sábado, 9 de junho de 2018

CAPÍTULO 39 – 13 de maio - 4 anos depois - NAO FUJA

CAPÍTULO 39 – 13 de maio - 4 anos depois
— Bem-vinda à Holanda, Grace Andrews! — saudou-me pela segunda vez o fiscal da
barreira alfandegária após carimbar meu passaporte, trazendo-me de volta à terra. Agradeci
com um sorriso mais amarelo que a minha camiseta. Quatro anos se passaram e ainda não
me acostumara com aquele novo nome. Pior. Havia uma bola de tênis agarrada na boca do
meu estômago desde que soubera onde seria nosso encontro daquele ano.
Por que, dentre tantos lugares no mundo, meu avô decidira me encontrar logo ali?
Se meu coração já bombeava mais sangue que o normal devido à data mais aguardada
no ano, estremecia da cabeça aos pés com a incrível coincidência.
Se fosse apenas uma coincidência...
Há aproximadamente quatro anos, foi ali, em Amsterdã, onde tudo começou.
E acabou.
E recomeçou.
Amsterdã presenciou o fim daquela outra vida, o fim daquela Nina inocente e imatura. E
agora assistia ao ressurgimento de outra pessoa, determinada e resiliente.
— Praça Dam, por favor — pedi ao motorista do táxi.
Fazia calor e, presa num costumeiro engarrafamento da cidade, vi a multidão de ciclistas
cortando o nosso carro sem a menor cerimônia. Por um momento me arrependi de não ter
alugado uma bicicleta e feito o mesmo. Seria fácil com a única bagagem de mão: minha
mochila surrada. Mas meus nervos tinham vontade própria e me ordenavam a estar em
condições decentes e não fedendo a suor quando abraçasse Wangor, meu único parente vivo
e, fora Melly, a única pessoa que se importava comigo no mundo. Tentando controlar a
ansiedade a todo custo, abri a janela do carro e respirei fundo. Deixei o sol acariciar meu rosto
e aquecer minha pele e espírito congelados. O motorista não reclamou. Pelo contrário,
pareceu satisfeito em desligar o ar-condicionado do veículo e remover o casaco. Quando me
deparei com seus braços musculosos e lotados de tatuagens foi quase impossível não
compará-las às cicatrizes de Richard. Fechei os olhos por um momento e suspirei,
compreendendo o quanto eu havia ficado parecida com a pessoa que, a despeito de toda
força contrária, eu ainda amava. A diferença é que as minhas marcas eram internas, difíceis
de curar, disfarçáveis. Tatuadas na alma.
Meu celular tocou.
— Ainda faltam dez dias, Melly! — comecei ao reconhecer o número. — Estarei aí no dia
do seu aniversário. Prometo.
— Corrigindo: faltam apenas nove dias e vinte e duas horas! Não sei onde estava com a
cabeça para ter arrumado uma cigana ingrata como minha melhor amiga! — bufou ela do outro
lado da linha.
— Quem mais te aguentaria?
— Minha memória não está das melhores e esqueci a lista em casa — ela riu. — Onde
você está agora?
— Amsterdã.
— Pensei ter dito que ficaria em Versalhes.
— Pediram para que eu ciceroneasse um cliente aqui.
— Esse emprego de guia turístico que você arrumou é um horror! Estão explorando sua
boa vontade! Não para em lugar algum!
— Prefiro assim. Não saberia viver de maneira diferente, Melly.
— Eu sei. — Silêncio por um instante. De repente, soltou espevitada: — Sabe o que
encontrei num celular antigo? — e acrescentou antes que eu respondesse: — Uma foto da
nossa turma onde você estava! Foi uma que dona Nancy bateu sem querer com o meu celular!
Estava todo mundo lá, inclusive aqueles alunos de passagem meteórica pelo colégio.
Meu pulso deu um salto e me esqueci de como respirar. Era tudo que eu mais queria na
vida: uma recordação de Richard.
— T-Todos eles? — gaguejei.
— Sim... Hum... Mais ou menos.
— Como assim?
— Você acredita que os quatro estavam com as cabeças abaixadas? Inacreditável, né?
Mas estavam lá sim.
Nova apunhalada no peito. Recordei-me instantaneamente da única foto que possuía com
minha mãe e Ismael, aquela que Stela guardara como um tesouro entre as suas coisas. Ela
havia se transformado em um papel em branco, apagado pela bruxaria maldita de Von der
Hess. Não haveria nenhum registro da existência deles em minha vida.
— Nina?
Não consegui responder com a onda de desgosto que me invadia, entrando de rompante
por minha garganta adentro.
— Nina, tudo bem com você? — Melly percebeu minha reação.
— Tudo.
— Estou com saudades, amiga.
— Eu também — murmurei e tratei de melhorar meu ânimo. — Tenho novidades para lhe
contar.
