sábado, 2 de junho de 2018

CAPÍTULO 32 - nao fuja

CAPÍTULO 32
Eu me virei e minhas pernas cambalearam de pavor. O animal monstruoso crescia para
cima de Richard que, arfando muito, arrastava o corpo ferido de Shakur para trás da mesma
pilastra onde John estava. O rastro de sangue fez meu corpo gelar da cabeça aos pés. Não
era só Shakur quem estava em péssimas condições. Rick também fora alvejado! Uma ferida
horrível avançava do ombro esquerdo indo até a metade de seu tórax. Ainda assim, ele era
absurdamente destemido e, com o punhal em mãos, enfrentava a fera ao se colocar na frente
dos corpos decrépitos dos dois zirquinianos. Meu guerreiro era rápido e se desviou das
diversas investidas da besta, mas em um movimento repentino o demônio fincou as garras em
sua panturrilha, prendendo-o ao chão. Richard se contorceu de dor e urrou alto. O animal
soltou um ganido vitorioso, empertigou-se nas patas traseiras e tomou novo impulso. Era o fim.
Ele ia matá-lo. Não! Não! Não!
— NÃO! — esbravejei ao longe e, tentando chamar a atenção da fera, desci o
amontoado de rochas resplandecentes correndo em disparada.
— Nina?! Volte! — Richard trovejou apavorado e, ainda preso pela garra do animal,
começou a socar a perna da besta com violência. Enfurecido, o monstro desatou a arrastar o
corpo já sem resistência de Rick de um lado para o outro.
Deus! Eu não conseguiria chegar a tempo!
Então o inesperado aconteceu. Num movimento preciso, Samantha colocava-se entre a
besta e Richard e fincava o punhal na fera, transpassando seu bico de baixo para cima. Os
olhos nevados da besta se estreitaram, ela guinchou de dor momentânea e soltou Richard,
mas conseguiu se recuperar de forma rápida e assustadora, avançando impiedosamente sobre
a loura. Samantha correu, mas a besta deu um salto, bicando-a por trás. Uma mancha de
sangue cresceu rapidamente nas costas da guerreira enquanto ela caía desacordada no chão.
Instantaneamente a fera cresceu em meu campo de visão. Ela se aproximava de um jeito
hesitante enquanto eu tentava me afastar no mesmo ritmo e nós realizávamos uma dança
sincronizada: o ballet do horror. A besta se abaixou, ficando perigosamente próxima a mim.
Com o coração ameaçando saltar pela boca, eu a enfrentei. O monstruoso animal estancou
bem à minha frente e pude constatar a névoa branca dentro de seus gigantescos olhos, quase
do tamanho do meu crânio inteiro. Pelo canto do olho vi Richard mancando e se aproximando.
Ciente da presença dele, a fera soltou um ganido de advertência e girou a cabeça em sua
direção. Mesmo sendo cega, suas feições exibiam satisfação ao presenciar a terrível cena em
andamento. Seria ela capaz de captar nossas emoções? Por mais que eu acenasse para ele
ficar onde estava, Richard não me dava atenção e, de maneira insana, aproximava-se ainda
mais. O monstro não reagia frente aos nossos movimentos. Sua estranha reação me afligia.
Richard estendeu a mão e nossos dedos se tocaram... por uma fração menor que um
segundo.
Novo ataque.
A besta avançou sobre Rick, arrancando suas mãos das minhas e batendo o bico
fechado em seu abdome. Richard se contorceu de dor e arfou com força. A fera soltou um
ruído estranho, como se regozijasse da situação, e parecia testar a força do último guerreiro
que a enfrentava naquela arena da morte. Sem perder tempo, ela bicou a perna ferida do
adversário. Rick urrou alto e, desequilibrando-se, acabou caindo. O animal aproveitou o
momento para imobilizá-lo com as garras afiadas. Rick ainda o socava com seu restante de
forças, mas o bicho, com ar triunfante, mal se importava com suas pancadas. Meu sangue
congelou quando a besta sacudiu a cabeça deformada, soltou um ganido vitorioso e levou o
pescoço para trás, em um típico movimento de impulsão. Rick fechou os olhos e suspirou.
Ele estava se rendendo?!
Não. Não. Não!
— Nãoooo! — berrei.
Sem que eu desse por mim, corria como uma louca e voava por entre o monstro e
Richard, cobrindo o corpo dele com o meu. Com a boca seca e o coração batendo
alucinadamente dentro do peito, encarei a fera e levantei um dos braços, aguardando o golpe
derradeiro. Todo o calor do meu corpo convergiu para a palma da minha mão e uma força
estranha e poderosa expandiu-se por minha mente e espírito.
Ciente de que fazia a coisa certa, olhei para Richard uma última vez. Sua fisionomia não
era apenas de atordoamento. Havia algo diferente nela, pulsante. Suas pedras azuis-turquesa
faiscavam em um mar de emoção, camufladas dentro de um véu de água cristalina. Vi meu
reflexo dentro delas, e me deparei com o impossível, o milagre que daria sentido a toda minha
