sexta-feira, 8 de junho de 2018

CAPÍTULO 38 - Nãi fuja

CAPÍTULO 38
— Meu Deus! Olhe! Ela está acordando, enfermeira! — Aquela voz espevitada parecia
pertencer a um sonho distante...
Melly?!
— Fique de olho nela. Vou chamar a doutora.
Tentei me mexer, mas meu corpo parecia feito de chumbo. Tudo que consegui foi abrir os
olhos.
— Finalmente, esquisita! — As sardas de Melly entravam em foco e me saudavam.
— Melly?! Eu estou viva? — indaguei num misto de surpresa e atordoamento. Fiz uma
rápida varredura ao redor. O ambiente gelado e branco, os bips de uma máquina ligada ao
lado da minha cabeça e os fios saindo de diversas partes do meu corpo confirmavam se tratar
de um quarto de hospital.
— V-Você se lembra de mim? — ela gaguejou, os olhos brilhantes atrás das lágrimas.
Ela parecia ainda mais ruiva do que me recordava.
— Claro! Que eu me lembre, não tinha outra amiga tão impossível quanto você —
brinquei para disfarçar a emoção que me tomava.
— Ah, Nina! — Melly me abraçou com força e júbilo.
— Ai! — senti uma fisgada no braço esquerdo. Ela havia repuxado uma sonda ao se
debruçar sobre mim.
— Desculpe! É que eu estou tão...
— Eu também — consegui segurar sua mão e sorri.
— Graças a Deus! Todos tinham receio de que perderia a memória depois de tanto
tempo e... — Melly estava emotiva.
— Há quanto tempo estou aqui?
— Acho que era para a médica ter essa conversa com você e... — ela se esquivou.
— Quanto tempo, Melly? — insisti. Precisava entender até onde ia aquela farsa.
— Mais de três meses. Desde o acidente no teatro — ela remexia os dedos sem parar,
visivelmente desconfortável por tocar no assunto. — Você se lembra?
— Mais ou menos — menti.
Como eu estaria há tanto tempo ali se havia passado os últimos dois meses refém de
zirquinianos? Não podia lhe contar a fantástica história porque na certa ela acharia que minha
razão havia sido seriamente comprometida. Ao mesmo tempo, eu não podia ser forçada a
apagar de minha mente a fase mais vibrante da minha vida ou aceitar que tivesse sido apenas
uma alucinação. Respirei fundo.
— Não precisa ficar assim. Eu sei que minha mãe morreu, Melly. Eu me recordo.
— Ah, Nina! Eu sinto muito mesmo por isso. Tenho colocado flores no túmulo da Dona
Stela.
Um nó se formou em minha garganta e segurei a lágrima ao me recordar do lugar
próximo às Dunas de Vento onde de fato estava enterrado o corpo de minha mãe.
— Eles me chamaram hoje aqui porque disseram que pretendiam retirá-la do coma
induzido e... — Melly se encolheu.
— Coma?
— Sim.
— Você esteve comigo nas outras vezes, Melly? — Minha ansiedade e interrogatório
cresciam de mãos dadas com meus batimentos cardíacos. — Você me viu?
— Perdi as contas do número de vezes que vim te visitar, mas eles só me deixavam ver
você através daquele vidro embaçado da unidade de tratamento intensivo. Diziam que seu
caso era muito grave e que eu não podia atestar que era amiga da família etc. Papai disse
nunca ter visto um hospital com tanta burocracia! Pensou até em abrir um processo para
remover você daqui, mas aí, há duas semanas, recebemos uma ligação que você havia saído
do CTI e que já poderia receber visitas no quarto.
— Então, enquanto eu estava no CTI, você nunca me viu pra valer?
— Eu vi sim! — Melly retrucou, repuxou os lábios, e acabou confessando o que seria o
bálsamo para a minha lógica em frangalhos: — Quer dizer, mais ou menos. Você ficava no
boxe mais distante e estava sempre coberta, mas eu vi seus cabelos e...