— Rá! Novidades?! Cinco minutos vão sobrar se você resolver me contar tudo o que lhe
aconteceu nos últimos dois meses! — sua gargalhada foi subitamente interrompida. — Peraí!
Não acredito! Tá pegando alguém? É o Brat? Finalmente deu uma chance para o coitado?
— Não, Melly! Quantas vezes já lhe disse que o Brat é apenas um bom colega de
trabalho?
— Só porque você quer. O cara tá caidão na sua.
— Trinnnn! Fim de assunto.
— Você é um caso sem solução, Nina Scott! — reclamou. — Tem que aproveitar
enquanto ainda é gata. Depois a pele murcha e...
Encolhi de tristeza ao escutar meu verdadeiro nome. Minha melhor amiga não sabia que
Nina Scott havia morrido e dado lugar à Grace Andrews.
— Acabou, mamãe? — interrompi antes que ela resolvesse me dar seus conselhos
intermináveis e ultra sem pé nem cabeça.
— Desperdício... — escutei seu resmungar baixinho, mas acatou meu pedido. — Vê se
chega antes, tá? As aulas acabam na sexta-feira.
— Uau! Dra. Melanie Baylor! Minha melhor amiga será uma advogada!
— Pra te livrar da garra desses patrões escravocratas!
Foi a minha vez de gargalhar alto. Eu amava Melly do fundo do meu coração. Só ela
conseguia a façanha de me deixar leve daquele jeito.
— Chegamos — avisou o motorista.
— Vou ter que desligar.
— Êpa! Que voz máscula é essa aí?
— Melly, você vive no cio!
— Talvez — escutei sua risadinha ao fundo. — Tchau.
— Até, amiga!
Quando dei por mim, fui surpreendida por novo jorro de emoção. Minha vida havia se
transformado, eu não era mais a Nina e, ainda assim, naquele piscar de olhos, os quatro anos
de luto e recordações se desintegraram diante de mim. Tudo parecia ter voltado no tempo e
acontecido no dia anterior. Olhei pela janela da Mercedes prata e um show de malabarismos
com facas, semelhante ao que eu havia presenciado no dia onde tudo começou, desenrolavase
bem à minha frente. Engoli em seco, paguei e saí do carro com o coração trepidando como
uma britadeira enlouquecida dentro do peito. Virei o rosto e acelerei as passadas, sem
coragem de assistir ao espetáculo em andamento. Senti-me covarde ao perceber que ainda
não conseguia encarar meu passado e caminhei em direção oposta. Olhei ao redor, conferi as
horas e estranhei. Como nos anos anteriores, Wangor já deveria estar me aguardando com
seu largo sorriso no rosto. O programado seria ele me encontrar na parte da manhã para
podermos passar mais tempo juntos e, por questões de segurança, meu avô retornaria a Zyrk
ainda no mesmo dia. Chequei mais uma vez as redondezas, mas nada.
E esperei.
Esperei.
Já passava do meio-dia e as horas começavam a exterminar meus nervos. Comecei a
imaginar possíveis respostas para aquele atraso. Seria mesmo a Praça Dam a que ele havia
se referido? Teria acontecido algum problema de última hora e não teve como enviar Zymir,
o único a quem confiara seu esquema, para me avisar? E a possibilidade que me
atormentava: Teria acontecido algo sério com ele?
A tarde veio ao meu encontro carregando o sentimento de desesperança em seus
braços: nem sinal de Wangor! Logo anoiteceria e eu não poderia mais ficar ali. As instáveis
horas por vezes pareciam voar como centésimos de segundos, noutras arrastavam-se como
séculos. Minhas mãos suavam de aflição, meu estômago se contraía em agonia pela espera
interminável. Sem saber o que fazer para controlar meu crescente nervosismo, resolvi andar a
esmo pela Praça Dam. Checando cada pessoa que surgia, caminhei de um lado para o outro,
fazendo repetitivos círculos ao redor dos amontoados de pessoas.
O tempo passava e, com ele, minhas últimas gotas de otimismo eram cruelmente
aniquiladas. O sol se inclinava no horizonte e o número de pessoas caía rapidamente. Em
poucos minutos teria que ir embora e levar novo peso na mochila: decepção. Um sopro gelado
atingiu minha nuca e meu corpo arrepiou por inteiro. Instintivamente meus olhos se arregalaram
e eu me virei, na expectativa de que o calafrio fosse a anunciação da chegada de meu avô.
Ou de algum zirquiniano!
Apesar de Leila me alertar para a perigosa presença dos zirquinianos, ainda não entendia
o porquê de ter me deparado com muito poucos deles desde que retornara da terceira
dimensão. Teria perdido minha capacidade receptiva ou era “a morte” que passava longe de
mim desde então? Obrigava-me a pensar de maneira otimista. Uma delgada capa de fé
afirmava que agora eu trilhava um caminho de luz, de vida.
