vinha em seu
encalço não lhes dava atenção e, impiedosamente, forçava-nos a imprimir um ritmo ainda mais
forte. Dentro do torturante silêncio da expectativa, a viagem permanecia tensa. Napoleon não
permitiu nenhuma parada e nossa escassa alimentação foi baseada em tâmaras e ameixas
distribuídas por dois soldados de branco. A água era racionada e fornecida apenas para o
seleto grupo de pessoas montadas. Não reconheci o caminho que Napoleon e seus homens
tomaram, e supus que devíamos estar cavalgando nas áreas neutras da terceira dimensão.
Não passamos nas proximidades da Floresta Fria, do Pântano Negro ou de nenhum dos reinos
que conheci. A atmosfera cinza de Zyrk ficava cada vez mais pesada, tingida de chumbo, e os
únicos sinais de vida presente, como pequenas aves, riachos e vegetações rasteiras, foram
ficando para trás e dando lugar a uma trilha desértica e fria. Eu não precisava olhar para o céu
para saber a hora do dia. Bastava verificar o semblante de preocupação nas faces dos
homens de Shakur e Kevin. O grande terror de todos os zirquinianos apareceria em breve: as
bestas da noite de Zyrk! Jamais me esqueceria das faces de pavor de Max e seus homens em
nossa corrida desesperada para Storm.
Fisgadas de inquietude e ansiedade começaram a me incomodar. O céu ganhava
pinceladas de um azul enegrecido e mortal. Vasculhei ao redor e não encontrei lugar algum
onde pudéssemos passar a noite. O exército branco continuava em sua marcha firme e
constante, alheio ao pânico em ascensão. Reclamações dos homens presos atrás de nós
romperam a mordaça do silêncio. Bramidos por clemência e xingamentos eram seguidos de
berros de desespero, agonia e dor. Dor?
Virei a cabeça para trás e detectei o pequeno tumulto. A agitação entre os presos estava
sendo contida com severidade pelos soldados de branco. Encarei Kevin, que desviou o olhar
de mim, mas poderia jurar que suas pupilas estavam completamente verticais agora, evidência
do perigo iminente. Napoleon e seus homens permaneciam indiferentes ao pavor que se
alastrava pelo grupo. Apesar de estar de costas para mim, também não detectei qualquer sinal
de preocupação de Shakur. O líder de preto não levantou a cabeça para analisar o céu ou fez
qualquer movimento de cabeça ou corpo durante toda a viagem. O estranho homem parecia
estar em um tipo de transe ou algo parecido, pois sua postura ereta confirmava que ele não
estava dormindo. Tornei a olhar para o céu que agora já era completamente cinza escuro.
Tremi.
Mas que droga! Eles não iam se esconder? Eles não pretendiam fugir? Que loucura era
aquela?
— Armar acampamento — ordenou Napoleon repentinamente para seus comandados.
Ali? A céu aberto?!
Sem conseguir abrandar minha respiração, só deu tempo de piscar algumas vezes e
então, sem mais nem menos, a noite caiu. Um negrume tão absoluto que eu não era capaz de
enxergar um palmo à minha frente. Esmagando as cordas que me aprisionavam, minhas mãos
desataram a suar e meu coração começou a bater forte no peito. Aquela taquicardia não era
bem-vinda. Podia pressentir algo ruim se aproximando. Droga! Droga! Droga! O que aqueles
magos sádicos estavam planejando agora? Uma carnificina? Os cavalos começaram a
relinchar, nervosos. O meu animal desatou a balançar a cabeça de um lado para o outro e
arrastava as patas no chão.
— Ôoooo! — pedi, tentando camuflar a tensão em minha voz. Parecia ridículo tentar
acalmá-lo quando meu pulso já havia atingido uma velocidade assustadora.