Tive de segurar o sorriso que ameaçou escapar, no alívio em saber que não havia
delirado e, ao mesmo tempo, na surpresa em ver que algum zirquiniano aprendera a arte do
disfarce com a minha mãe. Melly achou ter me visto, mas eles a tinham enganado colocando
alguém ou algum manequim com os cabelos semelhantes ao meu no lugar. Eles sabiam que eu
não tinha família e que ninguém procuraria por mim, a não ser algum amigo ou repórter atrás
de matérias sensacionalistas na época do acidente.
— Tenho tanta fofoca pra te contar, amiga. Sabe quem a pescoçuda da Clarice está
namorando? — Melly mudou o rumo da conversa, apimentando-a como sempre, e, pra variar,
respondeu sem me dar chances de qualquer palpite: — O Phil! — soltou com a voz
esganiçada. — Você sabia que o Phil sofreu um acidente de carro terrível? Ops! Foi mal! É
claro que não! Você estava aqui... — soltou sem graça. Mordi os lábios e segurei a
gargalhada. Melly continuava a mesma figura ímpar, sem nunca me deixar responder e falando
sempre por nós duas. — Só pode ter sido por isso! O coitado deve ter batido muito forte com
a cabeça para querer namorar aquela mocreia orelhuda. — E continuava emendando uma
frase na outra. — Ele quase morreu. O negócio foi sério, sabe? Você precisa ver a cara
inchada dele nas fotos do anuário do colégio. Parecia uma tartaruga com caxumba! —
gargalhou. — Fiquei arrasada por você não estar na foto da turma, amiga.
— Eu também — disse com uma pontada de tristeza. Teria sido muito bom guardar uma
recordação de algo normal do meu passado. Uma recordação de Melly e todos os demais
colegas. Não consegui segurar a pergunta que me alfinetava: — Só eu não participei das
fotos?
— Só — ela soltou com seu usual jeito displicente.
— Aqueles alunos novos também participaram?
— Ah, é! Já faz tanto tempo que quase me esqueci deles — disparou com a voz
esganiçada. — Puf! Sumiram da noite para o dia!
— Sério?
— Sinto muito pelo seu anjo louro, amiga.
Coitada! Melly ainda achava que eu continuava interessada no asqueroso do Kevin.
— Não houve nada entre nós — balancei a cabeça com nojo.
Ela sorriu, aliviada.
— Sabe, acho que ninguém acabou prestando muita atenção na saída deles. O mundo
estava passando por uma época tão bizarra! — Virei a cabeça e vi que ela encarava a
televisão.
— Que época? — perguntei sem entender sua expressão de incredulidade.
— A época em que “a morte tirou férias” — fez uma cara dramática.
— Hã? — Gelei dos pés à cabeça com aquele comentário.
— Agora que as coisas retornaram ao normal eu... — Melly hesitou e olhou para as
próprias mãos. — Tive medo que você também...
— Eu também o quê?
— Morreria — confessou. — Durante o tempo em que você estava hospitalizada, o
mundo ficou muito estranho, sabe?
— Estranho como? Quer ser mais clara, Melly?
— As pessoas pararam de morrer, Nina! A mortalidade caiu vertiginosamente por quase
dois meses em todos os lugares do planeta — ela soltou a notícia bombástica e começou a
assentir com ênfase ao ver meus olhos dobrar de tamanho. — Parece que fui eu quem bateu
com a cabeça agora, né? Mas é sério, amiga. As pessoas simplesmente não morriam. Não
havia hospitais suficientes para comportar os feridos de guerras, acidentes e doentes de todos
os tipos. Foi o caos, Nina. Achei que seria o fim do mundo.
“O equilíbrio da segunda dimensão nas mãos dos resgatadores da terceira dimensão...”
Céus! Os resgatadores devem ter deixado de “trabalhar” por causa da grande confusão
que eu havia causado em Zyrk! Estremeci ao recordar das explicações de Richard sobre a
função da morte em manter o equilíbrio da Terra. Meu corpo encolheu num misto de saudade
e ódio quando a imagem de seu rosto perfeito e atormentado surgiu em minha mente. Afundei
no lugar, inquieta, ao imaginar o que haveria acontecido com Zyrk e seus habitantes a partir do
dia do confronto com Malazar. Minha mente estava acelerada demais. Como eu havia
sobrevivido e chegado até ali?