sofrida jornada: lágrimas!
Richard tinha lágrimas nos olhos. E não eram lágrimas de dor!
Ele chorava.
O zirquiniano que eu amava chorava de emoção. Por mim. Por nós.
Sem conseguir conter a avalanche de sensações maravilhosas que me invadia a alma,
meus lábios se abriram num sorriso de entrega. Ele retribuiu meu sorriso de um jeito único.
Uma maneira que dispensava palavras. Não haveria em nenhuma das quatro dimensões frases
que pudessem expressar a força do sentimento que nos unia naquele instante mágico.
O maior uivo de fúria reverberou pela catacumba, como se mil trovões explodissem ao
mesmo tempo. O chão tremeu com violência, o ar ficou pesado e a noite ainda mais escura.
Ensandecida, a fera ganiu com estrondo colossal e atacou para matar.
Joguei minhas mãos em defesa e fechei os olhos.
Senti um discreto roçar nas palmas das minhas mãos e escutei um uivo altíssimo.
Desorientada, reabri os olhos e me surpreendi. A fera tinha a expressão de dor e,
contorcendo-se, esfregava o rosto no chão. Abaixo de mim, Richard tinha os olhos
arregalados, as pupilas completamente verticais e encarava minhas mãos em estado
catatônico. Tornei a olhar ao nosso redor e, mesmo dentro da penumbra, consegui identificar o
cintilar vermelho vivo do sangue que escorria em abundância na pele do animal. Feridas por
queimaduras!
A besta havia sido atingida por brasas incandescentes? As marcas tinham... o formato
de dedos?!
Céus! Eu havia feito aquilo?!
Por um momento, jurei ter escutado berros emocionados romperem a membrana de
silêncio que envolvia a catacumba. O monstro parou de uivar e, recuperando-se da dor, tornou
a se aproximar. A aura triunfante havia dado lugar a uma expressão receosa. Suas narinas se
dilataram ao máximo e ele me estudava com interesse assassino. Sem sair do lugar, eu o
enfrentei com determinação. O animal abriu o bico e ganiu com fúria, empertigando-se nas
duas patas traseiras e dobrando de tamanho. Sua estratégia: intimidação antes do ataque
inesperado! Fugindo do confronto com as minhas mãos, ele rodopiou sua cauda no ar e a
lançou em minha direção. Defendi-me mais uma vez e ele ganiu de dor quando sua pele entrou
em contato com a minha. Desta vez pude ver com detalhes: todo o meu corpo se transformara
em uma potente arma e sua couraça de escamas parecia se derreter ao mínimo contato com
qualquer ponto da minha pele!
Malazar não podia me ferir!
Sorri ao compreender que seu gemido estrondoso não era apenas de dor, mas sim de
desespero.
Ele não conseguiria me matar e sabia que a derrota era certa!
— Tyron maldito! Você vai pagar caro por isso! — O demônio esbravejou e o som fez
Zyrk estremecer. Sua voz era uma mistura de um ganido titânico e berros de cólera de um
milhão de pessoas. O trepidar foi tão violento que novas trincas surgiram no chão e pedras
brilhantes rolaram montanha abaixo. — Não é só você que tem seus truques, papai! Eu vou
sair desta catacumba e chegar à segunda dimensão! Nem que para isso eu tenha que destruir
tudo que estiver em meu caminho!
Então a fera abriu o bico desproporcional e uma forte rajada de luz clareou o lugar
quando os milhares de Umbris foram cuspidos lá de dentro.
— Von der Hess! — chamou Malazar.
Um zumbido alto tomou conta do lugar, como se um gigantesco enxame de abelhas
viesse em nossa direção. A terra tremeu ainda mais e uma fumaça escura começou a sair
pelas trincas do chão.
— Porra! Porra! Porra! Vamos para o portal agora, Nina! — Richard atropelava as
palavras em meio aos berros enquanto me puxava de qualquer maneira para longe dali.
— Sua perna! — Meu estômago embrulhou ao ver o osso quebrado em sua panturrilha
completamente exposta. Sua perna estava ferida em diversos pontos e sangrava muito.
— Eu aguento! Rápido!
— O que está havendo? — Engoli em seco ao sentir que sua voz estava diferente.
Richard estava realmente apavorado.
— Você tem que sair daqui, Nina! E tem que ser agora!
Richard me assombrava com sua força sobre-humana. Franzindo o cenho para suportar a
dor e mancado muito, ele ainda assim conseguiu imprimir um bom ritmo na nossa marcha em
direção ao portal. Quando estávamos na base da montanha escutei um estrondo seguido de
outros ainda mais altos e uma gargalhada satânica reverberou pelo meu crânio e espírito.
Ruídos altíssimos de vidro sendo estilhaçado. Novas gargalhadas. Gritos de fúria e dor.
Bramidos. Tilintar de espadas. Relinchar de cavalos.
— Por Tyron! Oh, não! — Richard gemeu de pavor.
Eu me virei e compreendi, minhas pernas se transformaram em chumbo e eu afundei no
lugar.
Era o fim.

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