O murmurinho de vozes começou a se avolumar e, em questão de segundos, o chão
começou a tremer. Ah, não! Eu já havia passado por aquilo antes para saber que não se
tratava de um terremoto... Não precisava fechar os olhos para tentar segurar a onda de pavor
que me tomava. Já estava cega dentro daquela macabra escuridão. Desesperada em me
soltar, desatei a morder as cordas e cheguei a ferir meus pulsos com os dentes.
— Nós vamos morrer! — ouvi o berro que estava guardado em minha garganta vir lá de
trás, provavelmente de um dos homens presos.
— Calado! — Foi a primeira advertência bramida no breu absoluto. Ela conseguia a
façanha de ser, ao mesmo tempo, serena e ameaçadora.
A segunda advertência viria em seguida e seria ainda mais esmagadora: o ganido de um
animal.
Ah, não! Ia acontecer!
— Vocês são loucos! As feras vão nos dilacerar nesse descampado! — insistiu a voz
apavorada.
— Cale-se! — Foi a mesma resposta.
— Merda! Seremos todos mort... Argh!!! — O berro de dor aconteceu ao mesmo tempo
em que um clarão ofuscante explodiu no lugar, como se centenas de lâmpadas fluorescentes
tivessem sido acesas ao mesmo tempo. Mal tive tempo de contrair os olhos devido à súbita
claridade porque o horror da cena seguinte conseguiu fazer meus olhos pularem das órbitas.
Foi tudo tão rápido que tive apenas um centésimo de segundo para ver o homem que
reclamava ser contorcido e arremessado no ar e, em seguida, uma chuva de sangue jorrar
sobre nossas cabeças juntamente com partes dilaceradas do seu corpo. Elas só não nos
atingiram porque, subitamente, estávamos sob a proteção de um campo energético invisível,
uma gigantesca bolha de sabão mágica. Reencontrei minha respiração.
— O aviso foi dado! Não ousem nos desafiar — bradou Napoleon para o grupo
assustado.
— Não era para não deixarem ninguém para trás? — A pergunta sarcástica de Shakur
fez Napoleon cerrar os punhos. À nossa frente, o líder de negro parecia um boneco de cera e
permanecia sem mover um músculo sequer.
— Sertolin autorizou agirmos com firmeza em caso de insubordinação — retrucou o
mago.
Uma risadinha baixa foi a resposta de Shakur. Desafiar Napoleon diante do que acabara
de acontecer? Tinha de admitir: ele era realmente um homem petulante.
— Diminuam a força! Quero chegar com sobra de energia a Sânsalun! — ordenou
Napoleon para seu grupo e as mágicas luzes fluorescentes diminuíram sua intensidade.
Claro! Era por isso que o exército de branco estava tão calmo! Eles sabiam o tempo
todo que estávamos protegidos. Eles apenas ainda não haviam “acendido” suas luzes porque a
claridade do sol os fazia poupar energia.
— Não adianta, híbrida. — O mago me pegou forçando a visão, querendo ver além
daquela bolha de magia onde estávamos aprisionados. Olhei de soslaio para ele e me deparei
com outro sorriso irônico em sua face repleta de pregas. — Não conseguirá enxergar o que
está do lado de fora do grande domo a não ser que permitamos. E o que está do lado de fora
também não é capaz de nos ver.
— A não ser que você resolva expulsar alguém — enfrentei-o com sarcasmo. Ele fechou
a cara.
— Forneçam água aos animais e os deixem descansar. Serão celas individuais para a
híbrida, Shakur, Richard e Kevin! Os demais prisioneiros ficarão em uma grade única!
Os homens de branco removeram nossos animais e retiraram as cordas que nos
amarravam.
— Argh! — urrei quando tentei dar um passo à frente e senti mais do que uma pancada
no nariz. Acabara de receber um choque elétrico! Meus músculos contraíram e, em defesa,
puxaram meu corpo para trás. Agora entendia porque ninguém havia se movimentado. Era
essa a explicação da mansidão generalizada: havia uma barreira invisível e eletrificada
envolvendo cada um de nós. Kevin soltou uma risada alta com o meu gemido, Richard
continuava desacordado e retorcido sobre o próprio corpo, Shakur permanecia indiferente a
tudo que acontecia ao seu redor, imóvel e em pé. Os demais homens foram levados dali.