— Mas agora as funerárias e cemitérios estão trabalhando em dobro para compensar as
férias prolongadas — Melly soltou uma risadinha e se empertigou no lugar com a entrada da
médica no aposento.
— Bom dia, Nina!
Meu coração deu um salto. Eu reconhecia aquela voz que surgia atrás de mim. Tentei me
virar, mas nenhum músculo respondeu.
— Infelizmente terá que se despedir de sua amiga. O horário de visita acabou — explicou
a voz atrás de mim.
— Sem problema. — Melly apertou a minha mão e me deu um beijo rápido antes de jogar
a mochila nas costas e sair a passos rápidos. — Volto amanhã com mais novidades, amiga.
Ainda tonta com tudo, acompanhei seus movimentos até o momento em que ouvi a
médica se despedir dela e fechar a porta atrás de si. Quando a delicada senhora de coque
grisalho atrás do jaleco branco apareceu no meu campo de visão, quase surtei de felicidade.
— Leila!
— Olá, querida! — Ela segurou minhas mãos com vontade. — Eu sabia que conseguiria!
Eu sempre acreditei!
— Mas, e-eu não entendo... Como vim parar aqui? — Minha mente rodopiava em um
furacão de ideias e hipóteses absurdas, desesperada por entender a coerência entre causa e
efeito dos conturbados fatos. Eu precisava da verdade. — O que aconteceu com Zyrk?
— Shhh! Acalme-se. Vou lhe dar todas as explicações, mas deverei ser breve. Hospital é
um lugar com grande fluxo de zirquinianos e não posso ser vista por nenhum deles — fez um
leve afago em meu rosto. — Graças a Tyron, Zyrk e seus habitantes sobreviveram à lenda!
— Seus habitantes...? — balancei a cabeça com pesar ao me recordar de todas as
mortes. — Tantos morreram por minha causa. Tom, Shakur, Samantha, John e...
— Samantha está bem e John sobreviveu! — ela me interrompeu com um sorriso. — Foi
por pouco, mas Labrítia conseguiu salvá-lo. Por sinal, ele está ótimo. Fez as pazes com o pai
e voltou a ser o principal resgatador de Storm! Soube que ele e Samantha voltaram a ser os
bons amigos da infância e que estão inseparáveis desde então.
— Graças a Deus! — senti uma descarga de felicidade e alívio jorrar em minhas veias.
Ao menos para eles a vida voltara ao normal. — E Wangor?
— Seu avô está bem, melhor do que nunca. E é o único que sabe que você está viva,
filha.
— Como assim?!
— Todos os zirquinianos acreditam que você está morta, Nina — ela soltou um suspiro e
fez sinal para que eu me acalmasse. — Eu vou explicar: Zyrk sobreviveu, mas está em
reestruturação. Marmon foi o único clã eliminado por causa daquele abismo. Era uma
comunicação com o Vértice que Von der Hess mantinha em segredo. Mas Von der Hess
desapareceu — acrescentou com semblante preocupado. — Simplesmente sumiu em meio à
terrível batalha na catacumba! Alguns comentam que ele foi tragado pelos mensageiros
interplanos quando o sol surgiu, mas ninguém tem certeza — deu de ombros. — Os demais
clãs ganharam voz no Grande Conselho. As sombras estão passando por apurados processos
de seleção e, aos poucos, estão sendo aceitas nos exércitos dos clãs. Muitas delas estão se
unindo e formando comunidades independentes na periferia dos reinos. Agora isso é possível.
Graças a você, querida.
— A mim?
— Sim. Agora não existem mais bestas terríveis habitando as nossas noites. Graças a
você meu povo começa a se reerguer. Vai demorar muito até chegarmos ao estágio de
evolução tecnológica e emocional da segunda dimensão, mas demos um passo importante.