Olhei ao redor e me encolhi com a real constatação: nuvens negras no céu! O vento frio
era sinal de uma tempestade a caminho, e não de algum zirquiniano por perto. Saquei meu
casaco da mochila e, segurando a dor em meu peito a todo custo, aguardei mais um pouco.
Com exceção do show de facas que continuava a arrancar gritos de delírio da pequena roda
de espectadores, as pessoas se dispersavam rapidamente e a praça, assim como a minha
esperança, tornara-se um vazio.
Respirei fundo e tomei uma decisão: se ia seguir em frente, ao menos eu teria de
enfrentar meus fantasmas do passado. Com as passadas incertas e as mãos trêmulas,
caminhei até a parte de fora da única roda de pessoas. Você consegue, Nina! Abri caminho
por entre o pequeno amontoado de gente e me aproximei do artista em exibição.
Zooomp! Zooomp! O gemido surdo do ar sendo apunhalado. Fragmentado. Zooomp! O
artista de rua em uma assustadora exibição com facas voadoras. Seu olhar concentrado
ficando estranho, aéreo talvez.
Aquela situação estava mesmo acontecendo? De novo?!
As cintilantes facas se movimentando com incrível rapidez. O homem se aproximando de
mim. Zooomp! As lâminas afiadas se chocando, produzindo hipnóticas faíscas e gritos de
delírio. O exibicionista se aproximando mais ainda. Novo arrepio frio e meu coração deu um
salto mortal dentro do peito.
Céus! Não podia ser...
A atmosfera cinza, o inebriante tilintar e brilho das facas, o burburinho de excitação das
pessoas e... meu cérebro processando as imagens com enorme dificuldade. As letais facas
cada vez mais perto. O calafrio ficando ainda mais intenso. Meu estado de transe subitamente
interrompido pela crescente excitação, pelo meu coração bombeando sangue demais. O
calafrio aumentando vertiginosamente. Após quatro anos de abstinência, era a primeira vez
que eu o experimentava com tamanha intensidade e meu corpo reagia com desejo arrasador,
vibrando em antecipação ao que aconteceria em seguida. Fechei os olhos e, instintivamente,
lancei-me ao chão. Mas a voz grave que esperava ardentemente ouvir simplesmente não
apareceu. Aquela que me salvaria do punhal que em seguida se desprenderia das mãos do
artista de rua e que passaria de raspão pelo meu pescoço fora substituída por aplausos e
gritos eufóricos.
Aturdida demais para me levantar, reabri os olhos. Os animados espectadores mal
notaram minha estranha reação. Voltei a mim e novamente senti o gosto azedo da decepção
arder na boca. Os arrepios continuavam a queimar minha pele e então entendi: eu havia
sonhado acordada! Transformara o vento gelado no calafrio que tanto ansiava tornar a
experimentar, naquele que fervia de prazer cada célula do meu corpo. Desesperada em reviver
um mínimo momento com Rick, minha mente se utilizara de um truque ardiloso. Ela sabia que
seu rosto perfeito começava a ser apagado de minhas lembranças. Em breve, não apenas
Richard, mas as pessoas que deram suas vidas por mim, Zyrk e toda a minha história
fantástica se transformariam em uma miragem distante, um amontoado de fantasmas de um
passado que se transformariam em pó e seriam levados pelo vento que carrega o tempo e a
vida.
Fiquei ali, imóvel, sentindo o vento e as gotas da chuva atingir o meu rosto febril e
disfarçar as lágrimas que rolavam por minha face e fé arruinadas. Não havia mais Wangor ou
recordações. Não me restara nada no mundo e, em alguns anos, também não sobraria nada
na minha mente. Abaixei a cabeça e, não sei por quanto tempo, fiquei ali, entregue ao meu
turbilhão de emoções. Deixei a chuva lavar meu espírito e recobrar meu ânimo. Novas rajadas
de vento fizeram meu corpo tremer de frio, mas foi minha mente que estremeceu de terror com
uma ideia:
Talvez aquilo fosse uma despedida!
Talvez fosse a forma de Wangor deixar claro que eu já estava forte o suficiente para
continuar a viagem com minhas próprias pernas, que era hora de partir e não olhar mais para
trás. Com todos os portais vigiados e a impossibilidade de entrar em Zyrk, talvez fosse o
momento de aceitar a despedida e, simplesmente, esquecer a terceira dimensão para sempre.
Novas reclamações bradadas. Correria. Os chuviscos repentinamente se transformaram
em chuva grossa que despencava com violência sobre nossas cabeças. As pessoas
abandonavam o show às pressas em sua procura desordenada por abrigos improvisados.
Foram os uivos nervosos do vento que me alertaram para o estranho fato que acabava de
acontecer: o intenso calafrio melhorava à medida que as pessoas se afastavam de mim.
Por que aquilo acontecia se a ventania piorara e a temperatura havia caído
consideravelmente?
A resposta inesperada vibrou dentro de mim, e, sem compreender minha reação, eu já
estava correndo.

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