Provavelmente conduzidos para a tal grade única que Napoleon mencionara, mas não consegui
enxergar mais nada porque um grande campo magnético azul-claro em forma de nuvem surgiu
bem no meio do caminho. Era o local onde os magos foram descansar após uma espécie de
oração, um cântico monótono e repetitivo. Apenas dois deles ficaram de vigília do lado de fora
da nuvem. A claridade foi cedendo e dando espaço a uma discreta penumbra.
Sentei-me no chão e me obriguei a respirar. Precisava de oxigênio para conseguir
raciocinar. Pense, Nina! Pense! Quatro. Apenas esse número pipocava em minha cabeça,
como um pisca-pisca defeituoso e chamativo. O vi de todas as maneiras, tamanhos e cores.
Quatro luas até chegarmos a esse tal de Sânsalun. Ou melhor, apenas essa noite e mais três
dias, pela contagem do Napoleon. Precisava me concentrar. Necessitava urgentemente de um
plano para sair dali, mas era inundada a cada instante com pensamentos que faziam meu
coração comprimir dentro do peito. Mesmo que conseguisse uma forma de fugir daquela
gente, como eu ia viver sabendo que deixei Richard para trás depois de tudo o que ele havia
feito por mim? Mas também tinha certeza de que, mesmo se ele estivesse em boas
condições, jamais me ajudaria no plano que estava determinada a seguir e que não abriria mão
em hipótese alguma: buscar minha mãe. Dane-se Zyrk! Dane-se segunda dimensão! Dane-se
tudo! Quando todos desistiram de mim, quando eu mesma pouca importância dei à minha
existência, foi ela quem nunca duvidou. A única pessoa que morreu dia após dia durante
dezessete anos para me manter viva precisava de mim e eu nunca mais a decepcionaria. Eu ia
salvá-la, assim como ela fez comigo. Pouco importava a minha vida agora ou a de Richard. Era
nela que eu tinha de focar. Apenas nela.
Estava sentada e com a cabeça espremida entre as mãos quando ouvi um estrondo alto,
como se uma ventania raivosa tentasse abrir passagem por uma trinca na cápsula que nos
envolvia. Uma discreta claridade se insinuou. Era exatamente isso o que estava acontecendo:
uma rachadura surgira naquele domo de bruxaria e a silhueta de uma pessoa surgira no meu
campo de visão. Os homens de vigília deram o alerta e a nuvem de energia azul-clara se
dissipou num piscar de olhos. Napoleon desatou a correr em direção à pessoa que se
aproximava. Atrás dele, seus homens mais próximos permaneciam de mãos dadas, como se
unindo forças para um ataque iminente. As luzes tornaram a acender.
— Bom serviço, Napoleon — adiantou-se um senhor bem idoso e baixinho, de barba
branca e óculos fundo de garrafa que surgia pela trinca. Logo atrás dele ainda consegui
identificar o ganido interrompido de uma besta assim que a bolha de magia voltou ao seu
estado anterior e a rachadura desapareceu.
— Milorde?! O que aconteceu? O senhor está bem? — indagou Napoleon visivelmente
atordoado. Ao longe detectei a tal grade onde colocaram os homens de Kevin e Shakur:
provavelmente uma cela elétrica idêntica à que eu me encontrava só que com proporções bem
maiores.
— Perfeitamente bem — respondeu o pequeno senhor.
— Então... O que o traz aqui?! — Havia evidente preocupação e respeito no tom de voz
afetado de Napoleon. Sua postura submissa confirmava minha suspeita: aquele pequenino
senhor era o chefe do Grande Conselho. — Tenho tudo sob controle e estávamos a caminho
de casa.