Tyron finalmente se compadeceu de nós e muitos vislumbram bons sentimentos em evolução
na minha espécie. — Ela abriu um sorriso amistoso. — Mais do que ninguém, eu sei que isso é
verdade e acredito que um dia seremos um povo melhor. O milagre da vida e do amor não é
construído da noite para o dia, Nina. Ganhamos uma nova oportunidade, mas, ainda assim,
esse reerguer deverá ser conquistado com ações diárias e muita dedicação. E isso consumirá
tempo, quiçá, centenas de anos. Minha raça ainda tem muito chão pela frente e manter você
viva seria um erro colossal, um risco que não poderíamos correr no momento único em que
Zyrk se encontrava.
Ela segurou minhas mãos e olhou bem dentro dos meus olhos.
— Nina, se você “sobrevivesse” — destacou a palavra —, Zyrk ainda estaria em guerra.
Meu povo permaneceria em um conflito infindável enquanto você existisse, lutando entre si por
possuir você e seus poderes de híbrida. Lembre-se de que você ainda pode abrir Chawmin e
de que existem muitos exemplares vis em minha espécie. Assim, fazê-los acreditar que você
estava morta era, sem sombra de dúvida, a única solução para tentar mantê-la viva. Mas era
uma tentativa, uma aposta. Não sabíamos se você conseguiria sobreviver. Seu cérebro ficou
mais tempo sem oxigênio que o permitido para a espécie humana — ela arqueou as
sobrancelhas grisalhas. — Rick deve ter entrado em desespero por causa disso, mas ele se
esqueceu de um detalhe fundamental: você é uma híbrida!
Meu coração acelerou no peito ao escutar seu nome e, instintivamente, levei a mão à
ferida que Richard me causou. Apesar de tudo, ela era a menor delas e, ainda assim,
queimava-me por dentro. O que haveria acontecido com ele? Teria se transformado no
governante absoluto de Zyrk? As perguntas dançavam em minha boca, aprisionadas pela onda
de orgulho e dor.
— Rododentrum porticum — ela acelerou em explicar ao perceber a angústia refletida
em meus olhos. — O punhal que Richard a feriu estava propositalmente embebido com uma
toxina refinada a partir do néctar dessa planta rara que só é encontrada em uma região
próxima ao Mar Negro.
— “Propositalmente”? — Minha pulsação reagiu dando um pulo de imediato e, sem
perceber como, meu corpo readquiria força. Sentei-me na cama num rompante.
— Essa toxina faz o pulso desaparecer por algum tempo e assim forja uma paralisia
aparentemente mortal, o suficiente para enganar qualquer médico humano.
— Enganar até a morte?
— Não. Mas aí entra a magia... E um pouco de estudo — piscou orgulhosa. — O
Rododentrum em associação com o extrato da Malis Vetis, uma erva que só existe no Vértice,
consegue enganar até o faro certeiro da morte. Richard entrou em contato comigo na época
em que você estava em Storm. Foi dele a ideia espetacular, minha querida. Ele veio me
perguntar se havia alguma forma de fingirmos sua morte. Eu lhe expliquei que para conseguir a
Malis Vetis ele teria que...
— Vender a alma a Malazar — completei arrasada, começando a unir os pontos e
compreender os fatos.
— Sim, se ele quisesse conseguir essa erva que só existe no Vértice. Ninguém sai vivo
do inferno se não vender a alma ao diabo, filha — ela assentiu com um semblante sombrio. —
Ele saiu transtornado do nosso encontro, mas igualmente decidido. Foi ao Vértice e fez aquele
pacto com o demônio. Esqueceu-se, entretanto, de que é praxe o demônio dar uma pedrabloqueio
como atestado da negociação e aí teve outra ideia no caminho de volta. Richard
decidiu não usar a erva. Ele se recordava que Guimlel tinha uma pedra semelhante àquela e
então compreendeu que o mago já estivera no Vértice e fizera um pacto com o demônio em
algum momento em sua vida. — Leila mirou a janela e seus olhos vagaram em algum lugar
distante, bem além das nuvens quase transparentes no céu azul. — Uma fábula zirquiniana
antiga dizia que, se colidirmos duas pedras-bloqueio, elas fazem a pessoa passar
imperceptível dos nossos para sempre.
— E não a permitiria retornar a Zyrk — acrescentei num murmúrio.
— Exato.
Engoli em seco.