— Achei que minha presença aqui seria mais útil do que ficar em Sânsalun aguardando.
— Por que não nos comunicou que viria ao nosso encontro? — Napoleon tentava
camuflar seu evidente desconforto com a atitude do líder. — Nós o teríamos aguardado,
milorde.
— Eu sei, meu caro. Foram tantas as decisões repentinas que acabei me esquecendo.
Tinha ciência de que, como sempre, a sua parte seria feita com perfeição — bajulou-o e vi o
peito magro de Napoleon estufar de satisfação. — Onde está Braham?
— Deve estar a caminho, Sertolin.
Sertolin fechou os olhos por um instante e, sem transparecer qualquer tipo de emoção,
comunicou:
— Os primeiros convocados acabam de chegar.
— Como assim? Ainda é noite, meu senhor, e...
— Ordenei que viessem, caro Napoleon. O tempo urge e decidi deixar tudo resolvido
antes mesmo de chegarmos a Sânsalun.
— Mas, Sertolin, nós...
A bolha de magia começou a estalar. Era possível detectar alguns clarões, pequenos
curtos-circuitos aumentando de tamanho em suas margens.
— Não façam resistência! Deixem-os passar pelo campo! — ordenou o líder do Grande
Conselho para os homens de branco que obedeceram imediatamente. — Seja bem-vindo, caro
Leônidas! — adiantou-se Sertolin para o senhor gordo e com visível dificuldade de respirar que
entrava amparado por uma figura sinistra. Encapuzado da cabeça aos pés por um tecido
branco brilhoso, apenas parte do rosto do acompanhante estava descoberto, evidenciando
uma face morbidamente pálida e olhos brancos como leite. Se não fosse por um discreto
trepidar, suas pupilas finas como um fio de cabelo teriam passado despercebidas.
— Só os líderes! A minha ordem não foi clara? — ralhou Napoleon para o soldado de
olhos arregalados que acompanhava os dois. — Por que trouxe Von der Hess também?
Claro! Aquele era Von der Hess!
— Se eu não viesse junto, meu líder não suportaria ficar sob a presença da magia do
Grande Conselho, caro Napoleon. Você sabe que ela é forte consumidora de energia e a
saúde de Leônidas inspira cuidados. — A voz de Von der Hess era surpreendentemente suave,
quase feminina.
Napoleon estreitou os olhos, furioso. Von der Hess não perdeu tempo e, com um sorriso
presunçoso, acrescentou:
— Acredito estar lhes fazendo um favor. Não sei se um motim em Marmon neste tenso
momento de Zyrk seria interessante para vocês administrarem, algo com que perdessem
tempo e energia...
— Uma jogada de mestre, Hess. Vejo que finalmente conseguiu uma forma de participar
de uma reunião do Conselho — disse o velho Sertolin para o mago.
O sorriso de Von der Hess se modificou para um triunfante.
— A paciência é uma qualidade que venho desenvolvendo com os anos, Mon Senhor.
— Isso é bom... — retrucou com a voz modificada o líder do Grande Conselho enquanto
roçava a barba branca.
Novo crepitar na bolha e Kaller surgia acompanhado de outro soldado de branco.
— Seja bem-vindo, Kaller — saudou Sertolin para o líder de Storm.
— Curioso ter chegado antes de Wangor visto que Storm é bem mais distante que
Windston — comentou um mago atrás de Napoleon.
— Wangor é um velho e eu não estava em Storm — rebateu Kaller.
— Claro que você não estava em Storm... — Sertolin repetiu as palavras de Kaller,
parecendo estudar cada um dos presentes, como um experiente jogador que avaliava todas as
cartas na mão, todas as possibilidades antes da próxima rodada.
— Deseja começar a reunião agora, milorde? — indagou outro homem de branco. —
Pode ser que Wangor demore a chegar.