— As coisas podiam ter sido diferentes, mas não me arrependo de não ter colidido
aquelas pedras, Leila. Se eu tivesse feito conforme Rick pediu, jamais teria reencontrado
minha mãe, conhecido Shakur e compreendido a razão da minha existência.
— Eu sei, filha. No final das contas, foi o melhor que poderia ter acontecido a Zyrk — ela
assentiu com semblante pesaroso. — Mas as pedras acabaram se perdendo e vocês foram
presos pelos homens do Grande Conselho. A única opção voltara a ser o plano anterior, mas
Richard estava sem coragem de ir adiante e fincar aquele punhal em você. Labrítia disse que
Rick estava arrasado quando foi lhe entregar o Escaravelho de Hao que Shakur havia
conseguido capturar. Ela disse que Richard ainda tentava arrumar um meio de salvar você. Ele
acreditava que, se Zyrk fosse eliminada, ele conseguiria mantê-la viva se a enviasse de volta
para a segunda dimensão. Só te esfaqueou porque não encontrou outra saída, minha querida.
— Foi tudo um blefe, então?! — questionei com o coração quicando e ameaçando sair
pela boca.
Ela assentiu.
— Como os meus não são capazes de conjecturar, no instante em que não capturaram
sua energia vital, eles imediatamente a deram como morta. Entretanto, um detalhe no nosso
plano era fundamental: a Malis Vetis não podia ficar muito tempo no seu organismo porque
diminuiria a oxigenação cerebral a níveis perigosos. E infelizmente foi o que aconteceu —
soltou o ar com força. — O plano consistia em Richard mostrar para todos que ele estava se
livrando da híbrida ao jogar seu corpo para a segunda dimensão através do portal pentagonal,
mas, em meio à comemoração da vitória sobre Malazar, ele demorou mais que o imaginado
para se livrar da presença dos nossos. Muitos deles queriam checar de perto se você estava
mesmo morta — ela franziu a testa com pesar. — Quando eu e meus homens a capturamos,
nós administramos o antídoto, mas não foi o suficiente. A toxina tinha ficado tempo demais no
seu organismo e a conduzido ao coma. Tivemos que trazê-la para cá, onde está escondida
desde então.
— Então... Ele nunca quis me matar...
— Nunca — acelerada, ela me interrompeu. Suas mãos tremiam e remexia o coque a
todo instante. Estava atipicamente tensa em me dar aquela informação. — Ele não admitia a
hipótese de machucá-la, muito menos de matá-la. Mas tinha que partir dele. Todos, inclusive
os magos do Grande Conselho, desconfiavam das estranhas atitudes de Richard e do
sentimento que ele nutria por você. Sem contar que ainda existiam os malditos Escaravelhos
de Hao para complicar a situação, caso Von der Hess conseguisse entrar na mente de
Richard. O bruxo não poderia desconfiar que a morte da híbrida tinha sido uma grande farsa.
Ele precisava sentir o momento, presenciar a expressão de dor e decepção na sua face
quando ele a ferisse. Richard, por sua vez, jamais poderia lhe contar a verdade, e a única
pessoa que sabia disso além de mim era Brita. — Ela franziu a testa, taciturna, e abaixou a
cabeça. Encontrei mais que tensão em seu semblante. Havia dor e tristeza. Estremeci. — Era
amor o que ele nutria por você. Nunca duvide disso, Nina.
— Era? — Uma pedra de gelo derretia no meu estômago. Por que Leila colocou o verbo
no tempo passado? Finquei as unhas no lençol, mas a sensação era a de que caía em queda
vertiginosa.
— Nós o perdemos. Meu menino rebelde de coração grande... — Seus soluços
amargurados pareciam ferroadas e tudo em mim ardia por dentro. — Sua energia foi
aniquilada naquele dia.
— Richard... M-morreu?!
Ela assentiu sem levantar a cabeça.
— Wangor, seu avô, foi o último a vê-lo. Ele disse que Richard estava muito ferido,
desorientado, e se arrastava para as Dunas de Vento carregando o corpo de Shakur nos
braços quando foi interceptado por Kevin e seus homens clamando por vingança. Eles
discutiram, mas Rick nem tentou se defender. Deixou-se matar ali mesmo.
Richard morto.