— Pode ser — respondeu o idoso senhor, tornando a observar com deliberada calma
cada um dos presentes e, ao se virar para mim, declarar em alto e bom som: — Quem diria
que, além de tudo, a híbrida seria uma procriadora tão bonita! Deve estar complicando as
coisas para os nossos resgatadores, não?
Sertolin começou a caminhar em minha direção, mas, de repente, ele paralisou no lugar
com os olhos arregalados e a expressão modificada quando, pela primeira vez desde a sua
chegada, ele prestava atenção à figura de Shakur.
— Você...?! — a voz do pequenino senhor saiu sem força. Ele parecia refrear a todo
custo alguma emoção que o tomava.
— Mon Senhor — Com a postura altiva, Shakur fez um discreto movimento com a
cabeça. Fiquei chocada com a forma educada com a qual Shakur o tratou. Sua voz estava,
surpreendentemente, impregnada de respeito.
Caramba! Aquele Sertolin devia ser muito poderoso mesmo porque até o temido Shakur
o respeitava.
Sertolin observou Shakur por um longo tempo em silêncio, suspirou profundamente e,
pensativo, dirigiu-se para uma posição mais central ao escutar outro ruído alto. Uma nova
tempestade elétrica e uma rajada de vento varreram o ambiente por uma fração de segundo.
No instante seguinte um soldado de branco surgiu segurando o braço de Wangor.
— Trouxe quem faltava! — bradou o sujeito de vasta cabeleira preta com alguns fios
brancos presos em uma tiara de ouro.
— Braham! — soltaram em uníssono os magos presentes que até então permaneciam
calados.
O homem sorriu de volta e soltou o braço do meu avô.
— Vovô! — gritei.
— Nina?! Você está bem? — perguntou ele com preocupação, mas não tentou vir em
minha direção.
Eu assenti com a cabeça e ele abriu um sorriso triste.
— Parabéns mais uma vez, Braham. Conseguir convencer Wangor não é para qualquer
um. Suas habilidades vêm me surpreendendo positivamente.
— Obrigado, magnânimo — respondeu o tal do Braham. Na casa dos trinta anos de
idade, ele era o mais jovem entre os magos.
De repente a fisionomia tranquila de Sertolin foi substituída por uma tensa. Ele franziu a
testa e começou a andar em círculos. Parecia agoniado com alguma coisa.
— Tudo bem, senhor? — indagou Napoleon.
— Tudo. Vamos aos assuntos que interessam. Diga os tópicos, Ferfil. — Sertolin
parecia ter pressa agora.
Um senhor de branco com cara de espantalho e nariz pontiagudo roçou a garganta:
— Primeiro tópico: o Grande Conselho determinou que a híbrida permanecerá sob seus
cuidados até que seja estabelecida a sua nova data de partida.
— Não! — rugiu meu avô. — Por favor, Sertolin, ela é minha neta. — Ele implorava
agora. — Eu lhe rogo, deixe-a ficar comigo. Ao menos até o dia da sua partida.
— Sinto muito — respondeu o senhor de barba branca, desviando o olhar. — Eu lhe
concederia este pedido se as pedras-bloqueio estivessem em nosso poder. — E, encarando
cada um dos líderes com olhos de águia, acrescentou: — Mas, como pressinto que alguma
informação importante está sendo ocultada, não posso arriscar.
— Mas, Sertolin, eu lhe prometo...
— Shhh — alertou Sertolin, fechando os olhos e balançando a cabeça em negativa. Meu
avô se encolheu, assim como meu coração. Quanto tempo ficaria em poder deles? —
Continue, Ferfil.
— Segundo tópico: o Grande Conselho condena ao Vértice, em caráter irrevogável e sob
a pena de execução simples, John de Storm, seu principal resgatador.
— Vocês não podem fazer isso! — Foi a vez de escutar o bramido de Kaller.
— John foi considerado cúmplice na fuga da híbrida — esclareceu Napoleon. — Ele está
foragido, mas receberá sua pena assim que o encontrarmos.