— Morto... — meu sussurro foi um gemido sem força, triste, um pranto de despedida
transformado em pó e silêncio.
Achei que ia trincar, partir em milhares de pedaços e definitivamente me desintegrar no
ar, mas, ao contrário, senti-me infinita naquele instante. Eu tinha ido ao fundo do abismo, havia
mergulhado mais fundo na escuridão que qualquer adolescente, rompido barreiras
interdimensionais, sobrevivido a traições, lendas, perdas e ao maior de todos os carmas: a
minha própria existência. Agora era a hora de acreditar nos meus atos, no milagre de um novo
dia, do reabrir de olhos, do constante poder de transformar uma vida estilhaçada em um
legado de esperança e renovação, o que somos, segundo por segundo, pedaço por pedaço.
— Wangor levou o corpo de Rick para ser embalsamado em Windston.
— Windston? — questionei ainda mais desorientada. — Mas meu avô o odiava.
— Isso foi antes dele ter acesso aos fatos. Brita teve que lhe contar tudo porque seu
avô, assim como a neta — frisou a última palavra —, quando coloca alguma coisa na cabeça
não há quem remova. Ele ameaçou mandar homens atrás do seu corpo, Nina. Também queria
embalsamá-la com honras zirquinianas e isso seria um tremendo perigo ao nosso plano —
explicou. — Wangor pediu para lhe dizer que estava errado quanto ao caráter de Richard, que
passou a admirar sua bravura e que, se Rick estivesse vivo, consentiria de bom grado o seu
relacionamento com o antigo resgatador de Thron.
Aturdida demais com a notícia, fechei os olhos e levei as mãos ao rosto, mas estranhei
ao não encontrar lágrimas ou dor dentro de mim. Uma emoção nova e entorpecente me invadia
subitamente, um misto de gratidão, admiração e amor em sua forma mais pura. Novamente
Richard fizera tudo por mim. Minha morte dera sua vida para me manter viva. Eu poderia viver
mil anos e ainda assim não teria como retribuir o sentimento avassalador com que fui inundada.
Regozijei internamente, repleta de orgulho. Eu amei um bravo. Richard era um guerreiro e,
como deveria esperar, sua declaração de amor foi feita através de atos e não de palavras.
— Wangor sente muito pela atitude de Dale, seu pai biológico, mas diz que isso não
alterou o bom sentimento que nutre por você, filha. Enviou-lhe um pedido: enquanto viver, ele
gostaria de encontrá-la todo dia treze de maio do calendário humano, que, segundo ele, foi o
dia em que você o acordou, o dia em que ele renasceu. Wangor disse que gostaria de fazer
parte das boas recordações da sua vida, assim como você já é da existência dele.
— Não serei mais caçada a partir de agora?
— Tenho minhas dúvidas, apesar do momento de calmaria em Zyrk — Leila fechou os
olhos e balançou a cabeça em negativa. — Terá que ficar sempre atenta. Deverá utilizar-se de
sua capacidade receptiva para...
— Fugir — concluí, repentinamente compreendendo o que ela queria dizer: eu havia
sobrevivido, mas isso não significava que poderia me deparar com zirquinianos pelo caminho.
Permaneceria condenada a uma existência solitária, minha antiga vida de fugitiva...
Adeus faculdade ou sonhos de uma vida normal. Adeus, Melly.
— Recuperei alguns pertences seus e de sua mãe que estavam no antigo apartamento,
como álbuns de fotos, roupas e joias. É arriscado demais retornar a ele. Já tenho tudo
acertado: nova identidade, passaporte, dinheiro para recomeçar uma vida decente, mas terá
que se virar por conta própria a partir de então. — Sua expressão estava taciturna.
— Isso é uma despedida, não é?
— Provavelmente, meu amor — a voz de Leila ficou rouca. — Qualquer encontro não é
seguro para nenhuma de nós duas.
— Entendo — balbuciei. Jamais permitiria colocar a vida da Leila em risco também.
— Assim como não é seguro permanecer muito tempo em um mesmo lugar, minha
querida — finalizou.
Fechei os olhos e sorri com sarcasmo.
Naquele quesito eu era mestre.

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