— Não há provas! — rebateu Kaller em tom desesperado. Tive pena dele. Mesmo
magoado com o filho, ele o defendia a todo custo. — Magnânimo Sertolin, não faça essa
injustiça. Estão cometendo um enorme equívoco. John foi influenciado pela híbrida. Ele não
traiu as normas do Grande Conselho.
— Trytarus viu John com a híbrida na Floresta Fria, Kaller. Eles estavam acompanhados
de Tom — respondeu o velho líder. — Viu mais alguém, mas não conseguiu identificar.
— Quem garante que as visões são perfeitas naquele local amaldiçoado? — Kaller
tentava convencê-lo do contrário.
— O imprestável do John não me ajudou em nada! — interrompi a conversa dos dois.
Tinha que inventar uma desculpa rápida que pudesse ajudar John. — Ele só queria se
aproveitar de mim, como todos vocês, seus zirquinianos nojentos!
Deu certo! Todos os rostos se viraram para mim.
— Eu entrei naquela floresta por conta própria, porque estava fugindo — continuei. —
Alguns dos seus tentaram me seguir, mas não foram corajosos o suficiente para enfrentá-la.
— Quase me convenceu — retrucou Von der Hess soltando uma risada abafada. — Só
faltaram as lágrimas humanas para o arremate final.
— Não se meta aonde não é chamado! — rebati.
— Não ouse duvidar da palavra da minha neta! — mentindo descaradamente e, para a
surpresa de todos, em especial de Kaller, Wangor saiu em defesa de John. — John de Storm
não ajudou Nina em momento algum. Foi tão incompetente quanto todos os meus homens! Tão
estúpidos que permitiram que uma simples garota lhes passasse a perna e conseguisse fugir
de Windston.
Von der Hess soltou outra gargalhada sinistra e seu capuz branco escorregou, deixando à
mostra boa parte do rosto horripilante. Muito mais do que ser pálido e com as córneas
completamente brancas, sua aparência meio homem, meio mulher se acentuava pela ausência
total de pelos. Ele era calvo, sem barba, sobrancelhas ou cílios.
— Deixe-a falar! — bradou Kaller. — A híbrida já está com seu futuro determinado. Não
tem nada a ganhar em nos contar a verdade!
— Verdade? — Von der Hess ridicularizava sob o exame minucioso de todos. — Ela é
uma híbrida! Preciso relembrá-los de que ela é uma bruxa com poderes obscuros?
— Bruxo é você, sua cobra albina! Quem me garante que não era você ou alguns de seus
homens atrás de mim lá na Floresta Fria? — desafiei-o feroz. — Quem nos garante que não
usou de algum tipo de bruxaria para incriminar John?
— Tão tola! E por que eu faria isso? — indagou tentando parecer indiferente. Entendi o
porquê de suas pupilas permanecerem sempre no seu estado vertical: desta forma Von der
Hess não estaria sujeito a ter suas emoções facilmente identificadas. Ele não poderia esperar,
no entanto, que eu detectaria um denunciador tremor em seu maxilar antes que ele tornasse a
cobrir o rosto com a manta branca.
Lancei-lhe um sorriso desafiador. Ele estreitou os olhos e se inclinou em minha direção.
— Calem-se! — determinou Sertolin. — Todos sabem que as visões de Trytarus nunca
falharam.
— Mas... — Kaller insistia.
— Cale-se — advertiu o velho líder com o tom de voz inalterado. — Prossiga, Ferfil.
— Terceiro tópico: o Grande Conselho condena ao Vértice em caráter irrevogável, e sob
a pena de execução máxima, Richard de Thron, seu principal resgatador. Como seus atos
ultrapassaram todas as penas de execução proclamadas por essa dimensão, foi determinado
que o mesmo será dado em sacrifício a Malazar assim que chegarmos a Sânsalun.
Mas... Malazar era Satanás!
Ah, não! Ainda que Rick sobrevivesse, dentro de quatro luas ele seria dado como
oferenda ao demônio!

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